Pedro Porfírio
Acuada por cobranças implacáveis, atormentada pelas sombras
do passado e preocupada principalmente com a vulnerabilidade do Estado
repressivo, a presidenta Dilma Rousseff classificou como "barbáries antidemocráticas" as depredações ocorridas em São Paulo, durante
manifestação pelo passe livre no transporte público da cidade. Via twitter, a
presidente prestou solidariedade ao coronel Reynaldo Simões Rossi
"agredido covardemente por um grupo de black blocs".
"Agredir e
depredar não fazem parte da liberdade de manifestação. Pelo contrário. São
barbáries antidemocráticas. A violência cassa o direito de quem quer se
manifestar livremente. Violência deve ser coibida", escreveu Dilma na rede
social; A presidente cobrou das forças de segurança "a obrigação de
assegurar que as manifestações ocorram de forma livre e pacífica".
Ninguém de sã consciência aplaude a explosão violenta da
indignação juvenil nas ruas das cidades brasileiras. Mas a todos os que ainda
pensam livremente impõe-se a pergunta elementar:
por
que chegamos a esse tipo de manifestação desconectada das gôndolas alegóricas que
singram mansas as águas turvas de um mar de lama?
Até junho passado, o descontentamento e as frustrações de milhares de jovens não haviam transposto os
muros escolares e os guetos marginalizados. Não fosse um coquetel de diabruras
de um sistema hegemonizado por um poder
econômico insaciável e a repressão descontrolada da PM ninguém teria atirado a
primeira pedra, alvejando prioritariamente as vitrines dos bancos, senhores
absolutos de todos os podres poderes, fontes inesgotáveis de corrupção e
beneficiários necessários das peripécias
governamentais ao longo de décadas.
Foi preciso a exposição da cumplicidade subserviente de
prefeitos na relação delituosa com as máfias dos transportes, que a todos subornam, para que as ruas
fossem retomadas por seus legítimos donos. Já
não dava mais para sufocar o grito que estava parado no ar.
Primeiro, uns. Depois, outros. Em dias, a cidadania inteira se
tocava de sua força e de sua responsabilidade. Um mar humano invadiu os
palácios e os covis numa pungente explosão de efeitos apocalípticos. Era uma onda de calouros da revolta que se
espalhava pelos quatro cantos produzindo um recado cristalino: basta
de toda
essa farsa fermentada pelas farinhas do mesmo saco que simulavam
conflitos para
escamotear a uníssona submissão a um modelo econômico excludente, com
viés compensatório
vicioso, que alcança todas as camadas sociais, opera uma sensação
canastrona de
boa semeadura, deixa milhões de jovens sem ter onde enfiar seus canudos
de
papel, criminaliza a odisseia dos anciãos, mantém intactas as estruturas
da opressão selvagem e torna a sobrevivência digna uma utopia
obsoleta.
Os
próceres dos podres poderes fingiram que ouviram o clamor das ruas. Fingiram,
apenas, da boca pra fora. Ao contrário, porém, trataram de novas artimanhas para
manter intacto o sistema da injustiça, dos privilégios e da impostura.
Muitos dos que saíram da inércia para a pugna eloquente das
ruas convenceram-se da inutilidade dos audazes protestos. Voltaram para o recinto do lar com o gosto
amargo da frustração. Perceberam à primeira vista a armadura que blinda com chumbo
grosso os interesses mais sórdidos e o desprezo pelo drama das maiorias,
condenadas ad eternum a dorsos das
elites gananciosas.
Mas outros, não. Não
eram muitos, mas eram tantos que poderiam continuar abalando a rotina conservada na salmoura da chacina social. Esses tantos entenderam o protesto pela via do confronto
quixotesco. Armados de paus e pedras decidiram enfrentar os fuzis com a flama
de seus atos beligerantes estabanados.
Independente da aparente inconsequência e indiferentes ao
desconforto de suas ações melindrosas, esses grupos diversos, de variados
matizes, incorporaram o sentimento do inconformismo ante o cinismo dos
detentores dos poderes, que só pensam em seus mesquinhos interesses menores.
Antes
de censurarem a "barbárie
antidemocrática" desses jovens insistentes devem as autoridades de todos
os entes e de todos os podres poderes olhar os próprios umbigos. O que fizeram
de bom depois das manifestações mansas e pacíficas de um povo bravamente insatisfeito?
Até mesmo o episódio que envolveu esse coronel soa como uma
grosseira provocação. Estaria na estratégia da repressão o comandante ir laçar
pessoalmente e sem cobertura dos subordinados uma vândala cercada de parceiros da mesma indignação?
O que vemos, lamentavelmente, é que o aparato repressivo, a
partir da autoridade maior, segue a mesma cartilha dos idos abominados. Não seria também uma
barbárie de alto teor explosivo a operação de guerra montada na Barra da Tijuca
para proteger o leilão da maior reserva petrolífera do país?
Barbárie é em si o próprio leilão do poço suculento de Libra, uma renúncia suicida ao poder
decisório do Brasil sobre suas riquezas estratégicas. O petróleo é, aliás, o
mais aberrante cenário das barbáries
mais criminosas: da míope privatização das jazidas ao jogo sujo de
mentiradas repetidas, como o blefe do Eike Batista e o anúncio da autossuficiência
há anos, tudo é farsesco nesse trilionário ambiente de golpes e falcatruas.
Ao ver da lucidez sobrevivente, há, sim, uma intercomunicação
de barbáries. O governo possível que temos hoje se esmera em deprimentes
capitulações, seguindo s pegadas dos antecessores neoliberais: além da trama
petrolífera, frustra-nos com a privatização dos aeroportos lucrativos (os
deficitários, 85%, ficarão por conta do
contribuinte), a inviabilização da aviação comercial brasileira, as
privatizações dos melhores portos e das rodovias mais rentáveis o que nos expõem a uma bitributação) e até a
paulatina desnacionalização do bicentenário Banco do Brasil.
Aqui, por estas plagas cariocas, um prefeito descompensado e
leviano está gastando R$ 10 bilhões (que faltam à educação) numa obra
inconsequente de perigosa aventura imobiliária, que inclui a precipitada demolição
de um elevado de 7 Km que liga os dois grandes eixos viários da cidade e retira
o trânsito do tumulto urbano. Esse desatino bárbaro tem por pretexto dar
visibilidade aos espigões que a cabeça desmiolada do prefeito imagina para uma
área engolfada que não suporta adensamento e que seria uma zona de trânsito
paralisado se alguns aventureiros lá se instalarem em prédios de 50 andares.
É
muito fácil criminalizar a revolta juvenil, pois cada vitrine quebrada é um
condimento a temperar a paranoia cristalizada.
Difícil é fazer os
donos deste Brasil já não tão brasileiro a buscarem nas entrelinhas da barbárie das ruas os sintomas de uma
nação sem rumo, sem eira nem beira, sem autoridade moral sequer para o
confronto com a espionagem agressiva, que opera atos de guerra que ferem mortalmente a soberania de um país e
o tornam demasiado vulnerável ao domínio externo.
Para falar de barbárie
das ruas forçoso é entendê-la como erupções pútridas de um organismo contaminado por todas as variáveis de barbáries. Especialmente as dos podres poderes, que por regra sempre atiram a primeira pedra.
Fonte: Blog do Pedro Porfírio