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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Reflexões para Teoria do Estado Nacional: abolicionistas e positivista

Quarta, 21 de setembro de 2022

Publicado em 21/09/2022
Escrito por Felipe Quintas e Pedro Pinho*

Movimentos reformularam os princípios do Brasil


O processo de modernização capitalista, destravado na segunda metade do século 19 pela mercantilização da terra, pelo avanço da cafeicultura empresarial paulista e pelo crescente assalariamento da força de trabalho em detrimento do escravismo alçou a questão do trabalho a patamares cada vez mais elevados de importância política.

A voz isolada de José Bonifácio em defesa do Estado social e desenvolvimentista, quando da Independência, somente encontrou eco décadas depois, quando o Estado patrimonial e aristocrático dos saquaremas e luzias mostrou-se insuficiente para gerir toda uma crescente complexidade social e econômica, o que levaria finalmente à Proclamação da República.

Ainda no século 19, as duas principais correntes políticas que propugnavam a ampla revisão das funções estatais em favor da questão social do trabalho foram o abolicionismo e o positivismo.

O abolicionismo no Brasil foi um movimento, existente na segunda metade do século 19, em defesa da abolição da escravidão e de reformas sociais e econômicas voltadas à superação das consequências negativas do escravismo para o desenvolvimento produtivo e a integração nacional.

De perfil sobretudo urbano, o abolicionismo, como afirma o jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1889, “foi a primeira campanha de dimensões nacionais com participação popular” (p. 211). Pessoas de diferentes condições sociais se envolveram nas campanhas abolicionistas, destacando-se Joaquim Nabuco (1849–1910), filho de influentes políticos e grandes proprietários rurais de Pernambuco, e Luís Gama (1830–1882), André Rebouças (1838–1898) e José do Patrocínio (1853–1905), oriundos das camadas pobres e escravizadas da sociedade.

Da mesma forma, havia partidários tanto da Monarquia quanto da República entre os abolicionistas. Destaca-se o endosso de setores expressivos do Exército e das polícias na campanha abolicionista, dentre os quais constava o pai do presidente Getúlio Vargas, o general Manoel do Nascimento Vargas, herói da Guerra do Paraguai e líder da campanha abolicionista em São Borja. A simpatia do Imperador Dom Pedro II e de sua filha, a Princesa Isabel, também foi importante para proteger e promover o abolicionismo.

O abolicionismo, portanto, não seria simplesmente um movimento pela alforria dos escravos, mas pela reconstrução e regeneração do Brasil “sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade” (Nabuco, 2000 [1883], p. 14), elevando as condições materiais de vida para toda a população, inclusive os brancos e mestiços livres, porém marginalizados na ordem escravista.

Daí a necessidade de um “programa sério de reformas” voltado a erigir “um novo ideal de Estado […] para que delas resulte um povo forte, inteligente, patriota e livre” (ibid: p. 170). Nesse Brasil reformado, as instituições políticas estariam a serviço da integração nacional pelo desenvolvimento industrial e agrícola em todas as regiões, da conjunção do trabalho livre com a mecanização e o incremento técnico da produção, da disseminação das letras, da ciência e do conhecimento no conjunto da sociedade, da criação de um mercado interno capaz de alavancar a produção nacional e criar oportunidades de investimentos e inovações tanto no meio rural quanto no urbano.

Dessa maneira, o abolicionismo considerava que a superação da “obra da escravidão” só seria possível com o desenvolvimento econômico e social do Brasil, arrancando o País da inércia, do retardo e da brutalidade a que o escravismo o havia condenado.

A unidade nacional, em termos territoriais e sociais, dependeria do fim da escravidão e da superação de seu legado por meio do desenvolvimento assentado na valorização do trabalho livre.

O abolicionismo inscreve-se, assim, em uma tradição política genuinamente brasileira de busca pela construção do desenvolvimento autônomo e da integração social nos marcos da preservação e do fortalecimento da soberania e da unidade nacionais.

Iniciada por José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, não à toa reconhecido pelos abolicionistas como seu mentor e patrono, essa tradição foi continuada pelos movimentos sanitarista e tenentista no século 20, culminando na Revolução de 1930, que deu início ao industrialismo e o fez acompanhar de direitos trabalhistas e sociais.


Programa viria a se tornar realidade só após Revolução de 1930

O positivismo no Brasil, por sua vez, foi, em grande parte, uma corrente filosófica e política organizada e difundida pela Sociedade Positivista brasileira, fundada, em 5 de setembro de 1878, por Benjamin Constant (1836–1891), Miguel Lemos (1854–1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855–1927).

Favorável à abolição da escravidão, os positivistas ingressaram na campanha abolicionista mantendo sua identidade própria, alicerçada na defesa brasileira do positivismo, corrente teórica inaugurada pelo filósofo francês Augusto Comte, um dos fundadores da sociologia.

Fiéis ao ensinamento do seu mestre francês, os positivistas consideravam que era preciso “prever para prover”, ou seja, conhecer a realidade social para nela atuar politicamente. Segundo Guerreiro Ramos, os positivistas foram os que “pela primeira vez, entre nós, colocaram, com toda clareza, o problema da formulação de uma teoria da sociedade brasileira como fundamento da ação política e social” (Ramos, 1957, p. 56). Isto é, o conhecimento científico da realidade social própria do Brasil era a condição basilar para a adequada intervenção política nos rumos do país.

A organização nacional proposta pelos positivistas tinha como eixos a República, a centralidade do Poder Executivo, a supressão da hereditariedade dos cargos políticos, a abolição da escravatura sem indenização aos antigos senhores, a separação entre o Estado e a Igreja e as liberdades civis como a de pensamento, de expressão e de culto.

Eles também defendiam o desenvolvimento industrial, pois o industrialismo seria a base material da moralização da sociedade, ainda mais a brasileira, marcada pelo modelo dissipador do latifúndio escravista voltado ao atendimento prioritário da demanda externa.

A ordem industrial não deveria ser guiada por interesses particulares desenfreados, mas pelos interesses de toda sociedade, quer dizer, de toda a Pátria. O desenvolvimento industrial estaria subsumido, assim, à Questão Nacional. Portanto, eles consideravam imperativo o que Comte chamava de “incorporação do proletariado” à ordem industrial, ou seja, o compartilhamento dos benefícios da industrialização.

Diferentemente do mestre francês, que apelava basicamente à boa vontade dos patrões, os positivistas brasileiros mobilizaram-se por reformas legislativas de teor trabalhista, como a instituição do salário mínimo, da jornada de trabalho de sete horas diárias, da proibição do trabalho infantil, do direito a férias de 15 dias e à folga dominical, da estabilidade no emprego após sete anos de serviço, da licença remunerada em caso de doença, aposentadoria por idade e por invalidez, de pensões às viúvas e órfãos menores de idade.

Como defende Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização, foi o ideário reformista positivista, e não qualquer influência fascista, o que inspirou a elaboração dos direitos trabalhistas durante o governo de Getúlio Vargas, que havia assimilado o positivismo a partir dos governos estaduais gaúchos do PRR (Partido Republicano Riograndense), que colocaram em prática várias dessas medidas durante a Primeira República.

O abolicionismo e o positivismo formaram toda uma geração de intelectuais, políticos e ativistas empenhados em reformular os princípios norteadores da ação estatal.

À questão territorial, habilmente defendida pelos estadistas do Império e da Primeira República, vieram se juntar, enquanto complementos necessários, as questões industrial e social, tomadas como uma unidade.

Esse novo programa, esposado por personalidades de alto calibre como Ruy Barbosa, Nilo Peçanha e Artur Bernardes, somente viria a se tornar realidade após a Revolução de 1930. Um novo Estado surgia, e, com ele, um novo Brasil, que assumia, no ritmo permitido pela história, as feições delineadas na Independência por José Bonifácio de Andrada e Silva.

Era a Independência em marcha, não apenas como evento, mas como processo.

*Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política.

*Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

As referências estão em:

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992;

GOMES, Laurentino. 1889. Rio de Janeiro: Globo, 2013;

LINS, Ivan. História do Positivismo Brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964;

NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo, Publifolha, 2000 [1883]; e

RAMOS, A. Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Editorial Andes Ltda. Rio de Janeiro, 1957.

Fonte: AEPET, com informações do Monitor Mercantil