Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Sobre Acari, Ferguson e outras mazelas

Sexta, 28 de novembro de 2014
Da Tribuna da Imprensa
Igor Mendes
Confirmando a sua formação racista, o Estado norte-americano, através de decisão do júri, negou abrir processo contra o policial Darren Wilson que, em agosto último, assassinou o jovem Michael Brown na cidade de Ferguson (Missouri). Enquanto o mundo assiste pela televisão a onda de protestos que essa decisão gerou naquele país, que registrou manifestações em mais de cem cidades, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro segue matando pessoas pobres, a maior parte negras, nas favelas.
Na última quarta-feira, 26/11, durante operação em Acari, a polícia executou Ana Cláudia Germano Coutinho com um tiro de fuzil no rosto. Ana trabalhava numa lavanderia e era mãe de quatro filhos. Há 22 anos ela perdera uma irmã, também vítima da violência policial. Além desse assassinato, a PM violou dezenas de domicílios, humilhando indistintamente as pessoas, sem qualquer autorização judicial.
Nos Estados Unidos a morte de Brown foi capaz de produzir revolta, e um júri teve que se reunir para, ao menos, legitimar a farsa. Aqui poucos se movimentam, além dos diretamente atingidos, e basta que o próprio homicida alegue legítima defesa, lavrando um auto de resistência, para que nada aconteça. Em terras brasileiras a história se repete, mas apenas como tragédia.
Mil palavras nos dizem muito sobre uma imagem
Circula nas redes sociais imagem de uma criança negra, que teve o cabelo raspado pelo pai de modo a imitar uma espécie de calvície. A legenda da foto diz: “O muleque tava reclamando que queria ser mais velho, o pai foi e fez esse super corte de cabelo”. Pior do que a imagem são os comentários das pessoas, exaltando a “pedagogia da humilhação” desse suposto pai1.
Muitas reflexões são possíveis. Uma das que se impõem é o fato de tantas pessoas se divertirem com a humilhação alheia, ainda mais, de uma criança. Ninguém que esteja em pleno domínio de suas faculdades mentais gostaria de ter sua imagem exposta de maneira vexatória –mas o individualismo doentio no qual estamos imersos criou um verdadeiro muro gelado de indiferença, que na verdade é uma das formas mais antigas de preconceito. O antigo provérbio “não faça com os outros o que não quer que seja feito com você” parece ter caído em inapelável desuso. A criança vira “muleque” –equivalente ao estereótipo do “menor” criado pela televisão, e como tal deixa de ser criança (igual), torna-se um desigual. E o que atinge um diferente, não nos atinge...assim que para o diferente se transformar no inimigo falta menos que um passo.
 
Quando a Polícia mata ou estupra ou espanca um “diferente”, como aconteceu em Acari, isso simplesmente não nos diz respeito. Se um “igual” é furtado na esquina, queremos prisão perpétua, pena de morte, linchamento. A indiferença, e o preconceito, difundidos muitas vezes (ou quase sempre, até) na forma de piadas, nada têm de inofensivos –e todos os genocídios que se fizeram ou se fazem tiveram neles um pilar de sustentação.
Polícia em campo na final do campeonato
Também na quarta-feira, 26//11, milhões de pessoas assistiam pela televisão a final da Copa do Brasil entre Cruzeiro e Atlético-MG, talvez na vã expectativa de esquecer as mazelas do dia-a-dia. Lá pelos quarenta e tantos do segundo tempo um jogador dá um tranco no outro, esse briga com aquele, o juiz expulsa um deles, e principia um bate-boca. Lance banal, corriqueiro num esporte que se baseia em intenso contato físico, ainda mais numa final, com os nervos à flor da pele. Eis que repentinamente entram policiais fardados em campo, munidos de escudos e cassetetes, coturnos e capacetes, para apartar o que ainda não era sequer uma briga. Entram entre os jogadores, cercam o juiz, e o contraste entre o seu fardamento e os atletas de bermudas e chuteiras é tão ostensivo que parece que assistimos um elefante entrar no meio de um salão de festas, duvidamos que não estamos alucinados.
Retrato do país. Discussão entre vizinhos, falta de médicos nos hospitais, educação precária, desemprego, para todos os males receita-se um único remédio: polícia. Cuidado amigos que resolvam bater uma bolinha, doravante empurra-empurra pode dar cadeia.