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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 15 de março de 2019

A pergunta ecoa nas ruas do Brasil e Argentina: ‘Quem mandou matar Marielle?’

Sexta, 15 de março de 2019

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Protestos no dia em que as mortes da vereadora e de Anderson Gomes completam um ano cobraram das autoridades que encontrem os mandantes do crime

Faixa estendida em frente ao Masp, na avenida Paulista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
Milhares de pessoas saíram às ruas na noite desta quinta-feira (14/3), no centro do Rio de Janeiro, no coração de São Paulo e nas vias largas de Buenos Aires, capital da Argentina. A intenção era lembrar de Marielle Franco, assassinada há exatamente um ano. Mais do que lembrar o legado, a luta e a memória deixados pela vereadora, o povo na rua entoava a pergunta “quem mandou matar Marielle?”, a respeito dos mandantes e dos interesses por trás do crime.
As prisões do PM da reserva Ronnie Lessa e do ex-PM Elcio Vieira de Queiroz, acusados de terem executado a parlamentar e o motorista Anderson Gomes, não geraram sensação de justiça feita. As pessoas fizeram questão de demonstrar sua indignação, a começar pela missa em memória por sua morte. O rosto, o nome e a luta de Marielle estavam em camisetas, cartazes, panfletos, adesivos.
Ato na Cinelândia, centro do Rio, reuniu milhares de pessoas | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo
Em um palco montado na Cinelândia, no centro do Rio, Anielle Franco, irmã de Marielle, subiu por volta de 18h. Ao seu lado estava Luyara, filha da vereadora executada. “Hoje é dia de lembrar o trabalho, a pessoa Marielle. Estamos aqui com o coração partido e com muita dor, mas somando.  Marielle está presente, sim. Em vez de espalhar o ódio, temos que espalhar afeto. Marielle era afeto, uma mulher negra, favelada, lésbica. E ela tinha uma família. Peço encarecidamente que espalhem as coisas boas, que sigamos juntos. Eles querem nos calar, tentar nos calar, mas não vão conseguir”, disse Anielle, levantando a multidão .

Centro da cidade estava repleto de mensagens sobre a vereadora | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo
O palco revesou entre mulheres influentes na política do Rio, apresentações artísticas e de grupos de Rap. Em uma das falas, Dayse Oliveira, do PSTU, declarou que as mulheres “não tem medo do Bolsonaro”, se referindo ao presidente Jair Bolsonaro (PSL). “Não merece confiança uma democracia dos ricos, só a dos pobres consertará esse país”, discursou, entre apresentação de rappers e a performance de um grupo teatral. “Oh Marielle, não vamos esquecer, foi a direita que mandou matar você”, puxou outra manifestante. Também teve a cobrança para que o delegado Giniton Lages, responsável pelas investigações desde o seu início, não deixe os trabalhos, como ordenado pelo governador Wilson Witzel (PSC). Um outro delegado ficaria responsável por apurar quem ordenou a morte da vereadora.
Manifestante levou cartaz gigante com a pergunta cobrada por todos em coro | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo
De diversas idades, mulheres explicaram por que ocuparam a Cinelândia. “Por justiça. A morte dela é uma intimidação, uma tentativa de cala a boca, para as pessoas não reagirem. Mas essas pessoas pisaram em um formigueiro, era para calar, só que nós, os alvos, negros, mulheres e LGBTs, não aceitamos este lugar. Não vamos nos calar”, explicou Suely Jardim, aposentada de 77 anos. “É lutar por direitos, quiseram calar uma mulher negra para calar as demais, calar a esquerda”, justifica Sofia Gramático, estudante de 13 anos.
Ambulantes vendiam camisetas, como esta contrária ao presidente Jair Bolsonaro e o comparando ao líder nazista Adolf Hitler | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo
Já a administradora Lorene Rocha, 24, explicou que o crime de Marielle a fez perceber a importância da política. “Antes da morte da Marielle, eu não achava que a política poderia atingir a vida de uma pessoa tão diretamente como a atingiu. Depois, vi que somos muito vulneráveis, me vi ainda mais vulnerável como mulher, negra. Vim dar força ao movimento, só unidas nós, mulheres negras, vamos avançar. Somos sementes de Marielle”, contou. “Precisamos estar aqui para mostrar que, apesar de morta, Marielle deixou sua representatividade viva em cada uma de nós. Mataram ela, mas nós estamos aqui. Esse é o recado”, discorreu a jornalista Nicole Leão, de 33.
Lorene e Nicole participaram do ato no RJ | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo
Em meio à multidão que tomou conta da Cinelândia – os organizadores não divulgaram estimativa de público –, ambulantes vendiam placas de rua e camisetas com o nome de Marielle Franco. Os itens eram comercializados a R$ 10 e R$ 20, respectivamente. A procura era grande, principalmente pela placa, item que virou símbolo da luta, potencializado pelas tentativas da oposição em quebrar este símbolo, como fez o então candidato e hoje deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL) durante a campanha eleitoral, ao lado de Witzel, apoiador de Bolsonaro.

Manifestação em SP

A concentração do ato na cidade de São Paulo teve início às 17h, na Praça Oswaldo Cruz, no início da Avenida Paulista. Por volta das 18h, atividades artísticas e falas públicas iniciaram o ato, que começou a caminhar às 19h, rumo ao Escritório da Presidência da República, na altura do metrô Consolação. Durante as falas no carro de som, a deputada estadual eleita Erica Malunguinho (Psol) emocionou e animou o público.
Manifestantes colam adesivos com o nome de Marielle nas placas de ruas em SP | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
“Estou aqui como Erica Malunguinho, como deputada estadual, mas também como uma mulher preta, como uma cidadã, como uma transeunte”, bradou a deputada, que em seguida falou sobre Marielle. “Tive duas oportunidades de proximidade com Marielle: uma foi no quilombo urbano de nome Aparelha Luzia e outra quando nós íamos para o congresso de afro-brasileiras na Universidade de Harvard [EUA]. Ela não pode ir [nesse evento], pois apagaram a vida física de nossa irmã”, disse relembrando o mestrado de Marielle que virou um livro intitulado . “O estudo de Marielle, na sua dissertação de mestrado [“UPP: a redução da favela em três letras”], deflagra a falsidade do Estado. Dizia que a intervenção militar era uma política pública, era uma farsa, era simplesmente intervenção militar por intervenção militar. É essa mesma farsa, do Estado e da sociedade civil, que nós estamos desmascarando”, disse.
Manifestantes caminham pela Paulista, em São Paulo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
Em um discurso firme, a deputada estadual questionou os manifestantes sobre quem realmente está do lado das mulheres negras. “Queremos saber quem é que está conosco. É muito fácil falar Marielle presente, mas eu quero saber quem está disposta a abrir mão dos seus privilégios e dizer mulher preta na frente. E não estou falando para fazer barricada, é mulher preta no poder. A memória de Marielle deve ser colocada no lugar onde as mulheres pretas tenham voz, tenham vez, e isso significa poder, poder para existir, não poder destrutivo, é poder para existir. Enquanto as mulheres pretas, enquanto a favela, enquanto a periferia amargar nas mãos de um estado opressor, não haverá de ter paz para ninguém. Enquanto a favela não emergir economicamente não haverá de ter paz para ninguém”, sustentou Erica.
Integrante do grupo Ilu Oba de Min | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
Outras parlamentares estiveram presentes no ato, como Sâmia Bomfim, deputada federal, e Mônica Seixas, deputada estadual ao lado da Bancada Ativista, ambas pelo Psol. Em entrevista à Ponte, Sâmia engrossou o discurso do partido de que, agora, é preciso questionar quem matou Marielle. “A gente só conseguiu ter a primeira resposta sobre quem apertou o gatilho um ano depois, isso significa que existe uma demora muito grande por parte do estado em dar uma resposta, uma resposta exigida não só pelas mulheres brasileiras, mas por todos os lugares do mundo”, explicou. “Hoje, Marielle se tornou um símbolo, ela é o principal símbolo da luta democrática brasileira, da luta contra o feminicídio, da luta contra o genocídio da população negra”, defendeu.
Ato caminha em direção ao Escritório da Presidência da República, próximo ao metro Consolação | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
Para Monica Seixas, a morte de Marielle mostra a fragilidade da segurança para defensores de direitos humanos e parlamentares no Brasil. “A gente está vivendo, desde a morte dela, um marco de estreitamento de regime, a gente sente mais um estreitamento dos direitos democráticos, das liberdades individuais. O Brasil é o país que mais mata ativistas no mundo, mas a gente não achava que alguém ia ser morto por defender as ideias que a gente defende no dia a dia. A luta de Marielle nos faz muita falta, era uma mulher muito forte, que trazia pautas muito importantes, sobretudo de segurança pública que estava muito em voga no ano passado. A gente tem a responsabilidade de manter viva a luta dela”, reconhece Seixas.
Mesmo com chuva manifestantes caminham em São Paulo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
Com cerca de 2 mil pessoas, o ato tinha principalmente mulheres. Para Karina Cruz, 20 anos, atualmente desempregada, a demora nas investigações mostra que vidas negras não importam para o Estado. “A morte de Marielle foi como um tiro, não atingiu só nós, a população negra, mas todo mundo que busca os ideais que ela lutava”, defende.
A assistente administrativa Vanessa Cristina Machado, de 34 anos, completa a ideia. “Esse ato mostra que nós, enquanto pessoas negras e periféricas, estamos presentes e que nossas vidas significam. A morte de Marielle não será em vão, como a morte de muitos outros não serão em vão. Morremos todos os dias e ninguém dá importância, por isso nos mostrar presentes é importante. As pessoas que mataram Marielle começaram a sair do bueiro, isso é importante, agora precisamos saber quem mandou matar”, diz.
Cerca de 2 mil pessoas estavam presentes na Av Paulista, em São Paulo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
Antes da caminhada, um ato religioso homenageou a memória de Marielle. A missa aconteceu na Igreja São Luís Gonzaga, na região da Avenida Paulista, e reuniu cerca de 100 pessoas. Em uma das falas, os padres responsáveis pela missa compararam as lutas de Marielle às lutas de Jesus Cristo. “Matar e morrer por uma causa, foi o que aconteceu com Cristo e foi o que aconteceu com Marielle Franco”, disse um dos padres.
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Hermanos homenageiam Marielle

Na capital argentina, Buenos Aires, em frente ao Obelisco (monumento histórico localizado no centro da cidade), manifestantes organizaram uma roda de intervenções artísticas e discursos. Entre os presentes estavam coletivos artísticos ligados às questões de raça e gênero, bem como movimentos sociais e políticos vinculados à esquerda. As manifestações prestaram diversas homenagens a Marielle a partir das 18h.
Nora Cortiñas, das Madres da Praza de Mayo, discursa em ato por Marielle | Foto: Olavo Barros/Ponte Jornalismo
Entre os presentes, estava Nora Cortiñas, uma das fundadoras do movimento Mãe da Praça de Maio, criado em oposição à ditadura militar argentina, o destaque foi para um raciocínio que permeou todos os discursos: o assassinato de Marielle se trataria de um “feminicídio político” dado num contexto de “avanço da pauta conservadora no continente latino-americano”.
Em diversos momentos, os manifestantes levantaram a necessidade de “resistir e cobrar das autoridades respostas sobre quem é o mandante do crime”. Performances como a da cantora Shirlene Oliveira, que interpretou à capela a canção “O bêbado e o equilibrista”, eternizada na voz da brasileira Elis Regina, levaram muitos dos presentes às lágrimas. Um retrato do presidente Jair Bolsonaro foi queimado em forma de protesto.
Estação de metro ‘renomeada’ por manifestantes em Buenos Aires | Foto: Olavo Barros/Ponte Jornalismo
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