Quinta, 26 de dezembro de 2013
Do Jornal do Brasil
Davison Coutinho
Davison Coutinho
Prezado Governador e Prefeito, este ano resolvi não escrever uma carta para papai Noel pedindo presentes, nem resolvi
escrever uma carta para familiares e amigos. Preferi lhes escrever em nome da
Rocinha e de tudo que vivenciei este ano.
O ano de 2013 para a
Rocinha foi excepcional e de muita
visibilidade para nossa comunidade. Infelizmente, mais uma vez, ficamos
marcados e expostos pela violência, o que não é nenhuma novidade em
todas as favelas do Rio de Janeiro.
Não podemos falar de Rocinha em 2013, sem lembrar do fato mais comentado em todo o pais, a crueldade que foi cometida contra o
ajudante de pedreiro, Amarildo de Souza, torturado até a morte por
policiais da UPP. O corpo de Amarildo até hoje continua um mistério e sua
família não teve nem mesmo a possibilidade de enterrar com dignidade o cidadão
que foi injustiçado.
A morte de Amarildo serviu como uma forma da comunidade
criar forças e ter voz. Os moradores criaram coragem e foram as ruas reclamar a
morte do morador e aproveitaram para expor os abusos cometidos por policias
militares. Esse triste episódio serviu para que se pudesse mostrar que a
pacificação das favelas, bandeira da campanha de Cabral, não levou a paz
prometida para os milhares de moradores de favelas.
Com o início das manifestações em junho do ano em curso, a
Rocinha também teve sua vez. Liderados pelos estudantes Dennis Neves e Erica
Santos que levaram centenas de moradores às ruas, com um percurso até a porta
do Governador Sérgio Cabral, onde foram exigidas e cobradas as promessas não
cumpridas pelo governo. A passeata serviu de lição de cidadania, ao contrário
do que os moradores de São Conrado e Leblon pensaram, quando isolaram suas
portas com tapumes de madeiras, nada foi quebrado, nenhum lixo foi deixado no
chão e nem mesmo um mínimo conflito policial foi registrado. O tema central da
passeata era o pedido de saneamento básico, seguido por saúde, educação e pelo "não" ao teleférico.
A violência foi intensificada na comunidade e todos
ficamos muito horrorizados com a crueldade com que foi morta a menina Rebeca, de
apenas 9 anos - estuprada e morta a 50 metros de uma base da UPP. A morte
da menina chocou a todos os moradores e a insegurança tomou conta da
comunidade.
Os tiroteios diários na Rocinha fizeram e fazem parte da
rotina dos moradores durante o ano, sendo ainda mais intensificado nos últimos
6 meses. A comunidade passa por um tempo de grande aflição e medo. Os tiroteios
são intensos e impede que as pessoas possam transitar com segurança dentro da
comunidade.
A péssima qualidade do serviço de transporte para os
moradores foi motivo de muita reclamação a Secretaria de Transporte que fez
diversas alterações sem consulta dos moradores. As vans tiveram seus trajetos e
números de veículos reduzidos, o que impactou negativamente na vida dos
moradores. Os ônibus continuam lotados e o trânsito caótico.
Ficamos muito insatisfeitos com a decisão do Governo em
retirar um Pólo de Educação que servia como forma de desenvolvimento dos
moradores no aprendizado da educação básica e superior e que deu prioridade a
uma delegacia de polícia. O que mostra que a prioridade para as
favelas não é educação e qualidade de vida e sim policiamento.
A lei do lixo zero foi implantada na cidade e serviu para
deixar as ruas limpas multando o cidadão que joga seu lixo no chão. Mas
continuamos na dúvida de quem vamos multar pelo péssimo serviço realizado pela
Comlurb na Rocinha que é lembrada pelas imensas pilhas de lixo espalhadas nas
comunidade onde proliferam ratos e baratas.
A instalação do teleférico na comunidade também foi alvo de
muitas críticas entre os moradores que julgam que esse sistema de transporte não é prioridade para
o local. Precisamos, sim, de muitas outras coisas, coisas básicas, como saneamento. Lideranças
comunitárias levaram a causa até o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro para
um estudo sobre a necessidade do teleférico e como resposta: "a prioridade para Rocinha deve ser o saneamento básico".
O trabalho social que foi prometido com a instalação da UPP
deixou a desejar e são poucos os projetos sociais realizados na comunidade, que
tanto precisa de ações para desenvolvimento e educação das crianças e jovens. O
PAC 2 foi um dos temas mais falados e revelou mais uma vez a falta de diálogo
com os moradores. Já o PAC 1, iniciado há tantos anos, ainda não foi finalizado e muitas
obras ainda não saíram do papel. Não temos plano inclinado, o caminho do Boiadeiro
continua sem ser revitalizado e se transforma em um rio de água suja e lixo
quando chove. A creche ainda não foi entregue, e o Valão não foi urbanizado.
Como podemos acreditar no PAC 2 se o seu antecessor anda não foi concluído?
A
educação para nossas crianças e jovens na comunidade ainda
não é o modelo que gostaríamos. Nossos filhos ainda precisam ser
sorteados para
poder estudar nas creches e a situação das nossas escolas públicas
revela que há algo de errado, tendo em vista a evasão escolar e o baixo
desempenho dos
alunos. Nas férias, as crianças ficam sem atividade, as escolas ficam
fechadas,
não se tem atividades de recreação, ou uma simples colônia de férias.
Enfim, governador e prefeito, podemos concluir, com esse ano
tão marcado pela insatisfação do povo, que não adianta apenas reprimir o morador
com polícia. Até porque a parte majoritária de moradores é de trabalhadores e
gente honesta. Precisamos de muito mais, o trabalho precisa ser feito bem antes,
precisa ser na educação básica de todas essas crianças. Precisamos de
oportunidades e interesse do governo, em educar e criar oportunidades para
nossos jovens. É necessário que sejam criadas e aplicadas políticas de educação
e inclusão. Queremos ser ouvidos, queremos que nossas reivindicações sejam respeitadas
e atendidas.
Nossa vida de morador de favela é muito trabalhosa e
difícil, são diversas as barreiras, crescemos cercados pela violência e a falta
é uma realidade na vida de quase todos moradores, falta moradia, falta
educação, falta oportunidade, falta saúde. E o pior, é que falta um poder
público com governantes comprometidos e suas responsabilidades em dia.
Esperamos que nesse Natal os senhores possam aproveitar a
sensibilidade transmitida pelo Espírito Natalino do nascimento de Cristo e possam
olhar para a Rocinha com carinho e amor, com vontade de transformar de verdade
a situação das vidas de tantas famílias, de tantos trabalhadores
que cumprem, muitas vezes, suas jornadas dobradas para oferecer com toda dificuldade uma vida mais digna
e feliz aos seus familiares. Esperamos que nosso Natal seja de Paz.
Boas Festas!
*Davison Coutinho, 23 anos, morador da Rocinha desde o
nascimento. Bacharel em desenho industrial pela PUC-Rio,
Mestrando em Design pela PUC-Rio, membro da comissão
de moradores da Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu, professor,
escritor, designer e liderança comunitária na Comunidade, funcionário
da PUC-Rio.