Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 22 de junho de 2020

UM IMENSO BOTECO (ATÉ QUANDO?)

Segunda, 22 de junho de 2020
Conversa com Tolentino
Se você é botequeiro ou já frequentou botecos, mesmo que ocasionalmente, conhece bem o tipo de que vou falar. Afinal, não foram poucas as vezes em que tomou lugar em sua mesa sem que ninguém chamasse. Tomou é a palavra apropriada, pois não raro se sentou em cadeira que viu desocupada, mas que era de um dos amigos que levantou por motivo fortuito, como ir ao toalete e afastar-se para cumprimentar alguém conhecido.

Além de sentar-se, o tal fulano assumia invariavelmente a direção da conversa, sem se importar com o assunto de que o grupo se ocupava. Se os amigos falavam de algum filme, mudava o assunto e falava de uma viagem que teria feito, fechando com um comentário digno de nojo: “Fui num quilombola [assim mesmo, confundindo com quilombo] e o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais” Se conversávamos sobre futebol, lá vinha ele com uma notícia de página policial e concluía: "[O policial] entra, resolve o problema e, se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado.”

Em qualquer conversa, não tomava conhecimento da opinião da turma, trazendo comentários inadmissíveis para muitos e no mínimo desagradáveis para outros, como “quem usa cota está assinando embaixo que é incompetente. Eu não entraria num avião pilotado por um cotista. Nem aceitaria ser operado por um médico cotista”, “eu jamais ia estuprar você porque você não merece”, “um decote daqueles, sozinha na rua à noite e se queixando por ser estuprada”, “se um filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro, ele muda o comportamento dele”, “o erro da ditadura foi torturar e não matar", “foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada, e veio uma mulher.”

Se alguém perguntava aos outros quem ele era, um ou outro dava uma resposta tão vaga quanto a de achar que tinha estudado em outra turma da sua escola, mas nem sequer sabia o seu nome.

Era o tipo de cara que você encontrava em festas para a qual ele não foi convidado, tomava conhecimento de ter dito a alguém que foi você quem o chamou e, muitas vezes, era visto por você na mesa do próprio dono da casa, dando aquelas mesmas opiniões ou contando piadas impróprias, falando e gargalhando exageradamente alto, ocasionalmente com a boca muito aberta e, talvez até, enquanto ainda mastigava.

“Sabe quem resolveu virar político?” Surge um amigo com a surpresa e a reação é unânime de que não teria qualquer chance, com aquele seu jeito inconveniente. Que nada? De repente, está ele eleito deputado e até com razoável votação. Conclusão: há mais gente como ele entre os eleitores, com aqueles modos que temos como insuportáveis e opiniões absurdas.

Mais atentos à política, percebemos que ele não é o único com tal perfil. Mas vemos também que esses não são levados a sério pelos demais, mesmo porque não produzem nada de aproveitável.

Por isso, só pudemos reagir com zombaria quando o vimos entre os nomes que disputariam uma eleição para nada menos que a Presidência da República. Era demais imaginar que a maioria dos brasileiros tinham aquele tipo de visão do mundo e da política.

Só não nos demos conta de um detalhe. Quantos anos havia em que praticamente a unanimidade da mídia tratava os políticos como se todos fossem um bando de exploradores irresponsáveis, totalmente descomprometidos com os interesses da população.

Ora, se nenhum merecia a confiança do eleitor, tanto fazia votar em um como em outro. Menos, é claro, os que a mídia tinha como inimigos viscerais, os vinculados ao PT, apontados como responsáveis exclusivos em processo de corrupção no qual haviam se envolvido políticos de vários partidos que haviam trocado o apoio parlamentar ao governo liderado pelo PT por cargos que geriam grandes orçamentos públicos.

Pois aquele frequentador repugnante de botecos resolveu apostar no discurso justamente de que ninguém presta, de que governaria sem se misturar com outros políticos e partidos, e trazendo para a pauta justamente aquelas ideias retrógradas. Com elas, atrairia os setores mais atrasados das igrejas evangélicas, justamente os que mais cresciam entre as camadas carentes da população.

Seu inimigo maior? O PT, partido sabidamente comprometido com propostas inclusivas, a superação das condições de marginalização de negros e índios, a defesa das mulheres e dos homossexuais.

Inimigo também dos demais políticos conservadores, conseguiu murchar inicialmente a bola deles todos e, sozinho no ringue contra o PT, acabou atraindo o apoio de todos por gravidade.

O que nenhum deles pode é estranhar que viesse a tratar o Brasil como uma imensa mesa de boteco. Enquanto um grupo ultraliberal tenta governar para ele, destruindo tudo o que foi construído pelo Partido dos Trabalhadores e um tanto mais, dedica-se a disparar baboseiras, com que consegue agradar a claque ligada a igrejas pentecostais que atraiu para si e mais um pedaço da classe média que se horrorizou ao ver o risco de serem ocupados por gente de origem humilde, especialmente os negros, espaços de poder e privilégio que acostumou a ter como privativos de seus filhos.

E lá vem mais um disparate. E outro... e outro. Num crescendo que acaba colocando como projeto o recuo até o regime militar ou algo muito parecido com o que ele foi.

Vale lembrar uma particularidade daquele elemento que invadia os nossos espaços em mesas de boteco que prometiam ser agradáveis antes de sua chegada era que, além disso, invariavelmente se levantava deixando a conta para nós pagarmos.


Fernando Tolentino

Este texto foi publicado originariamente na Página Conversa com Tolentino