Segunda, 24 de janeiro de 2011
Brizola completaria 89 anos no dia 22 de janeiro último. Ele
morreu em 21 de junho de 2004. Tomo a liberdade de reproduzir aqui no Gama
Livre o artigo publicado por um grande amigo daquele líder trabalhista. Da
lavra do jornalista e político carioca Pedro Porfírio, o artigo é um relato das
lutas e das virtudes de Brizola, mas especialmente das traições que antigos
companheiros de partido cometeram contra as grandes bandeiras do seu PDT. É uma
crítica contundente à situação de submissão a que o partido foi levado após a
morte de seu maior líder, e a “troco de um prato de lentilhas”, como de quando
em vez se referia Brizola aos traidores do povo brasileiro.
A seguir o artigo de Pedro Porfírio:
Até que rasguem a mortalha da traição e da capitulação
“Se não chegou à Presidência da República,
Brizola reeditou, ao menos, o martírio trabalhista, pelas perseguições que
sofreu e pelos temores que despertou em parcelas das elites política e
econômica.”
J. Trajano Sento-sé (Brizolismo: estetização da política e carisma, Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999, p.347)
J. Trajano Sento-sé (Brizolismo: estetização da política e carisma, Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999, p.347)
Passei com Brizola seu último reveillon,
na entrada de 2004. Além de mim, ele recebeu apenas
o filho João Otávio, os netos e os amigos Lígia Doutel de Andrade, Danilo e Yone
Groff. Naquela noite, não escondia seu desapontamento com o governo Lula.
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Porque amanhã, 22 de janeiro, alguns brasileiros lembrarão Leonel Brizola, que nesta data completaria 89 anos, vejo-me impelido a derramar mais uma lágrima no luto de todo um sonho denegrido por fora e por dentro, registrando com profundo pesar o mais terrível sepultamento de uma legenda histórica, envolta na mais medonha das mortalhas, aquela que exibe as cores berrantes da traição à memória dos mortos.
Francamente,
como diria o caudilho, ninguém poderia imaginar um ocaso tão deprimente, uma
capitulação tão grosseira. A simples lembrança de sua saga aponta para a
dramática inutilidade de uma jornada percorrida. Em tempo sumário, tudo o que
de marcante ele deixou como lição e exemplo está sendo enterrado nas
profundezas de um esquecimento inexorável, como se sua palavra inquieta
estivesse fora do prazo de validade.
E
enterrado, paradoxalmente, pelos que se apoderaram dos seus restos mortais, na
pérfida exploração de uma herança desfigurada pelo mais torpe complô que o
oportunismo pode forjar.
Por
obra e graça dos que fizeram do seu partido um humilhado penduricalho dos
podres poderes, o brizolismo é hoje uma escamoteada mensagem de transformação
social, seja na adulteração dos seus compromissos pétreos ou no adesismo de
natureza exclusivamente fisiológica a qualquer governo, em qualquer nível, em
troca de algumas patacas que certas prebendas ensejam.
A
destruição do que havia de essencialmente positivo no discurso que tanto
incomodou às elites se dá com uma torrente semelhante ao impiedoso temporal que
tantas vidas ceifou nas fraldas de nossas montanhas mais belas.
Bandeira esfarrapada
Há uma determinação traiçoeira de amputar as exigências básicas da velha bandeira, esfarrapando-a no vendaval de um leilão depravado de sua memória.
Bandeira esfarrapada
Há uma determinação traiçoeira de amputar as exigências básicas da velha bandeira, esfarrapando-a no vendaval de um leilão depravado de sua memória.
O
que poderemos dizer aos pósteros sobre os 82 anos de vida daquele que mais
despojadamente desafiou os poderosos interesses internacionais e impediu com a
mobilização do povo a antecipação do golpe militar de 1964, ao assegurar a
posse de João Goulart, em 1961?
O
que ficou de seus quixotescos embates com os donos do Brasil e com os donos do
mundo? Foi para ver o Ministério do Trabalho transformado numa grotesca
caricatura, excluído ostensivamente de sua função mater – a gestão das relações
trabalhistas - até mesmo da condição de primeira porta das reivindicações
sindicais, que Brizola lutou até o último minuto de sua vida?
Foi
para ver seus “continuadores” de pires na mão, agachados, indiferentes a
qualquer desvio de conduta, a qualquer má idéia, interessados exclusivamente nas
boquinhas marotas, que ele legou seu partido e sua coerência?
Não
precisa ser brizolista para deplorar a emasculação de sua herança, alternativa
histórica a esse modelo econômico colonial. Não faz bem ao país que joguem suas
palavras contestatórias no esgoto de uma sociedade sem próceres.
Hoje,
mais do que nunca, a defesa do país soberano, da libertação pela educação
pública de tempo integral, de qualidade, da busca da justiça social, do
tratamento humano, prioritário e dignificante das populações excluídas, esses
anseios que se incorporaram à figura de Brizola dão a tônica dos melhores
propósitos.
A corrosão pelo servilismo
A corrosão pelo servilismo
Pode
ser que o prostíbulo em que vicejam figuras abjetas e arrivistas mantenha ainda
por algum tempo a fraude de uma continuidade “revisada” de episódios
inesquecíveis que deram realce a momentos emblemáticos da história pátria. Pode
ser, afinal, a carne é fraca.
Tudo
é possível quando se está do lado do poder, quando se entra no jogo sujo da
impostura e da mistificação. Há pepitas disponíveis para calar os pobres de
espírito, há uma máquina azeitada, rica no ofertório de migalhas sedutoras, ao
feitio de militantes de araque, mal intencionados, para os quais os interesses
do povo se resumem nas suas próprias ambições pessoais.
É
possível que até mesmo os herdeiros necessários, à falta valores éticos e
morais, sem habilitação para um mercado de trabalho cada vez mais fechado,
estejam servindo sem cerimônia àqueles que diariamente tratam de denegrir e
criminalizar a obra e a memória do grande estadista.
Tudo
é possível num ambiente de consagração da mediocridade, do cinismo e do
“salve-se quem puder”. Tudo é possível quando o país perdeu o respeito pela
vida inteligente, quando as cabeças rolam na navalha do suborno e da
capitulação inercial.
O
velho caudilho está lá no túmulo dos vencidos, na campa dos traídos. Já não se
lembram dos seus ensinamentos, embora a fina flor da hipocrisia lhe ofereça a
missa e o sermão surrados de todos os anos como prêmio de consolação.
Mas
sua alma ainda há de rasgar a mortalha das cores berrantes da traição e da
capitulação. Se não forem as gerações de hoje, outras ouvirão sua voz e
romperão com a farsa que mantém a pirâmide social intacta e o país dependente,
lembrando que um dia o gaúcho corajoso quis abrir caminho para um Brasil
brasileiro, justo e transformador.
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Este artigo do jornalista carioca encontra-se em:
http://www.porfiriolivre.info/2011/01/ate-que-rasguem-mortalha-da-traicao-e.html