Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)
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sexta-feira, 8 de agosto de 2025

O ataque ao Brasil pode ser um fator de mobilização

Sexta, 8 de agosto de 2025

O ataque ao Brasil pode ser um fator de mobilização

Roberto Amaral*

A natureza da agressão dos EUA ao nosso país é claramente intervencionista, política na origem e nos objetivos que persegue. A escandalosa coação ao Judiciário, imiscuindo-se em nossa domesticidade em nível jamais conhecido entre nações soberanas em paz, tanto quanto o “tarifaço”, atingindo em cheio nossa economia e anunciando desemprego, não se encerra em si mesma, pois muito está por vir, e o que nos espera poderá agravar-se se não encontrar a resistência de uma sociedade organizada, apta à mobilização e preparada política e ideologicamente.

Os idos de 2025 olham para 2026.

O projeto trumpista, apoiado pelo grosso da sociedade estadunidense, pelo seu Congresso, pela Suprema Corte, é movimento que visa a fortalecer, ampliar e dar consequência à marcha da extrema-direita em todo o mundo — fantasma que não é de hoje. Ele assombra a Europa, pervade a América Latina e agora volta ao comando dos EUA, mirando o resto do mundo.

A ameaça toma os contornos de fato concreto, corre como rastilho de pólvora; sua relevância muda de qualidade quando passa a ser conduzida pela — ainda — maior potência econômica e militar dos últimos cem anos, ferida pela sua crise interna, acossada pela desindustrialização, assustada com as ameaças à sua hegemonia representadas pela ascensão de uma Eurásia liderada por uma China desenvolvida e em crescimento.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Primeiro de Maio: do massacre de Chicago ao desencanto atual

Quinta, 1º de maui de 2025

Roberto Amaral*
 
“E um fato novo se viu / Que a todos admirava: /
                      O que o operário dizia / Outro operário escutava. / E foi assim que o operário / Do edifício em construção / 
Que sempre dizia sim / Começou a dizer não.” 

(Vinícius de Moraes, O operário em construção)
 
As esvaziadas festas de hoje, com as quais, graças ao feriado, comemoramos o 1º de Maio, nada guardam de familiar com suas dramáticas origens, que remontam ao massacre da Praça Haymarket (Chicago, 1886). O Dia Internacional do Trabalho e da Solidariedade Proletária nasceu como uma marcha de lutas, protestos, greves e reivindicações de direitos. O que poderiam os trabalhadores comemorar, naquela altura, submetidos que eram a jornadas de 12, 14 e até 16 horas de trabalho diárias que, com variações, atingiam homens, mulheres e crianças, tanto no velho continente que sediara a Revolução Industrial quanto nos emergentes EUA? Haveria de ser um dia de luta da classe trabalhadora, então animada por socialistas e anarquistas, confiando no internacionalismo proletário — hoje reduzido a relíquia histórica.

O “Dia do Trabalho” nasceu como mobilização eminentemente política, revelando, em seus primeiros tempos, tinturas revolucionárias que, aos poucos, foram se esmaecendo até alcançarem a palidez de hoje. Era claro seu escopo pedagógico, ao pretender lembrar e ensinar à categoria que os direitos são conquistados com luta (“O que cai do céu é chuva; o resto se conquista”), tanto quanto são perdidos quando ela enfraquece. E, assim, talvez se explique a contemporânea perda de direitos dos trabalhadores — o outro lado do remanso da luta popular e da crise política do sindicalismo.

E, no entanto, o trabalho — apesar das transformações que se operam nas relações de produção modernas e contemporâneas — continua no centro das contradições do capitalismo, mesmo em sua fase atual, que associa neoliberalismo e financeirização à revolução tecnológica, apontando para um cenário de mudanças ainda inimaginável aos olhos de hoje.

Uma mínima revisão histórica revela que a inconstância da valoração política do Dia do Trabalho (ou Dia do Trabalhador) reflete a própria crise político-existencial-organizativa do proletariado — palavra que, aliás, está desaparecendo de nossos dicionários. Abate-se sobre ela a crise do trabalho, cujos principais indicadores são a precarização e a fragmentação dos vínculos trabalhistas, o individualismo da ideologia do empreendedorismo tomando o lugar da socialização (herdeira das linhas de produção agora espacialmente desfeitas) e, precarizando ainda mais a defesa de direitos, a frustração do sindicalismo como força política.

Regressemos a Chicago e à luta pela jornada de oito horas de trabalho, marcada por uma greve geral deflagrada em 1º de maio de 1886, sob o lema: “Oito horas para o trabalho, oito horas para o sono e oito horas para o que quisermos”. Essa, uma das maiores conquistas dos trabalhadores no século passado, só seria adotada nos EUA em 1938 (governo Roosevelt), 52 anos depois, e no Brasil em 1932 (por decreto de Vargas). Só agora, como iniciativa parlamentar ainda sem o necessário eco social, é que se cogita do fim da escravizante jornada de trabalho identificada como 6x1.

O 1º de maio de 1886, mais do que um objetivo, foi apenas o ponto de partida de uma batalha sem fim, porque a contradição capital x trabalho é intrínseca ao capitalismo. No dia 4 de maio, uma passeata pacífica caminhando pela Praça Haymarket foi interrompida pela explosão de uma bomba. Dando o sinal da essência do conflito, a polícia — suposto alvo — reagiu como sempre: atirando contra a multidão. Até hoje, nem os sistemas de segurança revelam, nem os historiadores conseguem estimar o número de mortos. O massacre, porém, ainda não fôra suficiente: era preciso nomear um inimigo. E este foi escolhido — como tantas vezes — entre imigrantes e anarquistas. Oito militantes são presos, julgados, e à míngua de provas, condenados à pena capital.

O 1º de maio como Dia Internacional do Trabalhador foi instituído pela Segunda Internacional no Congresso de Paris (1889) e, a partir de então, passou a ser celebrado com greves, marchas e os mais variados atos públicos, até tornar-se, como hoje, uma data universal.

Devemos a primeira comemoração do 1º de Maio no Brasil, em 1891, à militância de operários socialistas e anarquistas, em sua maioria italianos, que também estariam no núcleo das greves de 1917. Mas esse 1º de Maio cingiu-se a um pequeno comício na Rua da Mooca, em São Paulo. Nos anos seguintes, chega ao Rio de Janeiro, a Porto Alegre e a outras poucas capitais, até espalhar-se pelo país. Não se contava com feriado nem com “festa cívica”, conservava-se seu caráter de protesto e reivindicação. Os atos consistiam em mobilizações operárias, passeatas e greves, sempre com caráter reivindicatório — e sempre enfrentando a repressão e a violência do Estado, que, no entanto, se apropriaria da data durante o Estado Novo (1937–1945), transformando-a em “dia cívico nacional”.

As greves sairiam do cardápio, as passeatas cessariam e os comícios deixariam as ruas para se acomodarem no Estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, onde, após desfilar em carro aberto, o caudilho pronunciava seu esperado discurso anual dirigido “aos trabalhadores do Brasil” — sua base social de apoio. Já no governo constitucional e democrático (1951–1954), Getúlio Vargas passou a assinar, no dia 1º de Maio, o decreto anual que fixava o salário mínimo, criado por ele em 1940, ainda durante a ditadura.

O 24 de agosto de 1954 encerra a primeira experiência de governo trabalhista em regime democrático. A ela se segue um regime de transição, custodiado pelos militares que haviam deposto Vargas. A normalidade constitucional só seria restabelecida com a eleição e a contestada posse de Juscelino Kubitschek (1955), até conhecermos, com o inconcluso governo de João Goulart, a segunda tentativa de regime trabalhista democrático, interrompida pelo golpe de 1º de abril de 1964.

As comemorações do 1º de Maio são retomadas com Juscelino (1956–1961). Expressam a conciliação como ideologia e projeto de governo: conciliação política nacional, conciliação com os interesses dos EUA e, sobretudo, a “harmonia entre capital e trabalho”. Era o preço que JK decidira pagar para garantir a integridade do mandato, ameaçada por seguidas tentativas de impeachment e insurreições militares. A marca ideológica centrava-se no desenvolvimentismo — régua e compasso para todos os males nacionais, da pobreza à dieta democrática. Nesse sentido, é exemplar seu discurso no 1º de Maio de 1961:
“Tenho um interesse todo especial em vos dirigir a palavra, trabalhadores, neste Primeiro de Maio, ao falar-vos daqui de Brasília — cidade erguida pela energia de nosso povo, prova da eficiência, capacidade e dedicação do operário brasileiro. [...] A batalha do desenvolvimento nacional, vale dizer, a batalha da justiça social, é o único meio de que dispomos para chegar a esse fim. A revolução do desenvolvimento é a vossa revolução. Ela não pode parar. Não deve parar”. 
A carga simbólica do trabalhismo ressurge com João Goulart (1961–1964), ex-ministro do Trabalho de Vargas (demitido da Pasta por pressão dos militares após propor aumento de 100% do salário-mínimo) e seu herdeiro político. Os pleitos centrais do sindicalismo e do trabalhismo são assumidos pelo discurso oficial e, a eles, somam-se bandeiras mais sensíveis à esquerda da época, como a reforma agrária e o controle da remessa de lucros ao exterior. O movimento estudantil e os sindicatos são fortalecidos, o Partido Comunista (na ilegalidade desde 1947) passa a gozar de ampla liberdade de ação, e as organizações populares (inclusive as Ligas Camponesas) são estimuladas pelo governo. No plano internacional, o Brasil busca autonomia, aproxima-se dos “países não alinhados”, defende a soberania de Cuba e a autodeterminação dos povos.

Jango sai de Brasília e, em 1º de Maio de 1963, discursa para uma multidão no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Defende as “reformas de base”, o leitmotiv de seu governo: 
“A reforma agrária é a base da democratização da terra. Não podemos mais aceitar que o camponês continue escravizado pela fome, enquanto milhões de hectares permanecem improdutivos. [...] Milhões de brasileiros vivem nas cidades em condições subumanas. A casa própria, o aluguel justo, o saneamento e o transporte são direitos que precisam ser garantidos. [...] Educação gratuita e obrigatória é um dever do Estado e um instrumento de emancipação popular. [...] Os que mais lucram devem pagar mais impostos. Não podemos tolerar um sistema que protege os que especulam e penaliza os que trabalham. [...]  O Brasil não é quintal de nenhuma potência. Nosso petróleo, nossas riquezas, nosso trabalho pertencem ao povo brasileiro.”

Como se vê, texto de dramática atualidade, passados 62 anos!

Segue-se o silêncio dos anos de chumbo, rompido quando a ditadura dá os primeiros sinais de esgarçamento e decide participar do 1º de Maio de 1981 — montando, na véspera, o felizmente frustrado atentado ao pavilhão do Riocentro, onde milhares de jovens e trabalhadores participavam de show em comemoração ao Dia do Trabalho.

As décadas de 1970 e 1980 marcam a reorganização do movimento sindical, a partir de São Bernardo do Campo, devolvendo ao 1º de Maio seu caráter político. São os tempos da ascensão de Lula. Mas, já no país redemocratizado, a politização cede espaço à alienação. Os anos 2000–2010 trazem a marca da espetacularização. O apelo já não é mais a política, o combate ideológico, a defesa do sindicalismo, as reivindicações sociais. No pódio está o “sindicalismo de resultados”; o comício e o discurso ideológico são substituídos por megashows; o sorteio de prêmios é o atrativo para novas plateias — que vão se minguando até o vazio de hoje.

Uma penca de centrais sindicais de representatividade discutível convocou uma concentração neste 1º de Maio de 2025 na Praça Campo de Bagatelle, zona norte de São Paulo, prometendo como atração shows de artistas menores e sorteios de dez carros 0 km.

Prevenido pelo fracasso do showmício do ano passado, o presidente Lula anunciou que não participaria do evento deste ano. Considerou mais prudente permanecer em Brasília (como fazia JK) e falar ao país por meio de cadeia nacional de rádio e TV. Foi um discurso bem articulado, no qual desfilou os feitos econômicos e sociais de seu governo, destacando aqueles de maior interesse para a classe trabalhadora. Ao final, traçou dois itens de sua política trabalhista: o apoio à PEC 8/2025, da deputada Erika Hilton (PSOL/SP), que reduz a jornada de trabalho para 4 dias por semana (abolindo a jornada 6x1), e a defesa da isenção do imposto de renda para aqueles que recebem menos de R$ 5.000,00. 

Já é alguma coisa.



 
 

* Com a colaboração de Pedro Amaral

domingo, 2 de março de 2025

Como deter o avanço da direita?

 Domingo, 2 de março de 2025

Roberto Amara*

Os números das eleições parlamentares da Alemanha confirmam o cenário antevisto pela unanimidade dos analistas, tão claras eram as evidências do crescimento da extrema-direita e do neonazismo, que lá floresceu para incendiar o mundo e construir uma era de horror. Agora, com matizes tirados da modernidade, ressurge ameaçador, empolgando majoritariamente a Europa Ocidental, em crise econômica, política e mesmo de identidade. O neonazismo é uma doença que nem a guerra, nem a fome, nem a barbárie dos campos de concentração conseguiram erradicar. Nascida com a crise de 1929-1930, recrudesce com o esgotamento capitalista e a falência das alternativas até aqui cogitadas.

Lá e cá, sempre que a esquerda, na busca do voto conservador (ou da governança, governabilidade, composição, conciliação, ou disso ou daquilo), abandona seu leito natural e se alia à direita — muitas vezes subsumindo seu discurso —, é esta quem avança eleitoralmente e, principalmente, vence politicamente. Hoje, a direita dirige o discurso planetário e é vitoriosa do ponto de vista ideológico, pois seus valores se fazem presentes em todo o mundo, instalando-se no pensar, no formular e no fazer dos adversários históricos, que assim se transformam em reprodutores inconscientes dessa ideologia.

O capitalismo, além de dominar o aparato militar, avança sobre corações e mentes: o Estado de bem-estar social, promessa da social-democracia do pós-guerra, foi substituído pelo neoliberalismo. O indivíduo toma o lugar da sociedade. Os EUA, em declínio, reivindicam a unipolaridade, e o trumpismo vitorioso é a voz da “nova” ordem mundial: belicismo, intolerância, expansionismo, avanço do sionismo, nacionalismo excludente, racismo desabrido.

A ascensão de Hitler em 1933 foi alimentada pela crise econômica que chegara ao seu clímax em 1930, mas foi facilitada pelo recuo da social-democracia. Doutrinariamente oportunista, essa corrente viu na ascensão do futuro Führer um meio de derrotar seus inimigos figadais: os comunistas. Hitler esmagou a ambos.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

É cedo para festejar: a denúncia da gangue não é o ponto de chegada

 Sexta, 21 de fevereiro de 2025

Roberto Amaral*

A denúncia da PGR contra a choldra liderada pelo capitão delinquente, tão esperada, não chega a constituir surpresa, mas implica profundo corte no cenário político. De um lado, pode despertar a esquerda (tomada em plano mais geral) de sua letargia; de outro, deve impor à direita — até aqui fogosa por não enfrentar adversário à altura — um recuo ao canto do ringue, onde hoje se encontra o governo, enredado em sua insegurança estratégica.

Embora o contentamento com o início da ação seja compreensível (temos viva a lembrança do que foi a longa noite bolsonarista), não há razões para soltarmos balões e foguetes, festejando uma vitória ainda por se efetivar — e de cuja construção a esquerda e os progressistas em geral ainda não participaram. Até aqui, o sujeito do processo e depositário das esperanças democráticas é o Poder Judiciário, quando a questão fundamental, que diz respeito ao governo, às esquerdas e ao país, não é jurídica, mas política e, por consequência, só se resolverá na política — onde vimos falhando.

Antes de nós, essa distinção, nada sutil, foi percebida pela direita troglodita, que, na impossibilidade de defender o indefensável — a vasta teia de crimes penais e políticos cometidos e prometidos pela caterva chefiada pelo ex-presidente —, levantou a bandeira de uma anistia bastarda. Isca que a esquerda prontamente mordeu, dedicando-se a combatê-la e desviando-se do foco central, qual seja: a denúncia dos crimes do bolsonarismo, concebida como instrumento de combate ao avanço da direita, nosso adversário estratégico. Sem clareza sobre o processo histórico e de seu papel nele, a esquerda se torna reativa, e assim sua práxis passa a ser condicionada pelo campo adversário.

É como enfrentamento à direita (a dita civilizada e a troglodita) que devem ser compreendidos a denúncia e o combate à choldra bolsonarista e seu contencioso de crimes.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Esquerda e governo Lula: desafios em um mundo em convulsão

Sexta, 31 de janeiro de 202
Roberto Amaral*
 
A crise política — anunciante do que virá – exige da esquerda brasileira o engenho e a arte que lhe têm faltado: compreender as circunstâncias e o caráter do governo Lula e, nele e em face dele, identificar seu papel e arrecadar os elementos de que carece para agir. Procuramos compreender a realidade para modificá-la, o que exige reflexão, um olhar histórico e um simultâneo comprometimento com o futuro em construção. 

Carecemos de uma esquerda preparada para rever objetivos e corrigir paradigmas, despida de partis pris, ousada o suficiente para reavaliar certezas e axiomas, sempre em benefício do processo revolucionário real. Processo que, exatamente por não abdicar das utopias fundadoras, mantém-se atento ao mundo objetivo e suas circunstâncias — não como ditadura da história, mas como fenômeno; não como esfinge, mas como solução.

Só assim a esquerda poderá superar o torpor e a estéril expectativa histórica (lamentável quadro atual), e partir para a ação; águas paradas não movem moinho. A ordem, com sus margens plácidas, é o refúgio do atraso, o velho que se disfarça no aparentemente novo e vivo, o velho fascismo que ressurge abraçado às fantasias do neoliberalismo e do individualismo — base da democracia autocrática, oximoro léxico e político, modelo da ordem trumpista recém-instalada, prenúncio de uma nova fase do imperialismo em busca do controle planetário.

O realismo político, a leitura do real, não implica conversão ao “império das circunstâncias”, mas, por reconhecê-lo, compromete-se a conhecer e construir as condições objetivas para sua superação. Assim, ao sustentar o governo cuja eleição ajudou a viabilizar, a esquerda torna-se agente do processo social. E a esquerda é movimento.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Crônica do império em declínio. O rearranjo global e os desafios da esquerda sem bússola

Sexta, 2 de agosto de 2024

O rearranjo global e os desafios da esquerda sem bússola

Roberto Amaral*

"Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária."
Karl Marx (O Capital, vol. III)


Fervorosos e testados defensores da democracia, por si, não devemos nos iludir quanto aos limites do processo eleitoral, cuja observância é a conditio sine qua non do governo legítimo, independentemente do que seja ele, faça ou deixe de fazer. Ainda que promova a guerra, como os governos estadunidenses, todos originários de processos eleitorais, ainda que muitos eivados de fraude (de que é acusada, por exemplo, a eleição do Bush filho em 2000). A contar do fim da segunda guerra mundial (para não ir muito longe), todos os presidentes dos EUA, com a possível exceção de Jimmy Carter, podem ser qualificados de genocidas, como hoje o governo sionista de Israel, sustentado política, financeira e militarmente pelo Grande Irmão, cujo governo, por seu turno, é condicionado pelo complexo industrial-militar que o general e presidente Dwight Eisenhower denunciou no ato de transferência do cargo a John F. Kennedy. E assim se abre o filão de explicações por que o gigante do norte está em guerra ininterrupta em quase todo o planeta, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Talvez explique sua beligerância no mundo, e talvez explique a violência doméstica. 

O fundamental, até aqui, diz o cantochão liberal, que tanto vem encantando a opinião pública mundial e setores menos informados da esquerda, é que os príncipes tenham sido ungidos por eleições — como, convém lembrar, foram Benito Mussolini e Adolf Hitler, além de Ariel Sharon e Benjamin Netanyahu. E pode voltar a ser Donald Trump, um racista condenado por estupro.

Mas nenhuma regra é absoluta na política. A eleição pode ser legítima, mas será inaceitável na ocorrência de variadas hipóteses: quando ameaça ou possa ameaçar a ordem capitalista ou a hegemonia político-militar-ideológica norte-americana, segundo a lente da CIA e do Departamento de Estado. Alguns  poucos exemplos em catálogo que não cessa de crescer: a Casa Branca planejou e ajudou a operar o golpe militar de 1964, no curso de cuja violência depôs João Goulart, presidente legítimo, instaurou e sustentou por 21 anos uma ditadura militar que prendeu, exilou, torturou e matou um número ainda desconhecido de brasileiros. Durante todos esses anos as nomeações dos generais-presidentes brasileiros foram consideradas eleições legítimas. Nenhuma conheceu a mínima contestação. Não se via a usurpação da soberania popular como uma fraude, desqualificando o sistema. Em 1965, os marines invadiram a pequena República Dominicana para impedir a posse de Juan Bosch, o primeiro presidente democraticamente eleito após a longa ditadura de Rafael Trujillo. A CIA carimbara Bosch como comunista. A intervenção deixou como herança uma guerra civil e a sequência de governos autoritários, que só cessa em 1978.

Mas a violência paradigmática seria registrada em 1965, com a deposição do presidente chileno Salvador Allende, este sim intentando alterar o statu quo pela via legítima das eleições. A utopia da democracia socialista foi substituída pela ditadura luciferina do general Augusto Pinochet, responsável por um número ainda desconhecido de presos e torturados (brasileiros inclusive) e um mínimo de três mil mortos.)

O sistema político-eleitoral do Ocidente, inclusive nos EUA, sua matriz material e ideológica, foi engendrado para que, havendo eleições, trocando-se governantes, mesmo de partidos distintos e aparentemente antagônicos, tudo continuasse como dantes no Castelo de Abrantes. Mudanças, tão somente as perfunctórias, aquelas que de vez em quando se fazem taticamente necessárias, para que tudo continue como está. É recorrente a sentença de Tancredi no diálogo engendrado por Giuseppe Lampedusa, em texto literário que nas mãos de governantes se converteu em manual da ciência de bem gerir o poder para nele manter-se.

Assim são as eleições nos EUA, nas quais  quase tudo pode acontecer (inclusive atentados e assassinatos), contanto que o presidente eleito seja oriundo de um dos dois partidos hegemônicos, destinados pelos pais da pátria a conduzir o país. Esses dois, e só eles, e entre eles nenhuma personalidade heterodoxa. Para tal não importa que a primeira disputa se faça na busca de doações do grande capital, reduzindo em muito o poder do voto, carente de autonomia em face da manipulação ideológica facilitada pela movimentação de grandes recursos. E pouco importa que o resultado final não se conecte com a soberania popular, pois pode chegar à presidência o candidato que obteve o menor número de votos, como ocorreu recentemente com as eleições de Bush filho e de Trump, irmãos no reacionarismo. O essencial é que o presidente, lá, aqui e até onde chegue a sombra da Pax Americana, seja um quadro do sistema para que, havendo troca de bastão, não haja mudança de governo, e assim a classe dominante tenha assegurada sua hegemonia.

Embora a maior parte dos norte-americanos apoie a taxação dos bilionários, nenhum candidato democrata ou republicano à Casa Branca abraça a ideia, dependentes (e procuradores) que são dos grandes doadores. Embora a precarização do trabalho atinja milhões de cidadãos daquele país, projetos que regulamentem o trabalho intermitente, garantindo direitos mínimos, sequer são pautados no Congresso.

É esta a democracia representativa que se espalha, cada vez mais independente da soberania popular. É esta a cartilha a que somos constrangidos a nos adaptar. A simbologia do Estado pode ficar nas mãos de um presidente sem poder, como por exemplo o presidente da Alemanha, que ninguém sabe quem é, transferida seja a gestão do governo para autarquias poderosas desvinculadas do processo eleitoral, como entre nós o Banco Central, cujo poder a Faria Lima busca aumentar, como são as corporações internacionais, como o Banco Mundial e a  OTAN, que, sob o mando de Washington, gerencia o poder de guerra da Europa.

Este é o mundo que o neoliberalismo está construindo, ao lado da guerra — já acesa em quase todos os continentes, e que, a partir da Venezuela, pode chegar até nós, quando os embargos se tornarem insuficientes para manter a primazia dos interesses do império sobre os interesses nacionais.

A guerra já está na Europa e no Oriente Médio e, se depender do sionismo e da beligerância da União Europeia, tende a alastrar-se. Já chegou ao Líbano e ao Irã. Se depender dos falcões da União Europeia, é incontornável o ataque à Rússia. Todos os países europeus estão investindo na produção de armas. A indústria europeia, a alemã à frente,  está exultante com as encomendas.

O que ocorre na Venezuela, país com o qual dividimos extensa fronteira, que pode ser considerada a entrada da Amazônia, deve ser analisado considerando esse quadro. Como observa o professor Manuel Domingos Neto, se eleições pudessem mudar a ordem política, não haveria eleições. Em face da crise venezuelana — por que, estranhos em face dela, queremos ditar o que ela deve ser? — pensamos e construímos nossa opinião a partir da aparência da realidade, manipulada pela unilateralidade dos meios de comunicação — monopólio na construção ideológica a serviço da classe dominante —, sem contar com qualquer resistência significativa, porque a esquerda, seus partidos e o nosso governo renunciaram ao seu dever histórico de travar a luta ideológica.

Na questão internacional, onde o lulismo tem primado pelo acerto, o governo pode estar cavando seu próprio isolamento, na medida em que evita discutir sua política com a nação. Aliás, neste ponto, suas reservas são bem maiores, posto que nenhuma discussão política promove e, assim, a cidadania se vê na contingência política de defender um governo cujo programa não é enunciado, após um ano e meio de mandato. Esse programa — algo além de uma antologa de iniciativas isoladas — haveria de ser um projeto estruturado de país, o país que queremos, mesmo sem ameaçar a ordem capitalista e fazer enfrentamento ao imperialismo.

Estamos sendo condicionados a nos concentrar no superficial, no epidérmico, e também no pitoresco, no anedótico. Isso dificulta o entendimento do que se passa na Venezuela, no Brasil, no mundo, bem como o caráter de nosso papel como liderança que almejamos ser na América do Sul.

A esquerda em grande parte ficou sem bússola, ao abandonar a luta socialista e conceitos-chave como imperialismo e luta de classes — assim, facilmente se confundindo com os liberais, que lhe dão a mão para poderem apunhalá-la na primeira oportunidade que surja. Se a esquerda parece confusa e aturdida, que dizer das grandes massas desassistidas politicamente por nós,  postas à mercê da cantilena diária e permanente dos meios  de comunicação de massa e da pregação religiosa mercantil?
 
Fenômeno humano, a história não se desenvolve no vazio; o presente, sempre um fenômeno novo, é filho do passado, sem ser seu duplo. Mas pode nos advertir relativamente ao futuro. Aquele que os dados de hoje sugerem não deve surpreender o observador atento da história, mas nos deve assustar profundamente. Muito do que estamos a registrar, faz anos, relembra momentos sombrios do grave caminhar da humanidade, que parece rebelde à aprendizagem.  Os tambores estão  rufando.  

***

Paris é uma festa? – Aproveitando o momento de grande entusiasmo pelas instituições democráticas (que esperamos seja sincero), vale perguntar: quando Emmanuel Macron irá passar o bastão à Nova Frente Popular, vencedora das eleições de julho?

O Brasil sem espaço – Por artes e artifícios não sabidos, as forças armadas do Estado brasileiro dividiram entre si, lá atrás, a condução das áreas fundamentais para a soberania nacional e o desenvolvimento, autônomo segundo as circunstâncias. A FAB — a quem se deve os primeiros passos da futura Embraer (que, há pouco, quase foi doada à Boeing), abocanhou o projeto espacial. Estamos, hoje, como estávamos nos primórdios: sem satélite próprio, sem veículo lançador e sem estação de lançamento, carregando nas costas a perda de 21 técnicos e cientistas no desastre de 2003, consequência de erros de operação do veículo em terra.

A esfinge da política de comunicação - O desemprego caiu a nível recorde, a renda média cresceu. É o que diz O Globo(1º.8.24), reproduzindo dados do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios-PNAD).  A população ocupada chega (recorde) a 101,8 milhões, enquanto o número de desempregados caiu para 7,5 milhões, o menor patamar desde 2015. O rendimento médio dos assalariados sobe para R$ 3,4, uma alta de 5,8%, na comparação anual. Mas esses avanços não se refletem na aprovação do governo e do presidente. Já está na hora de o terceiro andar do Planalto pensar em uma política de comunicação.

Samuel Pinheiro Guimarães – Excelente o texto de Magno Klein (“Samuel Pinheiro Guimarães e o desafio aos gigantes”) na Insight Inteligência de junho passado. Aos que não tiverem acesso à versão gráfica da revista (de primeira linha) informo que o texto recomendado pode ser encontrado em: inteligencia.insightnet.com.br .



* Com a colaboração de Pedro Amaral

sexta-feira, 12 de julho de 2024

A hora da esquerda reencarnada

Sexta, 12 de julho de 2024


A hora da esquerda reencarnada

Roberto Amaral*
 
“O espírito da esquerda existe e  precisa de encarnação”.
 (Edgar Morin,102 anos).
 
Em apenas uma semana a humanidade democrática saltou do anunciado mergulho no poço sem fundo do desencanto (ao qual parecia condenada) para a recuperação da esperança, que hoje corre o mundo como lufada benfazeja. As boas novas que chegam da França nos afagam e animam em momento de muita carência. Comemoremos, pois, a primavera fora do calendário. É o que o filósofo Edgar Morin, em sua lucidez, define como “encarnação”, que não foi, esta que estamos a festejar, obra do acaso, jamais o é, e menos ainda oferenda dos bons fados, posto que é fruto de muito engenho e arte. Trata-se de ourivesaria concertando na mesma peça a denúncia política firme e a hábil coragem do pragmatismo a serviço de um objetivo claro. O avanço em vez de recuo. A esquerda que se tinha em estertores – consumida pelo avanço incoercível da extrema-direita protofascista, que corre o mundo e nos ameaça –, ressurge na liderança da Assembleia Nacional, superando os fascistas de Le Pen e os direitistas de Macron, o presidente que conheceu as cordas nos pleitos de junho e julho, mas que ainda hoje tergiversa no reconhecimento do decreto da soberania popular. Sua derrota não foi acachapante, como anunciavam os números do primeiro turno, e como desejava Marine Le Pen, desde logo candidata à sua sucessão. Governará, sabe-se lá como, em coabitação que ainda não se conhece, mais três anos, mas é desde já o que a literatura política nos EUA chama de “pato manco”, de que é exemplo Joe Biden, nos seus longos poucos dias restantes de Casa Branca.   

A encarnação da esquerda se dá na política e toma o corpo da militância ao assumir o dever esquecido da iniciativa da ação e do discurso afirmativo, que pedem saber e coragem. A um tempo, a esquerda ressuscita e se encarna no corpo da militância, na eloquência de programa de governo sem concessões ao neoliberalismo governante no mundo e aqui maquinando dia a dia, por todo o tempo e por todos os meios a desconstituição ideológica do nosso governo, assim condenando às calendas gregas – mais uma vez! – a esperança de encarnação do espírito de uma esquerda tout court: o combate às desigualdades sociais, pois é, tão só, e ao mesmo tempo tão moralmente grandioso, o pouco que nos permitem as vagas da história de hoje.

Diante da ameaça de um novo Vichy, e o anúncio das trevas que eram as promessas de seu governo, os franceses optaram pelo discurso de Mélenchon. Enquanto Jordan Bardella, o líder na chapa de Le Pen e seu declarado candidato à chefia do próximo governo, batia nas teclas reacionárias de todos os tempos, como combate à imigração, ênfase nas políticas de segurança pública e aumento dos recursos destinados às forças de segurança/repressão, protecionismo industrial e ao multiculturalismo,  a frente de esquerda, sob a liderança de Mélenchon, defendia a justiça social e econômica, a redução das desigualdades e o aumento do salário mínimo, uma reforma tributária progressiva e o fortalecimento do Estado de bem-estar social destroçado pelo neoliberalismo, uma política externa independente em face dos EUA, a proteção e ampliação dos direitos trabalhistas, com a redução da jornada de trabalho. E, por fim, mas como verdadeiro fecho, o fim da Quinta República, com uma nova constituição elaborada com o objetivo de reduzir os poderes atuais do executivo e assegurar o aumento da participação popular na gestão pública.

Eis a lição que os franceses liderados pela França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon nos ofereceram no último domingo, 7 de julho, mês tão significativo para sua história: o de saber proteger-se do radicalismo infantil, porque divorciado da realidade, sem todavia renunciar aos seus princípios, mas, ao contrário, proclamando-os, e assim renovando-os. Na reversão das expectativas mais desanimadoras ressalte-se a retomada, pela esquerda francesa, da consciência prática da importância da militância e de sua mobilização, as ruas como seu auditório de preferência. Não pode passar despercebido o fato de que as eleições mobilizaram a sociedade francesa: as estatísticas registram o comparecimento de 67% dos eleitores, o mais alto dos últimos quarenta anos. Mas louve-se em primeiro plano o mérito de haver triunfado a política de frente, ao reunir na Nova União Popular Ecologista e Social (NUPES), além do França Insubmissa, o Partido Socialista, o Partido Comunista e os Verdes, e, sem concessões de algibeira, haver conseguido levar esse discurso às grandes massas inorgânicas, as que decidem as eleições, aquelas com as quais por aqui não trabalhamos, aquelas que não mobilizamos. 

Porque lhe foi possível, por seus méritos – a noção clara da necessidade de manobras táticas para preservar a integridade estratégica –, ingressar na disputa abrigada em um programa de governo realmente de esquerda, sem concessões ao neoliberalismo que, repercutindo a força do monopólio financeiro, percorre o mundo nesta antevéspera da falência do imperialismo, mas em condições de discutir e negociar com as demais forças do sistema político. 

Entre nós, nada obstante a vitória majoritária de 2022, a discussão se trava em torno do déficit público; por força das circunstâncias, nos limitamos, hoje, a rearranjos monetaristas, ainda repetindo bordões do Banco Mundial e do FMI. Para “acalmar os ânimos”, nosso ministro da Fazenda anuncia à Faria Lima a renúncia aos investimentos que nos ensejariam a retomada do desenvolvimento econômico, sem o qual não se pode pensar seriamente em proteção social.
Mesmo considerando a clareza dos resultados das eleições francesas, ainda há muito de dúvida no cenário que o processo histórico nos reserva. Estimemos que o desejado seja a realidade próxima e que seja possível a coabitação de Macron com um quadro da esquerda vitoriosa, e que o programa da frente de esquerda seja negociado, e em torno dessa negociação se definam o novo primeiro-ministro e o novo governo.

Festejemos o que podemos comemorar, mas sempre com os pés na terra. É preciso considerar, por exemplo, que, nada obstante o feito da NUPES, a extrema-direita é o grupamento político partidário que mais cresce na França, e neste segundo turno, se perdeu em número de cadeiras conquistadas, ganhou em número de votos: 8,7 milhões (32% dos votos) contra 7 milhões (25,6%) dados à esquerda. E sabe-se que os eleitores de Macron se perfilam à direita. O Reunião Nacional de Marine Le Pen, de outra parte, é o único partido em ascensão constante no crescimento de sua bancada na Assembleia Nacional, nos últimos 25 anos. 

Não está claro a que ponto deseja chegar Macron procrastinando a execução do que lhe foi ditado pelas urnas. Não parece crível que pretenda ignorar. Não se sabe em quais condições governará sob minoria na Assembleia, o que parece impossível nesse regime que os franceses herdaram de De Gaulle com a Quarta República, que dá mostras de encaminhar-se para uma crise político-institucional que poderá levar ao fim esse regime híbrido, que se define ora como semiparlamentarismo e ora como semipresidencialismo, sem, ser, realmente, nem uma coisa nem outra.

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O “novo” Ensino Médio – O pior não é o Congresso Nacional que aí está (o pior da história republicana) haver aprovado a “reforma” educacional de Temer-Bolsonaro, sob encomenda das fundações empresariais, que aprofunda a precarização da educação brasileira e agrava as desigualdades já tão penosas e obscenas. Uma "reforma" que até mesmo  pasmem!  promove o trabalho infantil, contra tudo o que possamos considerar avanço. O pior nem é o golpe de mão (mais um) do coronel Arthur Lira, para acelerar a aprovação da matéria, cerceando o debate. O pior, mesmo, é a anuência do Governo Lula, manifesta na ambiguidade (por fim desfeita) do Ministro da Educação e na tibieza insuperável do líder do Governo na Câmara. 

Um fato triste e embaraçoso, que nos cobra uma profunda reflexão.

Ainda a “reforma”  Proclamado o resultado pelo jagunço das Alagoas, o ministro da educação, o líder do governo e as fundações empresariais comemoraram, enquanto estudantes e professores alternavam revolta e desalento. Ou seja, nosso governo mostrou que sempre teve lado no tema: o ziguezague era jogo de cena, para ganhar tempo. Um vexame para quem se vangloria de estar sempre “do lado certo da história”  e provavelmente um erro tático, quando não se pode dispensar o apoio (e o voto) de estudantes, profissionais da educação e suas famílias. 

Paulo Freire deve estar se revirando no túmulo. Mas a "reforma"foi festejada pelo O Globo. Tudo a ver 
 
 

* Com a colaboração de Pedro Amaral

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Precisamos discutir o Brasil

Sexta, 18 de agosto de 2023

Precisamos discutir o Brasil

Roberto Amaral*

Ao anunciar o novo Pacto de Aceleração do Crescimento – PAC, que a rigor consiste, tão só, numa tentativa de recuperação do atraso, porque crescimento não há por registrar, o presidente Lula marcou a data (11 de agosto) como a do início de seu terceiro governo, ainda condicionado, tanto na sua composição quanto no conteúdo programático, pelas negociações em curso. O ministério de hoje é sabidamente pro tempore, e o PAC anunciado, nada obstante a liderança política e moral do presidente, será conduzido por cabeças ainda não coroadas. Que os deuses do Olimpo zelem por nós.

Uma maior privatização dos recursos públicos é o preço que essa entidade chamada Centrão cobra, às escâncaras, para apoiar um governo sem sustentação parlamentar própria, a fôrma deste mostrengo em que se transformou o falecido “presidencialismo de coalizão”: um inviável regime no qual a Câmara dos Deputados, um Moloch insaciável, tem mais poder que o Executivo. A crise logo transbordará da política para a institucionalidade, porque os maus ventos sempre anunciam tempestades.

Respeitadas as circunstâncias, que normalmente frustram os sonhos, há, porém, o que celebrar. Refiro-me à resistência do presidente, desafiado a todo tempo em sua habilidade política e testado em sua fidelidade ao projeto que o levou das greves dos Metalúrgicos do ABC ao Palácio do Planalto, já pela terceira vez – fato inédito nesta República oligárquica. Mas me refiro de igual modo ao PAC em si, sem ainda discutir seu escopo, ao fim e ao cabo um programa de governo de cerca de quatro anos, a que não revelou apreço a chamada grande mídia. Registro que este terceiro governo Lula, em seu sétimo mês, começa pelo bom início, que é a recuperação do planejamento como instrumento de gestão. O que não é pouca coisa, nas condições presentes, mas não é nada demais, tendo em vista que até mesmo a ditadura castrense adotou esse modelo por anos a fio.

Eis um indicador do nosso atraso.

Com o novo PAC, que esperamos possa ter o sucesso negado aos seus antecessores, retomamos a boa tradição do Estado indutor do desenvolvimento, que conhecemos principalmente na saga varguista, que FHC jurou erradicar. Se não chegarmos a assentar as bases de um Estado socialmente e economicamente democrático, que não deveria ser historicamente tão custoso — e hoje, para nós brasileiros, tão distante —, aspiremos ao mínimo oferecido pela história do presente, a saber, a ablação do neoliberalismo associado ao autoritarismo, essa degradação de que a soberania popular nos livrou em outubro de 2022, sem ainda nos poder livrar da preeminência da caserna, que nos malsina a República desde o nascedouro.

O conservadorismo mais rés-do-chão se irmana ao cobiçoso Centrão, transformando o poder legislativo num colegiado reacionário, refratário a qualquer sorte de mudança nas estruturas arcaicas do poder, de que são produto. Os “grotões” do atraso habitam a Faria Lima e os quartéis e dão ordens ao Brasil, diretamente nos gabinetes do poder (em todas as suas instâncias), ou por intermédio dos grandes meios de comunicação, seu aparelho ideológico de dominação.

Por isso mesmo, no Brasil que passa fome, não se discute o Brasil, não se discute que sociedade temos, nem muito menos que sociedade precisamos ter. O que deveria ser o debate nacional cede espaço ao império da irrelevância; a futilidade como projeto expele a informação. Este quadro, contudo, não é suficiente para explicar o conservadorismo larvar da sociedade brasileira, pois é apenas um elemento, certamente não decisivo, na teia histórico-sociológica que costura nossa formação: seremos sempre filhos da casa-grande e da senzala se não reagirmos ao desafio, ou seja, se continuarmos nos omitindo do debate.

E as esquerdas em tudo isso?

Se as disputas eleitorais são necessárias, e devemos enfrentá-las com o melhor das nossas forças, é também preciso ter claro que, no sistema do capital, o domínio da burguesia é tão sólido que, como alertou Lenin, a mera troca de agentes — de pessoas ou partidos — não abole esse poder. Ou seja, é falsa crença de que a vitória nas urnas, por si só, assegura que a vontade da maioria seja posta em prática, e priorizadas as suas necessidades. As comprovações disso abundam no cotidiano brasileiro, e talvez não haja melhor exemplo do que a tranquilidade com que o grande capital encara a periódica substituição de seis por meia dúzia, a cada pleito, no comando da economia nacional.

Em ocasiões extremas a ordem democrática permite a ascensão de um “estranho no ninho”, mas se lhe cede a governança vigiada ou compartilhada, não lhe permite o exercício do poder. Quando esse limite é intentado, a resposta é a de sempre: golpe de Estado

Eis por que a educação política e a organização popular são a chave para qualquer projeto de esquerda — algo que as forças reacionárias, ao menos elas, não se permitem ignorar.

Voltando: o PAC parece ser uma obra bem engendrada, mas jamais será um projeto com o qual o povo (aquele que dá suporte real a Lula) possa se identificar, pois não lhe pertence. Chamado às ruas para defendê-lo, ficará em casa. Porque simplesmente não foi ouvido nem chamado ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde, em noite de gala, o Pacto foi apresentado a uma plateia seleta. Por enquanto é um belo texto, certamente será publicado no Diário Oficial, mas será sempre simplesmente isso: um documento elaborado por técnicos competentes e bem-intencionados. Nada mais. É pouco para um país recentemente assolado pelo assalto da direita protofascista, com inegável apoio popular. Será um engano, certamente letal, suporem as esquerdas que os desafios foram eliminados com as difíceis eleição e posse do presidente Lula. Jamais esquecer que muitas vezes águas passadas movem moinhos. Aos incréus sugiro uma mirada em nosso entorno sul-americano, começando por Colômbia, Argentina e a tragédia peruana.

Contra o repouso do guerreiro em plena guerra, sugiro o combate permanente: nos termos de hoje é a batalha ideológica, fundamental para a conquista da sociedade e para a sustentação do governo Lula. Com o PAC, Lula nos promete a retomada do desenvolvimento, e associa o progresso ao combate à megera miséria, filha primogênita da obscena concentração de renda: segundo o IBGE, a renda do 1% de brasileiros mais ricos é 33 vezes superior à renda da metade mais pobre da população.

Que tal irmos mais adiante e fazermos deste país uma grande ágora, promovendo o debate livre e o livre pensar em todos os cantos e a propósito de tudo e de qualquer coisa? Este é o bom momento de o presidente abrir o diálogo nacional, pôr o país a pensar seus problemas e suas soluções com a sociedade. Perdida esta oportunidade (muitas já foram desperdiçadas), podemos ter segurança de que a História nos absolverá? Apostamos todas as fichas da esperança na coragem de Lula, líder e estadista, aquele que vê mais longe que seus acompanhantes de caminhada. O desafio é passar o país a limpo, como reclamava Darcy Ribeiro, usando a reflexão, o livre pensar, o indagar, o questionar, como ferramenta pedagógica. Estimular as dúvidas, e contar que o povo encontrará respostas. Discutir o país. Por que ele é desse jeito? Ao debater a vida nacional e a vida em seu bairro, em sua cidade, o transporte, a violência, o desemprego, a escola, o sistema político... o povo, sozinho, sem o concurso de instrutores ou conselheiros, compreenderá que nem a pobreza nem a riqueza são fenômenos naturais. A partir desse momento ele conquistará a liberdade que a sociedade de classes lhe nega, e se transformará em cidadão. Sujeito ativo, se transformará em agente do processo histórico.

Um ensaio pode ser trabalhar o PAC como um projeto político, recordando o entusiasmo e a confiança que levaram o antigo PT a implantar o orçamento participativo, hoje uma saudosa lembrança.

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Aula Magna – Assim foi definida, por muitos (defensores ou não da justiça social), a participação de João Pedro Stédile na farsesca “CPI do MST”, que vai se extinguindo na Câmara dos Deputados. Como o inquérito carece da necessária definição de objeto, a reunião da última terça-feira deu ao líder do MST uma oportunidade — rara — de falar ao grande público, com fineza e acuidade, sobre modelo agrário, relações de produção, sociedade de classes e outros temas que domina com brilhantismo, para o espanto de uma meia dúzia de beócios (a começar pelo presidente e o relator do colegiado) que avaliaram poder acuá-lo. Um dos pontos que a aula de Stédile nos deixa para reflexão é a reprodução do modelo agroexportador colonial — que produzia riqueza sem desenvolver o país — no agronegócio que aí está, cantado em verso e prosa pelo aparelho ideológico do grande capital. Outro é o riquíssimo exemplo, de confiança e aposta na capacidade de auto-organização do nosso povo, que o MST e outros movimentos sociais oferecem às esquerdas brasileiras. Há de ser por isso que são tão temidos e odiados. Oxalá essa Aula Magna ecoe nos gabinetes de nossos e nossas parlamentares e diga algo aos partidos que confundem tática com estratégia.



* Com a colaboração de Pedro Amaral