Domingo, 7
de setembro de 2014
Do Correio
da Cidadania
Escrito por
Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação
Em tempos de democracia e liberdade de expressão pautadas
pelo poder econômico, o Correio da Cidadania inicia uma série de entrevistas
com candidatos às eleições de outubro à margem do atual esquema de poder e divulgação
de ideias. Começando pelos que disputam a presidência da República, falamos com
Luciana Genro, do PSOL.
“Nossa proposta é
radicalmente oposta à lógica que os três candidatos defendem. A principal
medida é a auditoria da dívida e a suspensão de seu pagamento. Também uma
revolução na estrutura tributária, aumentando tributo sobre os bancos e as
grandes empresas e fortunas, aliviando a classe média e os assalariados. É
preciso colocar o BNDES a serviço das micro e pequenas empresas”, enumerou.
Praticamente inevitável nos tempos atuais, o foco
principal de Luciana é o modelo econômico do país, atado pelo sistema
financeiro. Porém, apresenta também outros aspectos do programa de seu partido,
tais como o fim do financiamento privado de campanhas e aprofundamento de
mecanismos de participação popular. Também foi confrontada com a ausência da
chamada “Frente de Esquerda” e considerou o fenômeno Marina um entrave para a
afirmação de alternativas no eleitorado.
“Junho de 2013
mostrou que há uma negação da velha política. Portanto, a construção do novo se
abre como possibilidade. Mas é um processo. Muitas vezes encontramos percalços.
A candidatura da Marina acaba sendo um deles, porque expressa um símbolo que
não corresponde à essência, mas existe um setor importante, entre as pessoas
que estão negando a velha política, iludido. Até porque ela tem a visibilidade
da grande mídia, que gosta muito de candidaturas do sistema que pareçam
questionar o sistema, como no caso dela”, analisou.
Correio da Cidadania: Como está
vendo o atual momento político com as eleições que se aproximam?
Luciana Genro: As eleições são sempre um momento
muito importante para se discutir o futuro do país. Nós estamos numa situação
em que as três candidaturas que se apresentam como favoritas da mídia
representam o mesmo modelo econômico, que é o modelo ancorado na
financeirização da economia, no domínio dos bancos e do agronegócio.
Correio da Cidadania: Quais são, a
seu ver, os principais problemas e questões do Brasil de hoje?
Luciana Genro: O principal problema é uma
economia voltada ao pagamento de juros da dívida pública. O Brasil faz um
esforço fiscal gigantesco de arrecadação. Mais de 50% da arrecadação de
impostos provêm dos assalariados que ganham até três salários mínimos e grande
parte de tais recursos é utilizada para pagamento de juros da dívida. Quarenta
por cento do nosso orçamento são usados para pagar juros da dívida, a partir de
um esforço fiscal de superávit primário de 90 bilhões de reais por ano, que
envolve a União, os estados e os municípios.
Consequentemente, toda a economia está voltada para o
pagamento de juros, que atendem um número extremamente pequeno de pessoas. São
cerca de 5 mil credores da dívida, sendo que a maioria dos títulos está nas
mãos dos bancos. Eles que se beneficiam de tal lógica econômica. As
deficiências do serviço público vêm muito disso. Portanto, são os pobres, os
assalariados e a classe média bancando o “Bolsa banqueiro”, o “Bolsa
milionário”.
Enquanto isso, na área da saúde, por exemplo, nós temos
uma deficiência estrutural de recursos, faltam médicos, hospitais,
infraestrutura. Assim, o principal problema é todo esse esforço fiscal em favor
de um punhado de especuladores.
A partir daí, desenvolvem-se as soluções. A primeira delas
é a necessidade de uma auditoria sobre a dívida pública, porque há um conjunto
de irregularidades, inclusive já identificadas pela CPI da dívida,
protagonizada pelo deputado Ivan Valente (PSOL-SP) na câmara federal. Essa CPI
demonstrou que a origem da dívida é questionável, que existe cobrança de juros
sobre juros (inconstitucional de acordo com o próprio STF) e que a decisão
sobre a taxa de juros é tomada pelo Banco Central com base na opinião de
analistas supostamente independentes, mas na verdade todos vinculados ao
mercado financeiro.
Todas as irregularidades apontadas pela CPI precisam ser
aprofundadas numa auditoria, o que levaria, a nosso ver, à anulação de uma
parte significativa da dívida. Até porque faz vinte anos que o Brasil produz
superávit primário para pagamento da dívida e ela só cresce, chegando hoje a
quase 3 trilhões de reais. A suspensão de seu pagamento e a auditoria para
verificar se realmente ainda se deve alguma coisa seria nossa primeira medida.
Depois, é necessária uma mudança na estrutura tributária
do país, que é extremamente injusta, porque faz dos assalariados, da classe
média e dos mais pobres os responsáveis pela maior parte da arrecadação,
enquanto os grandes milionários e os bancos pagam muito poucos impostos.
Correio da Cidadania: Qual a
importância das eleições de 2014 para as esquerdas e que papel elas podem, ou
devem, desempenhar no meio dessa disputa?
Luciana Genro: As eleições são muito importantes
porque é o momento em que conseguimos furar minimamente o bloqueio midiático a
nossas opiniões. Existe também o horário eleitoral gratuito, embora muito
desigual, e conseguimos marcar uma presença ali. A cobertura da mídia
tradicional, embora também muito injusta e desigual, dá um espaço, sendo que
normalmente ela não divulga as propostas e opiniões da esquerda.
Infelizmente, não conseguimos nos unificar com o PSTU, o
PCB, partidos pelos quais tenho enorme apreço, por fazermos todos uma oposição
de esquerda. Não conseguimos essa unidade em nível nacional, só em alguns
estados.
Porém, apesar de separados, fazemos o mesmo coro no
sentido de denunciar a atual política econômica, sua injustiça e a concentração
de renda, que são características do modelo econômico implementado pelo governo
FHC e continuado pelo PT.
Correio da Cidadania: Dessa forma,
você não considera que essas representações da esquerda tenham perdido uma
grande oportunidade, aberta pelas massivas manifestações de 2013, de se
apresentarem ao pleito com maior peso político e social?
Luciana Genro: Acho que sim. Tanto que no
momento em que ainda estava na condição de vice do senador Randolfe Rodrigues
(o primeiro nome indicado pelo PSOL para candidato), abri mão dessa designação,
tarefa que me foi dada para garantir a unidade do partido, já que tínhamos tido
um embate interno entre nós. Abri mão de ser vice, garantindo unidade do PSOL,
mesmo ficando fora, para que PSTU e PCB pudessem vir a compor a chapa, e não
alegassem que o PSOL estava sendo hegemonista e queria indicar o cabeça de
chapa e o vice, o que inviabilizaria a aliança.
Infelizmente, não aceitaram a oferta do PSOL naquele
momento e preferiram lançar seus próprios candidatos, posição que eu respeito,
compreendo e lamento. Porém, mesmo separados, creio que estamos unidos na mesma
luta, e não é por causa de um processo eleitoral no qual temos candidatos
diferentes que vamos deixar de estar juntos nas lutas, movimentos sociais e
enfrentamentos que certamente acontecerão após as eleições.
Correio da Cidadania: Em seus
aspectos mais fundamentais, como o PSOL se encaixa nesse cenário e com qual
programa o PSOL está se apresentando nessas eleições de 2014?
Luciana Genro: O PSOL busca se apresentar como
uma alternativa radicalmente distinta dessas três candidaturas, que são as
frequentes na televisão. Por isso, para nós é uma grande oportunidade de
mostrar que temos uma proposta alternativa ao que predomina no processo
político-eleitoral, através de uma cobertura extremamente injusta da grande
mídia.
O PSOL se perfila como partido de oposição de esquerda.
Nascemos da visão de ser necessário continuar a defender as bandeiras
abandonadas pelo PT. Fui expulsa do PT por não ter aceitado me dobrar ao
pragmatismo de abandonar as bandeiras da esquerda para se aliar a figuras como
Sarney, Collor, e implementar uma política econômica de acordo com os
interesses do mercado financeiro. Inclusive, tenho orgulho dessa expulsão,
porque é um atestado de que não me rendi, não me vendi, não abandonei minhas
ideias em troca de poder.
Ao mesmo tempo, apresentamos uma proposta estruturalmente
distinta da proposta do governo, com o continuísmo conservador que o PT
implementa, caracterizado pelo social-liberalismo, isto é, uma política
econômica neoliberal com viés social, através de alguns programas de
distribuição de renda. Tais programas redistributivos não passam de bordas do
bolo, pois o recheio continua concentrado nas mãos do grande capital. Tampouco
aceitamos o retrocesso conservador representado pelo Aécio e o PSDB, um
retrocesso à “privataria tucana”, que chega ao ponto de construir um aeroporto
com dinheiro público e entregá-lo à própria família.
Por fim, não aceitamos aquela que se apresenta como a
“nova política”, mas que tem, por exemplo, uma banqueira tradicional na
coordenação do programa de governo e se aconselha com economistas
historicamente ligados ao PSDB, propondo medidas muito próximas da agenda desse
partido, como a autonomia do Banco Central.
Portanto, nossa proposta é radicalmente oposta à lógica do
tripé econômico que os três candidatos defendem. A principal medida é a
auditoria da dívida e a suspensão de seu pagamento. Também uma revolução na
estrutura tributária, aumentando tributo sobre os bancos e as grandes empresas
e fortunas, aliviando a classe média e os assalariados. É preciso colocar o
BNDES a serviço das micro e pequenas empresas, ou seja, do desenvolvimento
econômico e social, como consta no nome do banco, ao invés de ficar a serviço
de grandes oligopólios ou monopólios de grupos econômicos, como vimos no caso
da Friboi, que recebeu 7 bilhões de reais para comprar pequenos frigoríficos e
concentrar ainda mais o setor.
É uma proposta que vai mudar estruturalmente a economia. E
também a política. Defendemos uma valorização maior dos mecanismos de
participação direta do povo, através de uma mobilização da população que
tensione o Congresso a aprovar medidas de interesse popular, além da utilização
de plebiscitos e referendos para que a população possa se expressar de forma
mais direta a respeito dos principais temas políticos do Brasil.
Também é preciso promover uma mudança no regime
político-eleitoral, acabar com o financiamento privado de campanhas,
democratizar os meios de comunicação, impossibilitá-los de serem apenas de
grandes grupos de poder, como hoje, e valorizar os pequenos meios de
comunicação, as rádios comunitárias... É preciso democratizar o acesso à
televisão e impedir que algumas famílias a controlem por inteiro, como vemos
hoje.
A reforma agrária também é um elemento fundamental, não só
para atender a população do campo, como também para melhorar a vida nas
cidades, a partir do aumento da produção de alimentos, mais saudáveis e mais
baratos.
Enfim, temos um conjunto de mudanças que significam
maiores investimentos naquilo que realmente interessa ao povo, a partir da
lógica de que é preciso contrariar interesses. E os interesses que devem ser
contrariados são os do grande capital, bancos e multinacionais, os grandes
privilegiados do modelo econômico atual.
Correio da Cidadania: Você
considera que, nessas eleições, e dentro do contexto aqui descrito, o debate
aberto pelo PSOL e pelas esquerdas de um modo geral conseguirá se impor e fazer
a diferença de alguma forma, confrontando o debate da ordem?
Luciana Genro: Acho que estamos conseguindo, em
alguma medida. Apesar de todas as dificuldades e desigualdades do processo
eleitoral, em termos de estrutura de campanha, dinheiro, tempo de televisão e
cobertura da mídia, acredito que conseguimos ter uma audiência de um setor
significativo da população e, principalmente, da juventude, que estão bastante
ávidos por uma alternativa diante da política tradicional.
Eu vejo que é um processo de acumulação. Junho de 2013
mostrou que há uma negação da velha política. Portanto, a construção do novo se
abre como possibilidade, porque a negação do velho é o primeiro passo para a
construção do novo. Mas tal construção é um processo.
Muitas vezes encontramos percalços no meio do caminho. A
candidatura da Marina acaba sendo um deles, porque ela expressa um símbolo que
não corresponde à essência, mas existe um setor importante, entre as pessoas
que estão negando a velha política, iludido com a candidatura da Marina. Até
porque ela tem a visibilidade da grande mídia, que gosta muito de candidaturas
do sistema que pareçam questionar o sistema, como no caso dela.
De toda forma, vamos acumulando. E acredito que o PSOL
fará uma bela eleição e conseguirá sair mais forte para continuar fazendo as
lutas sociais, que são o maior instrumento para alcançar mudanças de verdade na
sociedade.
Gabriel Brito é jornalista;
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.
