Sábado, 28 de dezembro de 2013
Texto extraído da Tribuna da Imprensa
Agência de Notícias das Favelas*
Estou preocupado com o
apoio da mídia ao discurso defendido pelo Secretário Beltrame, em
recente entrevista n´O Globo, onde relacionava segurança em favelas à
remoções habitacionais.
Em primeiro lugar, implico com o termo remoções, que significa retirar alguma coisa de algum lugar e remete às políticas de erradicação de favelas dos anos 1960.
Pessoalmente, prefiro o
termo realocações, que significa recolocar alguma coisa em outro local,
no caso das favelas, segundo a legislação Federal sobre o tema, em um
local próximo ao original.
Na entrevista em pauta, o
Secretário de Segurança se referiu a um suposto “tabu sobre remoções”,
classificando qualquer postura diferente da sua, de “ideológica”.
De um lado, essa posição
revela uma maneira de pensar autoritária, que qualifica a opinião dos
outros de ideológica, sendo apenas a sua própria, despida dessa
contaminação política, já que estritamente técnica e objetiva.
De outro, cabe
esclarecer que, já há muito tempo, os programas de urbanização de
favelas recorrem às realocações, segundo critérios relacionados a riscos
de desabamento de imóveis, deslizamentos de terreno, abertura de
espaços para implantação de equipamentos sociais e áreas de lazer, ou
mesmo para permitir a insolação e a ventilação de espaços congestionados
e insalubres.
Portanto, o alegado “tabu” é um mito.
Quanto ao argumento de
que a abertura de vias carroçáveis é indispensável para a polícia
garantir segurança aos moradores das favelas e do seu entorno formal,
parece-me que ele só seria válido para as favelas da Zona Sul do Rio.
Caso contrário, já teríamos segurança nas favelas da Maré, Vigário
Geral, Parada de Lucas e Antares, ou mesmo nos conjuntos habitacionais
do Amarelinho, Vila Kenedy ou Cidade Alta, já que nesses locais existem
vias de boa qualidade e o tráfico continua a reinar.
Na realidade, a tese do
Secretário carece de uma demonstração nesse locais, para ser replicado
nas cobiçadas encostas com vista para o mar, da Zona Sul.
Na mesma entrevista, é
afirmado que a abertura de vias também serviria para “passar os canos”
de infraestrutura de água, esgoto e drenagem pluvial. Para tanto, não é
necessário abrir vias, já que a tubulação de esgotos mede 150 mm de
diâmetro e a de áura, menos ainda. Para a drenagem pluvial, em favelas
de encosta, recomendam-se canaletas de 40 cm de largura, abertas para
facilitar a limpeza. Portanto, esse argumento, em favor da abertura de
vias, não encontra justificativa, na prática da urbanização de favelas.
Mesmo a questão da
mobilidade interna, nas vilas das ilhas gregas, em partes de Alfama, nas
aldeias de montanha na Itália, ou em Marakesh, não existem vias
carroçáveis e tudo funciona muito bem. Aqui no Rio, a favela Santa
Marta também não tem vias carroçáveis e muito boa acessibilidade, com
seu plano inclinado, que também transporta cargas e desce o lixo
cotidiano.
Claro que um
profissional de segurança aborda a questão das favelas por sua ótica
específica e privilegiando facilidades para o policiamento, sobretudo a
entrada das viaturas policiais.
Mas as favelas não são
um caso de polícia. O próprio Secretário Beltrame vem repetindo
constantemente que as UPPs são apenas uma parte de um conjunto de ações
do poder público envolvendo saúde, educação, saneamento básico e
programas sociais.
A idéia de abrir ruas de
padrão da cidade formal nas favelas, dando acesso à caminhões de
entrega e automóveis, representa uma mudança radical nos padrões de
urbanização originais, reflexo das condições do sítio e da situação
sócio-econômica da população que ali se instalou.
O que mantém a população
favelada em locais próximos de oportunidades de geração de renda,
equipamentos sociais e amenidades são aqueles padrões com altas
densidades e algumas vielas e escadarias.
Abrir vias, em padrões
“consumiveis pela classe média, vai desembocar na gentrificação, ou
“remoção branca” dos moradores pela via do mercado.
Esse processo,
perfeitamente previsível, certamente redundaria na formação de novas
favelas em locais menos “nobres”, provavelmente nas periferias
distantes.
Será essa a intenção oculta nesse novo discurso?
Acho que precisamos
abrir essa discussão em grande, envolvendo, inclusive, os moradores de
favelas. É do debate esclarecedor que vem o avanço da compreensão, do
diálogo e do próprio processo democrático
O tema é amplo e desafiador: qual o projeto de cidade que queremos e nele, que futuro terão as favelas?.
*Esse texto é fruto de uma intensa troca de e-mails entre o responsável pela Agência de Notícias das Favelas (ANF) e o Arquiteto Caludius Cecon.