Na semana passada, entre 19 e 24 de agosto, as queimadas na Amazônia foram um dos assuntos mais comentados no Twitter mundialmente. Em meio à polarização no Twitter, as hashtags foram mais uma vez usadas como armas para ganhar a opinião pública – mas dessa vez, com auxílio de robôs e turbas virtuais, segundo levantamento feito pela Agência Pública.
No dia 21 de agosto, o presidente acusou, sem provas, organizações não governamentais (ONGs) pelos incêndios na Amazônia. “Pode estar havendo a ação criminosa desses ‘ongueiros’ para chamar atenção contra o governo do Brasil”, disse em coletiva de imprensa. No mesmo dia, seus apoiadores lançaram a hashtag #AmazoniaSemOng, que chegou aos assuntos mais comentados da rede no Brasil.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também recebeu uma hashtag de apoio nas redes. A tag foi lançada, com pouca expressividade, no dia 21 de agosto. No dia seguinte, depois que o partido Rede Sustentabilidade entrou com pedido de impeachment do ministro, a #SomosTodosRicardoSalles chegou aos Trending Topics no Brasil.
A Pública teve acesso às primeiras 50 mil postagens de cada uma das hashtags #AmazôniaSemONG e #SomosTodosRicardoSalles durante os dias 21 e 22 de agosto, extraídas pelo Laboratório de Pesquisadores Forenses Digitais (DFRLab), da organização Atlantic Council. Os dados mostraram que por trás das tags estavam perfis com indícios de automação, responsáveis por manipular as tendências na rede social.
Além disso, a reportagem verificou que o uso das hashtags foi orquestrado em grupos bolsonaristas no Whatsapp. Um número identificado como “Tv a Cabo” publicou em quatro grupos ligados a Jair Bolsonaro de diferentes estados mensagem chamando para “Twittaço” com as tags #AmazôniaSemONG e #ApoioTotalRicardoSalles.
A mensagem também conclamava os participantes do grupo a seguir a conta oficial de Twitter da Secretaria Especial de Comunicação Social do governo federal (Secom), criada no auge da crise, em 21 de agosto.
Mensagem chamando para twittaço em favor do ministro Ricardo Salles e contra ONGs na Amazônia circulou em grupos do Whatsapp
Mensagens quase idênticas foram publicadas mais de 100 vezes pelo perfil @direitaforte7 no Twitter. O perfil, que foi excluído pela plataforma, mencionava outras contas, como a do próprio presidente e de ministros do governo, chamando para o “Twittaço”.
Procurada, a Secom não respondeu sobre sua relação com o Twittaço até a publicação da reportagem.
Poucos perfis, muitas postagens
O primeiro registro da hashtag #AmazoniaSemONG apareceu 4 horas depois de Bolsonaro publicar fala acusando as ONGs pelos incêndios na Amazônia em seu Twitter. Às 20h10 do dia 21 de agosto, o influenciador digital conservador Jouberth Souza, que acumula mais de 45 mil seguidores na rede social, comentou em publicação do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro: “Usem a tag: #AmazoniaSemONG”. O comentário teve 130 retweets.
Primeira menção à tag #AmazôniaSemONG veio do perfil @Jouberth19
Uma hora depois, a tag já tinha mais de 1500 menções no Twitter, de 617 perfis diferentes. A grande maioria de postagens vinha de usuários anônimos e alguns ativistas digitais mais influentes.
Em entrevista, membro do MPF explica que Justiça livrou fazendeiro e empresa que pulverizaram pesticida sobre índios Guyra Kambi’y no MS, apesar de um vídeo comprovar o ataque
Pedro Grigori | Agência Pública/Repórter Brasil
26 de agosto de 2019
No sexto dia do ano de 2015, a comunidade indígena de Guyra Kambi’y, na região de Dourados, no Mato Grosso do Sul, amanheceu com o barulho de um avião agrícola que voava baixo pelo céu. “Olha o veneno, tá passando até em cima de nós agora”, diz uma indígena em vídeo gravado no momento da pulverização. A comunidade, de cerca de 150 pessoas, fica ao lado de uma lavoura de soja, separada apenas por uma estrada de terra com menos de 15 metros de largura.
“Olha lá as criançadas”, repete a mulher diversas vezes. No fundo, crianças brincam sem entender o risco que corriam. Horas depois, elas e os adultos da comunidade apresentaram dores de cabeça e garganta, diarreia, febre e irritação na pele e nos olhos. O Ministério Público Federal (MPF) do Mato Grosso do Sul ajuizou uma ação por danos morais coletivos pela pulverização de agrotóxico no valor de R$ 286.582,00 contra o piloto, o proprietário rural da lavoura em frente a comunidade indígena e a empresa de aviação agrícola.
Quatro anos e meio depois, a 1ª Vara da Justiça Federal de Dourados considerou improcedente a acusação. “Há atividades que não podem ser suprimidas sem grave prejuízo à coletividade. O próprio combate à dengue, por exemplo, exige, muitas vezes, aplicação por pulverização de inseticida pelas ruas da cidade, para matar o mosquito”, declarou o juiz.
O procurador do caso, Marco Antônio Delfino de Almeida, atua em diversas ações de defesa de comunidades indígena em Dourados. Em entrevista à Agência Pública e a Repórter Brasil, ele relata episódios na região onde agrotóxicos são utilizados como armas químicas. “É uma espécie de terrorismo. Uma agressão química, uma versão moderna do agente laranja, utilizado na Guerra do Vietña”, diz. Indígenas da comunidade alegam que há aplicações de nas mesmas circunstâncias desde 2013, tanto de avião quanto de trator.
Porém, para o magistrado que julgou o processo, uma única aplicação de agrotóxico sobre a aldeia indígena não é considerada irregularidade. Para causar dano à saúde, a aplicação de agrotóxico “deveria ser de forma não ocasional nem intermitente”.
A indenização seria revertida para programas de saúde e de educação na região da comunidade indígena, além do acompanhamento da saúde e monitoramento mensal da qualidade do solo e da água utilizada pelos Guyra Kambi’y, durante 10 anos.
O Ministério Público vai recorrer da decisão.
Ascom MPFMS
O procurador Marco Antônio Delfino de Almeida relata casos em que agrotóxicos foram usados como armas químicas
Para o procurador, há uma semelhança entre o caso recente que fez o Paraguai ser condenado pelo Comité dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.
Em meados de agosto, o Paraguai foi o primeiro país a ser culpabilizado por violação de direitos humanos com conotações ambientais pelo uso massivo de agrotóxicos. Em 2011, o agricultor Rubén Portillo morreu por conta de excesso de uso de químicos em uma área rodeada por fazendas de soja, a maioria de brasileiros, a apenas 250km de Dourados. A ONU pede que o país puna os responsáveis e auxilie as demais vítimas de intoxicação.
Leia a entrevista:
Como se iniciou o processo de ação civil da comunidade indígena de Guyra Kambi’y?
Foi um processo iniciado pela própria comunidade mediante gravação de celular. A comunidade gravou a pulverização, e depois disso fizemos uma perícia criminal que constatou que efetivamente a plantação sofria efeitos de pulverização aérea.
E o processo já foi iniciado na época?
Não. Demorou um tempo para darmos início à ação. Praticamente três anos, porque aquilo era novo para a gente. É uma situação muito específica, e teve uma curva de aprendizagem para que pudéssemos entender e tipificar isso da melhor forma. Logo após darmos início a primeira ação por um caso como esses aqui em Dourados, por volta de 2017, já fizemos várias outras ações no mesmo sentido. Depois que conseguimos entender o modus operandi, as falhas, e o processo, nós já iniciamos várias ações no mesmo período. Pedimos a multa (no valor de R$ 286.582,00), com o objetivo de fazer o monitoramento que o Estado não faz.
Para estudioso português de governos autoritários, bolsonarismo soma “nostalgia da ditadura, discurso sobre a corrupção” e “ligação ao mundo evangélico”
Manuel Loff tinha 9 anos quando um grupo de capitães e soldados portugueses, cansados de serem mandados à África para uma guerra sanguinária contra os movimentos de libertação das colônias, derrubou uma ditadura que já durava 41 anos – a mais longeva da Europa. A lembrança mais viva que tem daquele dia 25 de abril de 1974, quando a Revolução dos Cravos colocou fim ao regime salazarista (fundado por António de Oliveira Salazar), é do irmão, que tinha 14 anos, bêbado, a gritar: “Já não vou para a guerra!”.
Há pouco tempo uma amiga de infância fez Loff recordar que com 10 anos ele escreveu e dirigiu uma peça de teatro para ser encenada pelos colegas da escola. O tema era os últimos dias de Hitler no bunker. “A mim próprio me surpreende, não sei como cheguei até lá com essa idade”, confessa. Quando era criança, o pai lhe contava histórias sobre a Guerra Civil Espanhola. Ainda garoto, ia a bibliotecas tomar emprestados livros sobre as Grandes Guerras e pedia de presente de Natal obras sobre o nazismo. Hoje, aos 54 anos, é um dos historiadores mais respeitados em Portugal quando o assunto são regimes autoritários, em especial como o salazarismo e o franquismo. É autor de vários livros, entre eles O nosso século é fascista (2008) e Ditaduras e revoluções (2015) – nenhum deles publicado no Brasil.
Atualmente divide o seu tempo entre Portugal, onde é professor associado do Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto e pesquisador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e Espanha, onde realiza parte da sua investigação. É doutor pelo Instituto Universitário Europeu, em Florença, na Itália, e colabora com várias universidades e centros de investigação europeus e americanos. Também escreve com frequência para jornais e revistas portugueses. Acompanha com atenção e preocupação o crescimento da extrema direita no mundo. Não hesita em classificar o governo de Jair Bolsonaro como representante do neofascismo. “O discurso que tem sobre os movimentos sociais e políticos que se lhe opõem, sobre as mulheres, as minorias étnicas, a família, a nação, o Ocidente configura um neofascismo adaptado ao Brasil do século 21”, resume. Leia abaixo a entrevista.
Para Loff “o que vemos hoje é um ataque a toda lógica redistributiva das políticas sociais”
Você estuda há mais de 30 anos os regimes autoritários. Quando olha para a extrema direita do século passado e a de agora, quais diferenças vê?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que já havia extrema direita antes do fascismo: desde o início do século 19 havia uma extrema direita antiliberal e contrarrevolucionária, mas era muito elitista. A extrema direita fascista, que é mais moderna, nasce a partir do fim da Primeira Guerra Mundial – como nasce a esquerda radical também. Depois de 1945, há um primeiro ciclo da extrema direita em que, em grande parte dos países europeus, ela, embora presente, é ilegalizada. Por exemplo, logo a partir de 1947 na Alemanha há partidos da extrema direita, com vários nomes, e só um deles é ilegalizado. É a geração dos nostálgicos e daqueles que se organizavam, em grande parte clandestinamente, para tentar salvar da Justiça muita gente que era procurada. Portanto, a extrema direita de 1945 até 1968, mais ou menos, é de uma geração que viveu a Segunda Guerra Mundial, viveu os regimes fascistas italiano, alemão e os movimentos fascistas de toda a Europa. Depois há uma segunda geração que, como evidentemente a esquerda dos anos 60, é diferente da anterior, que aprendeu várias das lições do passado. Por exemplo: abandonou o discurso abertamente racista para passar a um discurso culturalista. Desde a libertação de Auschwitz, em 1945, o racismo perdeu um enorme espaço, embora esteja presente, não pode ser assumido. Hoje, os racistas dizem que a sua incompatibilidade com as minorias é de natureza cultural.
Documentos anexados pela defesa de executivos da Odebrecht no processo da Lava Jato sugerem que fatos ocorridos em 2013, quando a Lava Jato era restrita à Polícia Federal (PF), foram ignorados pelo ex-juiz Sergio Moro, que recebeu denúncias sobre supostas ilegalidades na obtenção de áudios e e-mails relacionados aos doleiros Carlos Habib Chater e Alberto Youssef.
Segundo recursos que tramitaram na 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba e em tribunais superiores, as decisões teriam caracterizado “eloquente cerceamento de defesa” e teriam levado o juiz a sentenciar réus de forma “açodada” e “à revelia de relevantes questões” levadas aos autos do processo pela defesa.
Depoimentos de policiais prestados no âmbito da ação penal 5036528-23.2015.4.04.700, segundo advogados, mostram que mensagens trocadas por celular entre os doleiros Carlos Habib Chater e Alberto Youssef foram obtidas diretamente pela PF de uma empresa de telefonia do Canadá, sem passar pelo crivo da Autoridade Central brasileira, gestora do acordo de cooperação internacional entre os dois países. O procedimento, conforme a defesa, foi ignorado por Moro, que também não teria levado em conta denúncias sobre grampos ilegais usados contra Youssef e sobre documentos da Suíça sobre os quais havia dúvida se poderiam ser usados como prova no processo.
Fabricante austríaca de armas, interessada em abrir fábrica no Brasil, é a principal beneficiada dos contratos sem licitação; além da Glock, outras dez empresas privadas venderam para o governo
Levantamento inédito da Pública mostra que 11 empresas brasileiras e estrangeiras venderam armas e serviços de segurança para o governo sem licitação. Foto: Gabinete de Intervenção Federal/Reprodução
Onze empresas privadas de segurança e tecnologia nacionais e internacionais assinaram cerca de R$ 140 milhões em contratos sem licitação com o governo brasileiro, todos destinados à intervenção federal no Rio de Janeiro.
O valor — resultado de um levantamento inédito da Pública — foi contratado pelo governo federal sob a justificativa de que era preciso pôr em prática ações emergenciais de curto prazo no estado. A intervenção no Rio foi decretada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em fevereiro de 2018, teve início já no mês seguinte e seguiu até dezembro.
Em encontro fechado no Ministério da Agricultura, ruralistas do Pará cobram do governo Bolsonaro – apoiado por eles desde a campanha – medidas contra política ambiental, e mesmo ilegais, como fim da fiscalização e revogações de UCs
Quem entrasse desavisado pela porta do auditório Olacyr de Moraes, no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), no início da tarde do último dia 10, teria dificuldade em saber que se tratava de um encontro entre grandes fazendeiros paraenses e autoridades das áreas da agricultura e do meio ambiente do governo Jair Bolsonaro. Em vez dos esses chiados, típicos do sotaque do Pará, ouvia-se na plateia os erres marcados dos sotaques sulistas, comuns entre os que detêm latifúndios em solo amazônico. Reunidos no auditório, os produtores rurais foram à Brasília apresentar a fatura do apoio enfático dado a Jair Bolsonaro durante a campanha presidencial.
A reportagem da Pública presenciou as quase quatro horas do encontro, idealizado pela Federação de Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa) e bancado pelo governo, sobretudo pelo titular da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf), Luiz Antônio Nabhan Garcia. Ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan Garcia foi tratado na reunião como “vice-ministro” apesar da inexistência formal do cargo. Foi ele quem gravou vídeos disparados pelo WhatsApp convocando os produtores ao encontro. O convite empolgou: o auditório ficou completamente abarrotado e alguns fazendeiros ficaram do lado de fora, esticando o pescoço para acompanhar a discussão.
Para Rafael Georges, da Oxfam Brasil, agenda liberal “pegou carona” na eleição de Bolsonaro, mas não prospera entre os brasileiros, como demonstra a resistência da população à reforma da previdência
10 de abril de 2019
Anna Beatriz Anjos
Mais de 80% dos brasileiros consideram que é obrigação do Estado diminuir as diferenças entre os muito ricos e os muito pobres; 75% concordam que as escolas públicas de ensino fundamental e médio são direito de todos; e 73% defendem o atendimento universal em postos e hospitais. Esses dados mostram que, no Brasil, a população ainda espera muito do Estado e, por isso, o receituário liberal que prega a diminuição de seu tamanho e influência na economia não encontra apoio maciço social por aqui.
Essa é a avaliação do cientista político Rafael Georges, coordenador de projetos da Oxfam Brasil, que apresentou ontem a pesquisa desenvolvida em parceria com o Instituto Datafolha sobre a percepção dos brasileiros em relação às desigualdades. O estudo, que está em sua segunda edição – a primeira foi divulgada em 2017 –, também revela que 86% dos entrevistados acreditam que o país não avançará se não for atenuada a distância entre a base e o topo da pirâmide social.
Em entrevista à Pública, Georges diz que a resistência à reforma da Previdência é um “termômetro muito claro” de como a agenda econômica liberal “não prospera no Brasil” e destaca que ela faz sentido apenas para “quem está muito confortável hoje e vive nos seus apartamentos no centro expandido”. “Para quem depende de serviços públicos para poder manter um orçamento balanceado ou minimamente digno, isso não é um projeto”, analisa.
Repórter vai a Caarapó, no Mato Grosso do Sul, e colhe depoimentos e imagens que mostram as circunstâncias absurdas da prisão de Ambrósio, 70 anos, e a violência dos jagunços contra os Guarani-Kaiowá
3 de setembro de 2018
Renan Antunes de Oliveira
Menina de 13 anos foi alvo de tiros ao colher melancia
Operação de guerra foi movida pelo Estado a pedido dos vigias da fazenda
Área onde se deu conflito já foi reconhecida como indígena
Faz só uma semana que Ambrósio está no presídio de Caarapó, e a fama dele não para de crescer: de roceiro e de xamã de seu povo, virou herói e mártir para os 9 mil Guarani-Kaiowá da reserva Tey’i Kue, no sul do Mato Grosso do Sul.
No domingo 26 de agosto, nuns grotões quase na fronteira com o Paraguai, ele enfrentou apenas com reza forte a tropa de choque da PM: levou cinco tiros de balas de borracha e foi jogado numa cadeia, onde está incomunicável desde então.
Ambrósio é um líder espiritual. A polícia do Mato Grosso do Sul (MS) sustenta que ele, sozinho, atacou a soldadesca com um facão, quando então foi contido pelos tiros.
Renan Antunes de Oliveira/Agência Pública
Ambrósio, com o cajado, na única foto conhecida, ensinando crianças em colheita
A versão oficial balança quando se vê a sua única foto conhecida: Ambrósio cercado de alunos da rede municipal indígena, ensinando a criançada a colher, apoiado num cajado.
O xamã é um velhinho frágil, de apenas metro e meio de altura.
Só fala guarani. Quem o conhece atesta que tem dificuldades para caminhar. Brandir um facão parece fora de suas possibilidades.
O que as testemunhas indígenas da cena viram foi o velhinho ralhando com os soldados, antes de se esconder sob o trator e sair baleado.
Seria só mais uma escaramuça da permanente luta dos índios pela retomada de suas terras ancestrais, se não fosse a mão pesada das autoridades contra o xamã.
Ambrósio logo se transformou num embaraço para o governo do estado.
O Ministério Público Federal (MPF) requisitou às forças policiais estaduais imagens e documentos referentes à operação e instauração de inquérito pela Polícia Federal. “A pertinência da requisição decorre da atribuição constitucional de competência federal para apurar disputas fundiárias relacionadas aos Povos Indígenas”, diz o ofício do MPF, cobrando o governo do estado por meter sua tropa numa área de competência federal.
O incidente que levou a PM a invadir a aldeia foi uma gota no oceano. Para socorrer quatro vigias com medo dos indígenas e uma roça de melancias na sede da fazenda, o governo montou uma gigantesca operação militar.
As autoridades estaduais trataram o caso como uma invasão indígena de propriedade privada a exigir repressão imediata, despachando as tropas. O secretário de Justiça foi ao local para “dar suporte à operação” de salvar a sede da fazenda.
Detalhe: por ser uma das fazendas mais antigas da região, a sede da Santa Maria é simbólica para os produtores rurais que brigam para permanecer em terras indígenas. Eles não querem entregá-la aos Guarani, por isso esperneiam na Justiça e com a jagunçada.
Ela veio sendo reduzida de 55 mil para seus atuais 3 mil campinhos pelos próprios Guarani, que retomaram as redondezas, menos a sede.
Vivendo em uma área inadequada para o seu estilo de vida, os indígenas buscam a retomada do seu território tradicional
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A Funai já concluiu os estudos que reconhecem a Santa Maria como área indígena, mas desde a queda da ex-presidente Dilma Rousseff foi suspenso o processo de demarcação. No vazio, os fazendeiros foram à Justiça pedir a anulação do reconhecimento.
“Queremos retomar as casas da sede não pelo valor, mas pelo que significou em décadas de exploração”, ensina Celso, o cacique da Tey’i Kue.
A confusão começou na linha imaginária que separa a casa-grande da Santa Maria e a reserva Tey’i Kue, que a engolfa, hoje cravejada de malocas, entre elas a do xamã.
Lá pelas 9h daquele domingo, a menina Janiele, da maloca da dona Maria, estava numa roça procurando uma melancia, quando os vigias da sede da fazenda dispararam foguetes de artifício e tiros de verdade contra ela.
Janiele tem só 13 anos, mas já é calejada em enfrentar jagunços.
Ela se jogou no solo e sumiu.
Renan Antunes de Oliveira/Agência Pública
Janiele conta como escapou dos tiros dos jagunços
Mais tarde, Janiele contou, em guarani: “Ouvi o barulho e vi alguém dando tiros por baixo de um carro Hilux, me joguei no chão e sai rastejando”.
Dona Maria estava em casa quando ouviu o primeiro “pá-pá” das armas: “Olhei na direção da Santa Maria e não vi mais a menina, achei que ela estava morta”, contou, na sexta, dia 31, ainda agitada, com a mesma emoção daquele domingo.
O ataque à menina e a gritaria de dona Maria mobilizaram centenas de indígenas.
Eles já saíram das ocas das proximidades com orelhas em pé.
Em seguida, correram para a sede da fazenda.
A essa altura a notícia da “morte” de Janiele era dada como fato consumado.
Os indígenas ficaram furiosos.
Começaram a bater boca com os jagunços: Giltinho, Milton, Márcio e Paulo (nenhum quis dar entrevista). Os indígenas não sabem qual deles atirou contra a menina.
Foi em algum momento dessa hora que Ambrósio se juntou aos seus, rezando forte.
Aí eles se moveram como uma onda para cima dos jagunços, exigindo a menina sã e salva.
Apavorados, os jagunços se trancaram na casa-grande e chamaram a Polícia Militar do MS e o temível DOF, o destacamento federal de fronteira, também mantido pelo MS, quase 200 homens.
A PM chegou em menos de 30 minutos para resgatar os quatro brancos ameaçados por um número de indígenas que varia, de acordo com a fonte, entre 20 e 50, no que seria uma tentativa de invasão.
As imagens da PM são pífias.
Nelas, não se vê nenhuma agressão, só o ronco do helicóptero. E um número desproporcional de soldados em relação aos indígenas.
Lá pelas tantas, Janiele se levantou da grama onde estava rastejando. Avisou que estava viva e correu para a segurança de sua oca.
Mas era tarde demais. Na ação das autoridades, o caso já estava oficialmente declarado como invasão de propriedade privada, não uma batalha por melancias.
E quando a tropa de choque invadiu só havia um indígena dentro do perímetro da sede, ainda assim fora da casa-grande.
Adivinharam: o xamã Ambrósio, que não conseguiu correr como os outros. Sempre murmurando suas rezas, tentou se esconder embaixo de um trator.
Levou aqueles tiros de borracha, um atrás de cada joelho, um na coxa direita, outro no braço direito.
Arrastaram o velhinho preso, sem nem saber o nome dele: escreveram no boletim de ocorrência que se chama Ambrósio Alcebíades.
Renan Antunes de Oliveira/Agência Pública
Tadeu exibe a carteira de aposentado do rezador
É Ambrósio Arcibide. Da etnia Kaiowá. Nascido em maio de 1948. Aposentado com um salário mínimo rural.
Os indígenas que tentaram resgatá-lo foram contidos por guardas armados de escopetas e protegidos por escudos, nesse caso desnecessários, porque nenhuma flecha foi lançada contra o pelotão.
O xamã baixou direto ao presídio de Caarapó, entre bandidos comuns.
Ficou incomunicável. Por sete dias, até a tarde do domingo em que escrevo esta reportagem numa lan house em Dourados, o velhinho não pode ver o irmão, Tadeu, nem os netos – nem os caciques da aldeia.
Por quê? “Se um de nós for lá sozinho, será preso e acusado dos mesmos crimes”, explica o irmão.
“Pra gente ir lá precisamos da proteção de um procurador federal, a polícia [local] não respeita ninguém. Ambrósio é o refém deles. Querem pegar mais um de nós”, explica o líder Otoniel.
Se ninguém pode ir ao Ambrósio (este repórter teve acesso negado ao presídio), fomos à casa dele.
É um barraco feito com cascas de árvores – quem se encosta na parede vê a sede da Santa Maria ao fundo.
A família está em choque com a prisão – todas as mulheres disseram em guarani que querem ele de volta no pátio, onde tomam conta dele.
Renan Antunes de Oliveira/Agência Pública
Familiares de Ambrósio, na frente da maloca dele
Pode demorar: o delegado da Polícia Civil de Caarapó o acusou de roubo, cárcere privado e resistência à prisão.
O advogado Handerson Santos, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI, órgão da Igreja Católica), pediu o relaxamento da prisão.
O caso foi às mãos de um juiz federal em Dourados. A Defensoria Pública estava esperando a soltura do xamã para os próximos dias.
Na segunda-feira, o batalhão de choque voltou às ocas das redondezas.
Foram à maloca do xamã em busca de qualquer coisa que pudessem recolher como prova de roubo – saíram de mãos vazias, desapontados com a pobreza franciscana de Ambrósio.
Ali perto, a tropa pegou de surpresa um bando de mulheres e crianças numa sombra. Arrombaram portas, reviraram tudo e foram embora deixando o aviso sinistro de “vamos voltar”.
Exército do futuro
O “naco Santa Maria” da aldeia está cercado por terras reconhecidas como Terra Indígena.
É questão de tempo para ser engolido.
A reserva Tey’i Kue tem 2 mil crianças em dezenas de escolas, com professores Guarani.
A nova geração está sendo educada para retomar as terras em disputa.
Uma aula de teatro tem encenação sobre o conflito.
A semana de leitura tem cartazes sobre demarcação.
Renan Antunes de Oliveira/Agência Pública
Crianças Guarani mobilizadas pela defesa da demarcação
A criançada sabe na ponta da língua como argumentar em defesa da causa.
A Santa Maria ainda pertence a Benedito Penteado, que vive em São Paulo.
Segundo o Sinrural, ele arrendou mil alqueires por 35 sacos de soja por alqueire, que o arrendatário transforma numa renda de R$ 500 mil anuais para o fazendeiro.
Odil Bandeira, diretor do sindicato, que congrega 250 fazendeiros, fez a conta dos alqueires e explica com simplicidade: “Quem perder a terra perde a grana”.
Em entrevista à rádio Super Notícia, Jair Bolsonaro (PSL) errou ao falar sobre questões que envolvem Roraima
Tradicionalmente afeito às pautas de segurança pública, Jair Bolsonaro, deputado federal e pré-candidato à Presidência pelo Partido Social Liberal (PSL), tem abordado também temas como educação, economia e saúde em entrevistas na imprensa. No dia 11 de maio, o presidenciável falou à rádio Super Notícia, de Belo Horizonte, e destacou assuntos como a crise dos venezuelanos em Roraima, o comprometimento do Orçamento federal com despesas obrigatórias e os gastos com a dívida pública.
Apesar disso, a entrevista ganhou repercussão principalmente por conta do trecho em que Bolsonaro ironiza o relatório da CIA, revelado pelo pesquisador Matias Spektor, no qual o então presidente Ernesto Geisel autoriza o assassinato de opositores do regime militar. “Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e, depois, se arrependeu?”, disse o pré-candidato quando questionado, acrescentando ainda que a revelação do relatório teria como objetivo prejudicar a sua candidatura.
O ex-ministro do STF Joaquim Barbosa filiou-se ao PSB e pode se candidatar à Presidência. Foto: Carlos Humberto/STF
O nome do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa tem sido defendido nos últimos anos como uma das alternativas para a campanha presidencial de 2018. Apesar disso, Barbosa sempre se esquivava de se colocar nessa posição. Ele chegou a declarar que não concorreria na disputa. “Seria uma aventura muito grande eu me lançar na política, pelo meu temperamento, pelo meu isolamento pessoal, pelo meu estilo de vida”, disse em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, em dezembro de 2016. Sua filiação ao PSB no dia 6 de abril tornou essa possibilidade mais real e movimentou as redes sociais.
Apesar de ainda não ter se declarado como pré-candidato, o ex-ministro apareceu com 10% das intenções de voto na maioria dos cenários na pesquisa do Datafolha de 16 de abril. Ele disputa espaço como um personagem de fora da política, já que nunca concorreu a nenhum outro cargo e nunca foi acusado de corrupção. Por conta da sua grande popularidade – impulsionada pelo seu papel como relator no julgamento do mensalão –, Barbosa passou a ser alvo de correntes nas redes sociais.
A primeira Conversa Pública de 2018 trouxe para centro do debate o Grupo Globo e os impactos econômicos, sociais e culturais que o conglomerado tem no Brasil. A entrevista realizada na Casa Pública, no Rio de Janeiro, foi conduzida pela jornalista e escritora americana Julia Michaels. Os entrevistados foram Beth Costa, secretária-geral da Fenaj e ex-editora do Jornal Nacional, Ruben Berta, do The Intercept e ex-repórter do O Globo, e Mônica Mourão, do Intervozes.
Da esquerda para direita: a entrevistadora Julia Michaels com Beth Costa, Mônica Mourão e Rubem Berta
José Cícero da Silva/Agência Pública
Julia Michaels – Gostaria que a Mônica, do Intervozes, que fez um estudo muito interessante sobre os donos da mídia no Brasil, falasse sobre a Globo.
Mônica Mourão – A pesquisa se chama “Quem Controla a Mídia no Brasil”. É um projeto da Repórteres Sem Fronteiras realizado em dez países, e o Brasil foi o 11º. A pesquisa analisou 50 veículos, e o critério de escolha foi a audiência. Dos 50 veículos, nove são ligados a grupos religiosos e nove, ao Grupo Globo. A gente tem aí duas forças muito grandes concentrando a mídia no país: a quantidade de audiência dos veículos das Organizações Globo está em primeiro lugar e é maior do que a soma do segundo, terceiro, quarto e quinto lugares juntos. Esse monitoramento no caso do Brasil traz o alerta vermelho de prejuízo para a democracia devido à concentração.
É uma concentração econômica, é uma concentração de audiência e, podemos dizer, uma concentração cultural se a gente pensar na forma como o Grupo Globo se coloca na sociedade. O grande desafio de falar sobre esse tema é não ficar – principalmente eu, que também sou nordestina – como aquele personagem do Tá No Ar que é um cara nordestino de esquerda que fica esculhambando a Globo. A gente precisa refinar os nossos argumentos. Não dá para simplesmente dizer: “Fora, Rede Globo. O povo não é bobo”. A gente tem que olhar com um pouco mais de cuidado para o que significa essa concentração midiática no Brasil. E o problema, digamos, da concentração midiática não é exclusividade da Globo. A gente fala dela porque tem uma robustez econômica, de audiência, de verbas publicitárias que se sobrepõe aos outros grupos. Mas ela, obviamente, pôde crescer e chegar a esse ponto por existir pouca regulação e menos ainda fiscalização do que é feito. Portanto, essa concentração é fruto, na verdade, de todo um sistema econômico e político.
Natalia Viana – Em 2014, a Globo tinha uma rede nacional de 118 TVs afiliadas e a receita foi US$ 7 bilhões. Segundo o The Economist, era o terceiro grupo midiático que crescia mais rápido no mundo.
Eu sou professora e dou uma matéria que se chama “Mídia Regional”. Nela, os estudantes tentavam atualizar o monitoramento que o Intervozes fez há alguns anos, e a grade de programação das afiliadas é quase igual a da “cabeça de rede”. Mesmo o que tem de diferente segue um padrão. Ou seja, a gente tem o Bom Dia RJ, tem o Bom Dia Ceará, tem o Bom Dia SP. E se reproduz na estética e na linha editorial. Então, esse domínio está presente, principalmente, a partir do sistema de afiliadas, que faz com que a emissora consiga estar dentro da lei, porém ocupando espaço no Brasil inteiro.Mônica Mourão – A Globo tem cinco emissoras que são Globo: Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte – está no limite de acordo com a legislação. Mas o domínio de audiência se dá por meio das 123 redes afiliadas. E a gente sabe que a relação da “cabeça de rede” com as afiliadas é uma relação extremamente desigual.
Julia Michaels – Eu gostaria muito de ouvir a Beth e depois o Ruben, que lá trabalharam, sobre como é decidida a pauta na Globo? Se tem um viés e, se tiver, qual é.
Beth Costa – Os interesses regionais também são muito fortes na questão da propriedade dos meios que vem da falta de regras para esse setor desde a Constituinte. A Globo está dentro e fora da lei ao não respeitar a Constituição no quesito de propriedade dos meios. E ela muito menos obedece ao capítulo da Comunicação Social da Constituição que trata do papel social de um meio de comunicação, principalmente rádio e TV, que é uma concessão do Estado. É como a saúde pública, a escola, a educação. A radiodifusão no Brasil é uma concessão do Poder Executivo e, portanto, teria que estar submetida a regras e leis porque presta um serviço público. Aliás, agora tem uma medida provisória do Temer que diz que não precisa mais ser concessão, mas autorização. Ou seja, nem passar pelo Congresso Nacional precisa mais. Não tem audiência pública, não tem transparência. Se passar essa norma, desobedecendo à Constituição, pode ser que a Globo tenha que ser submetida apenas a nada.
Julia Michaels – Como era quando você trabalhou lá?
Beth Costa – Trabalhei 22 anos. A definição das pautas e o que entra no ar e o que não entra obedece à lógica “eu boto no ar o que acho interessante para mim como grupo econômico”. Os jornalistas da Globo podem negar, mas existe. Como sindicalista e dirigente sindical da Federação Nacional dos Jornalistas [Fenaj], que criou o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, acredito que o jornalismo e o jornalista têm que dialogar com a sociedade porque o produto do trabalho dele é um produto social.
A gente poderia perder horas falando sobre a teoria da manipulação e como se faz a manipulação. A gente sabe que a Rede Globo, imbricada na questão cultural, é muito inteligente, e não se pode subestimar o seu grupo dirigente, que é muito bem preparado. Quando assumi o Sindicato dos Jornalistas em 1987, fiz uma reunião sindical na Globo para entender o seguinte: qual seria o papel do sindicato numa empresa que, naquela época, pagava o maior salário, tinha as melhores condições de trabalho, os melhores equipamentos, Fundo de Garantia, ou seja, uma empresa corretíssima. Na época, eu era casada com um psiquiatra. Quando cheguei em casa depois da reunião, falei: “Meu bem, essa reunião na Globo era mais pra você do que pra mim”. Porque as pessoas não conseguiam aliar os problemas éticos internos que tinham com o que elas faziam com a questão sindical. Achavam que o sindicato só tinha que ir até salário, condições de trabalho, e não se entrar no mérito, na ética do que cada um produz. As pessoas diziam: “Eu chego em casa, eu tinha que tomar uma dose de uísque, agora eu tomo três, eu tenho que me embebedar antes de dormir, eu tenho que me drogar”. O grande problema é que a definição das pautas obedece a interesses particulares, e não sociais, não de prestação de serviço público. A Rede Globo não presta um serviço à sociedade. Quando eu estava no Jornal Nacional, se apresentou a pauta do Luz para Todos como algo que o ex-presidente Lula iria inaugurar um poste no meio do nada. “Mas, se está levando energia elétrica para as cidades onde não existe, isso não é notícia?” “Ah, não vou fazer propaganda para o governo. O governo, se quiser fazer propaganda, que pague.”
Na parte do jornalismo, é a direção que dá as normas. Desde a campanha do Collor, o caçador de marajás, desde o debate Lula-Collor, desde sempre…
Então, a família e os proprietários, que não são proprietários, mas concessionários, tratam as emissoras, principalmente na parte de radiodifusão, como se fosse propriedade privada. Se você tem uma escola particular, você está submetido às diretrizes do MEC. Você pode até ganhar dinheiro com uma escola privada, com um hospital privado, mas você está submetido a regras gerais que trazem benefícios para a sociedade.
Para Mônica Mourão é preciso refinar os argumentos. Não dá para simplesmente dizer: “Fora, Rede Globo. O povo não é bobo”.
Rubem Berta: Em 95% do tempo fiz coisas que considero boas e reportagens de que me orgulho. Mas admito que existiu aqueles 5% vagabundos.
Beth Costa: A definição das pautas obedece à lógica “eu boto no ar o que acho interessante para mim como grupo econômico”.
Julia Michaels – Ruben, quero fazer uma pergunta específica sobre a cobertura que O Globo fez do ex-governador Sérgio Cabral, atualmente preso. Eu sentia um noticiário com apoio irrestrito à pacificação que não mostrava as contradições.
Ruben Berta – Vocês talvez tenham uma visão mais macro do que a minha. O que posso passar de mais relevante é a experiência de alguém que fez parte daquela engrenagem durante um período muito grande. Eu fui repórter e o que posso dizer, talvez não agrade, mas em 95% do tempo fiz coisas que considero boas e reportagens de que me orgulho. Mas admito que existiu aqueles 5% vagabundos. Houve dois períodos na minha passagem no Globo que foram especialmente críticos. O período do Sérgio Cabral e o das manifestações de 2013.
2013 foi um período muito difícil de estar como repórter do jornal O Globo. O jornal fez uma capa desastrosa, emblemática, chamando as pessoas de vândalos. E, para quem estava na rua, foi muito triste ver aquilo. A gente ficou muito na linha de frente. Uma coisa importante de as pessoas entenderem é que houve uma mistura muito grande, que ainda se perpetua, que é entre o profissional e a empresa. Não necessariamente eles se misturam. Então, naquele período se criou um clima de animosidade em que você já ia para a rua num alto nível de estresse. Não menos de três vezes voltei para a casa e chorei: “Meu Deus, eu não estou conseguindo cumprir minha função”, pensava. Quem estava lá dentro da redação não me ouvia, o que eu passava era simplesmente ignorado. E lá fora, na rua, eu era o jornalista da mídia golpista que tinha que apanhar. E, talvez, tenha sido o período em que eu tenha sentido mais, realmente, uma distância entre a cúpula da redação e quem estava na rua acompanhando.
Eu não sei se O Globo, especificamente, sendo mais crítico à gestão Sérgio Cabral, mudaria alguma coisa no quadro que a gente vê no Rio de Janeiro, mas o fato é que houve uma omissão, sim, e muito séria. O Cabral, não sei exatamente por que motivos, isso não chegava pra gente, era um tema que pouco podia ser falado. Para você ir à frente com uma denúncia contra o Cabral, você tinha que ter algo, enfim, o tal do “batom na cueca”, que era uma coisa difícil. E, às vezes, mesmo quando se tinha “batom na cueca”, era embarreirado. Havia um clima de que o Rio estava próspero e a gente não podia acabar com essa prosperidade do Rio. O que eu não posso deixar de ressaltar também é que assim, em grande parte do tempo, eu tive até uma certa liberdade, fiz reportagens relevantes. Mas a coisa vai um pouco de acordo também e, mais especificamente no Rio, com quem está no poder. O Globo era um jornal na gestão Garotinho e virou outro jornal na gestão Cabral. Isso é claro. Então, sentia-se isto: acabou a gestão Garotinho, então agora se parou de fazer jornalismo investigativo. Um pouco também na gestão Eduardo Paes. Ah, a gestão Eduardo Paes, menos jornalismo investigativo. Crivella? Opa, mais jornalismo investigativo.
Beth Costa – Todo o meu trabalho na Rede Globo foi como editora de noticiário internacional. Eu acho que só por isso é que eu durei tanto tempo. Na minha área, as grandes restrições, como vocês devem imaginar, sempre foram Venezuela e Cuba. Então, nessas áreas, às vezes nem era eu que fazia a matéria para evitar brigas e discussões. Era o meu colega que dividia a edição de noticiário internacional. E eu tinha muita liberdade com os correspondentes também. A pauta era decidida, a relação muito boa, mas era assim: Europa, Estados Unidos e, quando chegava na América Latina, é que tinha problemas com esses dois países. E tinha realmente orientações para como cobrir, como editar as matérias.
Mariana Simões – Rubem, eu queria que você comentasse como você passou de O Globo para o The Intercept e se as pessoas olham você como se fosse “uma alternativa”.
Ruben Berta – Tem gente que ainda vê a mídia independente como uma coisa menor. Muitos assessores de imprensa estão mais interessados se vai sair uma notinha no Ancelmo Gois ou no Lauro Jardim do que se sairá uma matéria mais profunda na mídia independente. Existe esse desafio de a gente se consolidar e de ir ganhando aos poucos esse respeito e credibilidade. Acho que a gente tem que fazer um pouco de autocrítica também. Como hoje a internet tem um zilhão de opções, há algumas coisas que são mais sérias, menos sérias e, às vezes, as coisas que não são tão sérias acabam ganhando uma audiência maior do que as coisas que são mais sérias. Você gritar que a Globo é golpista, isso dá mais audiência do que você fazer uma matéria mostrando que a Fecomercio, que era comandada por um cara superduvidoso, vinha financiando a Infoglobo há muito tempo, mas talvez isso não tenha um impacto tão grande quanto você gritar que a Globo é golpista.
Alexandre Caroli – A minha pergunta é em relação à ética profissional. Será que a gente vai ter que conviver agora com essa impossibilidade de ter uma diversidade ideológica, de pensamento, de visão de mundo, em qualquer redação?
Beth Costa – O tema é interessante, mas é bastante complexo. Primeiro, vamos voltar ao fundamento do nosso debate. Para esse tipo de posicionamento acontecer, a gente tem que acabar com o monopólio da mídia. Ele é antidemocrático, é antiprofissional, é explorador. Então, o jornalista é contratado para produzir para um veículo e o que ele faz é usado em qualquer dos veículos do grupo. A Globo pode ser que não tenha mais o lucro de antes, mas não tenham dúvidas que ela não tem prejuízo. Ela está sempre no azul. Eu sempre briguei, como profissional e como sindicalista, que não se pode obrigar um jornalista, um trabalhador, quando entra, cruza a portaria da emissora, a deixar de lado tudo que aprendeu. Sua mãe falou: “Não pode mentir, não pode roubar”, e aí, de repente, você entra e é obrigado, não digo a mentir, porque a Globo é muito esperta nos modelos de manipulação, mas você bota o foco no terciário, e não no principal. Você escreve de uma maneira que não se questiona nada e dá um jeito na hora da edição. Por exemplo, eu estava na Globo na época da discussão das cotas.
Se vendia a pauta assim: “Vamos fazer uma cobertura bem equilibrada, três contra e um a favor”. E esse um a favor, que era brilhante, você nunca usava o melhor momento e o melhor argumento dele na entrevista. Além de ser só um, o editor não tinha o trabalho de ir lá: “Bom, qual é o momento em que ele consegue elaborar melhor o argumento a favor?”. Certamente não era esse trecho da entrevista que aparecia no noticiário.
A Globo tentou me demitir várias vezes, nunca conseguiu. Então, quando eu pedi demissão, pedi que me mandassem embora para eu não perder os 22 anos que estive lá. Eu fui comer um lanche. Atrás de mim, em uma mesa, tinha dois jovens e um que estava lá havia uns dois anos e o outro que estava chegando. Disse: “Olha, você está chegando, aqui é ótimo para trabalhar. Agora, eu tenho um conselho para te dar. O segredo aqui é o seguinte: você faça tudo que te pedirem sem contestar”. Era o segredo para ficar na Globo! Um jovem de 23 anos!
Ruben Berta – Na verdade, hoje o que se prega é o discurso da isenção. Acho que, mais do que nunca, na mídia corporativa, o que se vende é o discurso da isenção. Você tem que ser isento. E é um discurso que eu tenho questionado. Já me questionava estando lá e que me questiono aqui fora. Eu acho que sim, é um dever nosso de jornalista tentar procurar a isenção, tentar ouvir todos os lados. Mas isso não quer dizer que nós sejamos seres sem opinião. É meio surreal você tentar convencer as pessoas de que você é um robô que reproduz as notícias exatamente, enfim, de uma forma matemática, em que cada elemento ali ganha um determinado espaço. Acho que nem as pessoas querem isso.
Ciro Barros – Queria que vocês se colocassem quanto a uma crítica recorrente de quem diz que falar em democratização dos meios de comunicação seria uma forma de censura?
Mônica Mourão – A gente no Intervozes tem uma grande preocupação em separar regulação de censura. Regulação significa colocar regras, existir regras para um determinado setor que, no caso, além de ser importante economicamente, também é simbolicamente. E a existência de regras faz parte da democracia. Se a gente olhar países democráticos da Europa, ou os próprios Estados Unidos, ou aqui do nosso lado, a Argentina, que depois sofreu até um revés em relação a isso, existem leis para dizer “olha, tem que ter limite de propriedade etc.”. A Dilma, na sua segunda campanha, falava assim: “O melhor controle é o controle remoto”. E depois falou: “Vamos fazer uma regulação econômica da mídia, e não de conteúdo, porque conteúdo é censura”. Na verdade, já existe regulação de conteúdo prevista na Constituição. Quando a Constituição fala que rádio e TV têm que dar prioridade para conteúdo educativo, cultural, regional, tudo isso que não é cumprido, até porque falta uma lei que regulamente isso, ou seja, diga como isso deve ser cumprido, está se falando de conteúdo. Regulação de conteúdo não é censura porque significa “existem regras”, ou seja, eu não posso passar um casal transando às 14h da tarde, porque vai ter criança vendo televisão. A censura é: “Olha, antes de você veicular, eu tenho que ver se isso pode ser veiculado ou não”. Ou é dizer: “A priori, você não pode falar de tal assunto”. Regulação de conteúdo não é isso, é ter regras para o conteúdo, que são importantes para que a gente tenha mais diversidade e também respeito a crianças e adolescentes que estão em situação de desenvolvimento. E é importante que não estejam expostos a qualquer tipo de conteúdo em qualquer horário.