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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 9 de julho de 2021

150 anos depois, obra de Castro Alves continua viva

Sexta, 9 de julho de 2021

Com estilo inflamado e próximo da oralidade da época, Castro Alves denunciou os horrores da escravidão - Reprodução

O poeta que denunciou a escravidão morreu em 6 de julho de 1871, aos 24 anos, mas a força de sua obra permanece

Da Rádio Brasil de Fato
Raquel Setz  
09 de Julho de 2021

A sede de justiça de Castro Alves não poupou nem a igreja

O poema “Navio Negreiro”, musicado por Caetano Veloso no disco “Livros”, de 1997, mostra bem o estilo de Castro Alves: um artista que fez da palavra um instrumento de luta política, como explica a doutora em literatura brasileira Giovanna Gobbi. 

“Castro Alves não foi um escritor de gabinete. Temos muitos relatos das declamações que ele fazia, de récitas públicas em datas comemorativas. Poemas que ele criava de improviso em encontros literários, em saraus. Sua poesia era viva, destaca. 

Ainda de acordo com Gobbi, os poemas de Castro Alves eram concebidos para o espaço público. 

"Tem em vista audiência e tem em vista um discurso extremamente dramático, extremamente persuasivo. que emprega dispositivos para convencer o público, à audiência em relação à causa que ele defende, que nesse caso é a abolição e a república”. 

Antônio Frederico de Castro Alves nasceu em 14 de março de 1847 em uma fazenda no Recôncavo Baiano, mas ainda criança se muda para a capital, Salvador.

Ele tem contato tanto com a poesia quanto com o movimento abolicionista ainda no ginásio, por meio de Abílio Vargas, então diretor do Ginásio Baiano. Já na faculdade de direito, Castro Alves funda sua própria sociedade abolicionista ao lado de figuras como Rui Barbosa.

A poesia inflamada, feita para ser lida em público, tem um papel importante nessa luta.


E a sede de justiça de Castro Alves não poupou nem a igreja, como lembra a professora de literatura brasileira Cleonice Ferreira de Sousa. 

“Há uma poesia chamada ‘Confidência’, em que ele diz o seguinte: 'Agora adota a escravidão por filha/ amolando nas páginas da Bíblia/ o cutelo do algoz'. Ou seja: aqui ele está dizendo claramente que a instituição religiosa fez vistas grossas à questão da escravidão”. 

Giovanna Gobbi avalia que a obra do poeta foi uma das primeiras a incorporar o personagem afro-brasileiro em toda sua humanidade.

"Ele não aparecia como um problema para a sociedade, mas como um personagem humano, com seus dramas, as suas angústias. Mas existe também uma outra faceta dessa poesia que é a combatividade. A representação de uma luta por direitos do indivíduo escravizado, do indivíduo negro como agente de mudanças”, acrescenta. 


A principal referência literária de Castro Alves foi o francês Victor Hugo, autor de obras de cunho social como “Os Miseráveis”. Cleonice explica que o poeta baiano bebeu dessa fonte, mas a adaptou para a realidade brasileira. E cita o exemplo do poema “L’Enfant”, ou “A criança”, de Victor Hugo. 

“Na poesia do Victor Hugo, qual é o cenário? A Grécia dizimada pela invasão turca. E ao final da poesia, temos a imagem de uma criança loirinha do olho azul olhando aquela paisagem destruída, pessoas mortas. E o 'eu poético' pergunta para a criança o que ela deseja: ‘Você quer uma florzinha de baunilha?’, e a criança diz assim: 'não, eu quero pólvora e bala'.

Segundo Cleonice, Castro Alves pegou essa referência e fez uma poesia chamada "A criança".

"É uma poesia bem semelhante. Mas no finalzinho da poesia do Castro Alves diz o seguinte: ‘Perdeste tua mãe aos ferros do açoite?/ Dos seus algozes vis./ E vagas tonto a tatear a noite./ Choras antes de rir... pobre criança!.../ Que queres, infeliz?.../ — Amigo, eu quero o ferro da vingança’”, conta. 

Pouca coisa restou do poeta, que morreu de tuberculose aos 24 anos: o cacho de cabelo é um dos tesouros guardados no Parque Histórico Castro Alves / Acervo Parque Histórico Castro Alves

Parque Histórico Castro Alves

Um lugar especial para quem quer conhecer mais sobre a trajetória do poeta é o Parque Histórico Castro Alves, que fica na área da fazenda onde ele nasceu, no município de Cabaceiras do Paraguaçu.

Diogenisa Oliva, coordenadora do parque, ressalta que o local guarda pequenos tesouros.

“De Castro Alves mesmo ficou muito pouca coisa. como ele morreu de tuberculose, na época era comum queimar tudo o que sobrava, para que a doença não se espalhasse. então restou uma gravata, que antes da morte dele foi guardada, um cachinho de cabelo, uma cômoda-papeleira e os manuscritos”, conta. 

O parque recebe visitas de escolas de 14 municípios do recôncavo e do sertão baiano. E todo ano tem um festival de declamação de poemas. 


“Tem uma garota aqui que aos 8 anos declamou ‘Mater Dolorosa’, que fala de uma escrava que acaba matando o próprio filho. Parei para conversar com ela para saber se ela estava entendendo aquilo que tinha acontecido. E ela, com lágrimas nos olhos, disse que sabia”, diz. 

Outros ecos de Castro Alves podem ser ouvidos até hoje. Apesar de o poeta ter morrido muito novo, aos 24 anos, ele deixou um legado que atravessa um século e meio, como aponta a professora Cleonice.

“Escutando por exemplo uma música d'O Rappa: 'Todo camburão tem um pouco de navio negreiro'. É um dos exemplos que mostram pra gente o que é um clássico, o que é um cânone. É uma obra que não morre nunca. Se a gente continua discutindo a questão da escravidão, se a gente continua discutindo a questão do preconceito, se a gente continua dialogando a respeito de coisas que eu, pessoalmente, acho que já deviam ter sido eliminadas da nossa sociedade, não há como não passar por Castro Alves”. 

Por causa da pandemia, o Parque Histórico Castro Alves está fechado desde março do ano passado, mas agora já tem data de reabertura: dia 17 de agosto, seguindo protocolos sanitários como o uso de máscaras.

Edição: Douglas Matos
Rádio Brasil de Fato
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Do Blog Gama Livre:


Ode ao 2 de Julho

(Castro Alves, São Paulo, junho de 1868)

Era no Dous de Julho
A pugna imensa
Travava-se nos cerros da Bahia…
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
“Neste lençol tão largo, tão extenso,
“Como um pedaço roto do infinito …
O mundo perguntava erguendo um grito:
“Qual dos gigantes morto rolará?! …

Debruçados do céu. . . a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado…
Era tocha — o fuzil avermelhado!
Era o Circo de Roma — o vasto chão!
Por palmas — o troar da artilharia!
Por feras — os canhões negros rugiam!
Por atletas — dous povos se batiam!
Enorme anfiteatro — era a amplidão!

Não! Não eram dous povos os que abalavam
Naquele instante o solo ensangüentado…
Era o porvir — em frente do passado,
A liberdade — em frente à escravidão.
Era a luta das águias — e do abutre,
A revolta do pulso — contra os ferros,
O pugilato da razão — com os erros,
O duelo da treva — e do clarão! …

No entanto a luta recrescia indômita
As bandeiras – como águias eriçadas —
“Se abismavam com as asas desdobradas
Na selva escura da fumaça atroz…
Tonto de espanto, cego de metralha
O arcanjo do triunfo vacilava…
E a glória desgrenhada acalentava
O cadáver sangrento dos heróis!

Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço e as brisas forasteiras
No verde leque das gentis palmeiras
Foram cantar os hinos do arrebol,
Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e divina.
Eras tu — liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do Sol!…

Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia Terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito…
Um trapo de bandeira — n’amplidão! ..