Sexta, 27 de dezembro de 2013
Por Andressa Caldas e Eduardo Baker*
O ano de 2013 vai ficar marcado pelas manifestações iniciadas em junho e que tomaram as ruas de várias capitais brasileiras. Com o devido distanciamento histórico, seu significado e consequências ainda serão objeto de muitos estudos e análises.
O ano de 2013 vai ficar marcado pelas manifestações iniciadas em junho e que tomaram as ruas de várias capitais brasileiras. Com o devido distanciamento histórico, seu significado e consequências ainda serão objeto de muitos estudos e análises.
Para perplexidade de muitos, as maiores mobilizações deste ano não
foram planejadas por nenhum partido ou sindicato. Por outro lado, as
frases estampadas nos cartazes feitos artesanalmente para as passeatas
refletem em grande medida – de forma criativa e oxigenada – as agendas
levantadas pelos movimentos sociais nos últimos anos.
Por enquanto, o que se pode dizer é que as mobilizações mudaram. Saem
os discursos dos carros de som, entram as marchinhas e performances
espontâneas de anônimos e coletivos. Menos panfletos e faixas, mais
cartazes e projeções de vídeo. Tudo sendo transmitido ao vivo – por
grupos de jornalismo independente ou por qualquer um com celular, outra
novidade das jornadas de junho. Graças ao streaming, o reality show dos
protestos escancarou situações há muito conhecidas e denunciadas pelas
periferias urbanas e pelos movimentos sociais: a extrema brutalidade da
polícia brasileira e a cobertura tendenciosa da mídia corporativa.
“Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”
Se tudo começou por 20 centavos – sintoma mais evidente do
encarecimento do custo de vida e da gentrificação dos centros urbanos –,
não há dúvidas de que tanto a resposta violenta da polícia como a
cobertura distorcida das empresas de comunicação acabaram por
rapidamente unificar no país duas pautas necessárias e urgentes: a
desmilitarização da polícia e a democratização da mídia.
A dobradinha “a mídia aponta, a polícia atira” tem servido para
estigmatizar e criminalizar todo aquele que ameace a ordem e os
interesses corporativos. As mesmas alcunhas de “subversivos”,
“baderneiros”, “vândalos”, “terroristas” já foram e seguem sendo
repetidaspelos mesmos meios de comunicação para designar militantes que
lutaram contra a ditadura, trabalhadores grevistas, sem-terra, sem-teto,
vendedores ambulantes, indígenas e moradores de favelas.
Hoje, o alvo são os Black Blocs. Para desespero inconformado da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e das polícias, o novo
“inimigo interno” nem sequer se constitui como movimento. Não tem
líderes nem sede. Como se sabe, black blocnada mais é do que
uma tática de ação direta surgida na Europa nos anos 1980, que, por um
lado, protege os manifestantes da violência policial e, por outro, ataca
símbolos do autoritarismo e do capitalismo. Porém, nada disso importa:
eles são o novo bode expiatório.
Se a tática black blocpode ser considerada uma das grandes
novidades das mobilizações no Brasil, a resposta do Estado, no entanto,
continua a mesma: abuso de autoridade, repressão policial, legislação de
exceção e criminalização.
Há requintes de crueldade e toques de surrealismo na ação dos agentes
de segurança nestes últimos seis meses. Policiais sem identificação
nominal usam indiscriminadamente armas Taser e spray de pimenta, jogam
bombas dentro de casas e hospitais e abusam dos tiros de bala de
borracha – que cegaram pelo menos duas pessoas.
No Complexo da Maré, no entanto, as balas não eram de borracha. Em 24
de junho, após manifestação realizada no bairro de Bonsucesso pela
redução do valor da passagem de ônibus, o Bope – com o apoio da Força
Nacional – entrou na favela e matou dez moradores. A mídia tradicional
logo caracterizou o massacre como “confronto entre policiais e
traficantes”. Longe de ser um ato isolado de alguns agentes, a
brutalidade e a arbitrariedade constituem o modus operandida polícia, claramente ditado por seus comandantes, que devem ser responsabilizados.
Em São Paulo, pessoas foram detidas por “porte de vinagre” – como no
caso do jornalista Piero Locatelli, que cobria as manifestações. No Rio,
o morador de rua Rafael Vieira está preso desde 20 de junho, autuado
por suposto “porte de explosivo”. No documento policial, no entanto,
consta a apreensão de uma vassoura, uma garrafa de desinfetante e água
sanitária, material que Rafael usava para limpar o local onde dormia: o
chão da rua.
No Distrito Federal, mais de trinta pessoas foram detidas durante
protesto na abertura da Copa das Confederações. Muitas horas depois,
militantes foram presos dentro de casa, em suposto flagrante. Também na
capital, no dia 15 de novembro, após ato pela desmilitarização da
polícia, cinquenta manifestantes foram detidos e quinze deles levados
para presídios.
No Rio de Janeiro, após manifestação no dia 15 de outubro em apoio à
greve dos professores municipais, cerca de duzentas pessoas foram
conduzidas à força a delegacias, tendo ocorrido 84 prisões provisórias
por supostos flagrantes. Além do grande volume de detenções, o que
qualifica especialmente esse dia é o uso da Lei de Organizações
Criminosas (Lei n. 12.805/2013) contra os manifestantes, enquadrando a
atividade de protesto como “associação criminosa”. Igualmente grave foi o
uso de penas inafiançáveis para dificultar a liberdade dos
manifestantes presos e a internação forçada de adolescentes. Um
manifestante que participava da ocupação na escadaria externa da Câmara
dos Vereadores do Rio, Jair Seixas, conhecido como Baiano, permanece
preso, acusado injustamente do crime de associação com porte de arma.
Em São Paulo, a polícia ressuscitou da ditadura a Lei de Segurança
Nacional para enquadrar um casal de manifestantes. Em 28 de outubro, a
polícia prendeu mais de noventa manifestantes na zona norte paulistana.
No dia 14 de novembro, cerca de oitenta manifestantes, logo chamados de
“Black Blocs”, foram intimados a prestar depoimento. O promotor do caso,
antes mesmo de concluir as investigações, afirmou estar “lidando com
uma organização criminosa” e, com base em “matérias jornalísticas”,
comparou os Black Blocs às Farc, exatamente como fez o Ministério
Público do Rio Grande do Sul em relação ao MST cinco anos atrás.
“Da Copa, eu abro mão. Quero dinheiro para a saúde e a educação”
A menção à Copa do Mundo nos gritos durante os protestos no país não é
por acaso. Das vaias à presidente Dilma na abertura da Copa das
Confederações em Brasília, os protestos seguiram o calendário dos jogos e
ocorreram em praticamente todas as cidades-sede, deixando claro o
descontentamento da população com os excessivos gastos em megaeventos
esportivos e com as inúmeras violações de direitos humanos cometidas “em
nome da Copa”. O desfecho violento na final no Maracanã mostrou o que
pode acontecer – em maior ou menor escala – em 2014.
Em seu pronunciamento oficial de 21 de junho, a presidente Dilma
defendeu que o Brasil vai fazer uma grande Copa. Apesar de se dizer
atenta “às vozes democráticas que pedem mudanças”, a presidente não
proferiu nenhuma palavra sobre os abusos policiais nem fez até hoje
qualquer menção à urgente reforma das polícias, reivindicada nas ruas.
No dia 31 de outubro, o governo federal deu mostras que terá uma
postura ainda mais repressiva. O ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo, se reuniu com os secretários de Segurança Pública do Rio e de
São Paulo para propor a cooperação das inteligências das polícias e da
Abin e medidas de exceção, como a criação de tribunais itinerantes
durante as manifestações e mudanças na legislação.
Coincidentemente ou não, as medidas do Ministério da Justiça e as
ações mais contundentes de repressão e prisões maciças em São Paulo, Rio
de Janeiro e Distrito Federal ocorreram algumas semanas após uma
reunião de emergência da presidente Dilma com dois dos principais
patrocinadores da Copa, que pediram garantias de que as manifestações
não atrapalhariam o Mundial. De acordo com a imprensa, a presidente
teria assegurado que fará “tudo o que for preciso” para que não haja
protestos.
Enquanto o governo garante que não vai haver protestos durante a
Copa, as multidões e as redes sociais ecoam o grito de “Não vai ter
Copa”. Essa é a nova síntese que vem das ruas. Ainda é cedo para saber
se a expressão é um vaticínio ou mera provocação; uma palavra de ordem
ou apenas uma hashtag. 2014 ainda não começou.
*Andressa Caldas e Eduardo Baker
Advogados e pesquisadores da Justiça Global
Thiago Melo
Advogado do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH).
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil