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(Millôr Fernandes)

domingo, 24 de abril de 2022

Porquê anular a dívida da Ucrânia?

Domingo, 24 de abril de 2022


Porquê anular a dívida da Ucrânia?

Entrevista de Sushovan Dhar a Éric Toussaint

22 de Abril

por Eric ToussaintSushovan Dhar


«Civilians bear the brunt of the conflict in Ukraine» by EU Civil Protection and Humanitarian Aid is marked with CC BY-NC-ND 2.0.

Sushovan Dhar: Qual é o montante da dívida pública ucraniana e quem são os principais credores?

Éric Toussaint: A dívida externa da Ucrânia ronda os 130 mil milhões de dólares. 80 % são devidos aos mercados financeiros, metade na forma de títulos soberanos, outra metade na forma de crédito directo dos grandes bancos à Ucrânia. Dos restantes 20 %, 15 % são detidos pelas instituições financeiras internacionais, principalmente o Fundo Monetário Internacional (FMI), seguido do Banco Mundial (BM), do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD) e do Banco Europeu de Investimento (BEI). E por fim os 5 % restantes correspondem a dívidas bilaterais à China, França, Alemanha e outros países da União Europeia, Estados Unidos, bem como uma dívida de 3 mil milhões de dólares à Rússia. Resumindo, 130 mil milhões de dívidas externas, das quais 80 % a credores privados, 15 % a instituições multilaterais como o FMI e o BM, 5 % de dívidas bilaterais a países como a China, França, Alemanha e outros da UE e Rússia.

Sushovan Dhar: Qual é a história de endividamento da Ucrânia?

Éric Toussaint: Eis um histórico abreviado do endividamento da Ucrânia desde a sua independência, ou seja pouco mais de 30 anos desde a implosão da União Soviética em finais de 1991. A Ucrânia não herdou dívidas da parte da União Soviética; portanto começou com uma situação bastante favorável, mas o processo brutal de restauração capitalista foi de tal ordem, que os burocratas ucranianos que restauraram o capitalismo se serviram dos cofres do Estado. Os oligarcas enriqueceram de maneira extraordinária, em detrimento dos bens do Estado, à semelhança do que sucedeu na Federação Russa, na Bielorrússia, no Cazaquistão, no Tajiquistão, etc. Houve uma série de oligarcas que enriqueceram à tripa-forra, ao mesmo tempo que beneficiaram do apoio dos membros do Governo, que lhes permitiu adquirirem os bens públicos por meia tuta. O Governo financiou com dívida uma grande parte do orçamento, porque os mais ricos da Ucrânia praticamente não pagam impostos. O Governo ucraniano recorreu sistematicamente a empréstimos, incluindo o crédito junto de bancos privados criados pelos oligarcas. Enquanto os oligarcas beneficiavam de toda a espécie de ajudas do Estado, eles próprios emprestavam ao Estado a taxas de juro que lhes garantiam grandes lucros.

Sushovan Dhar: O Governo também recorreu a empréstimos externos?

Éric Toussaint: Sim, o Governo recorreu a empréstimos externos. Emitiu títulos da dívida nos mercados financeiros internacionais. Além de recorrer ao crédito de bancos estrangeiros. Pediu empréstimos ao FMI e ao BM. A dívida nunca parou de aumentar ao longo das décadas de 1990 e 2000. O FMI condicionou a concessão de créditos à Ucrânia à aplicação de uma estratégia de choque, com medidas neoliberais típicas: liberalização do comércio externo, liberalização dos preços, redução dos subsídios ao consumo das classes populares, degradação de uma série de bens e serviços de base. Além disso encorajou a aceleração dos processos de privatização das empresas públicas. A cada vez, o FMI fixava um objectivo de redução do défice público. Provocou a precarização do mercado de trabalho, com maiores facilidades de despedimento no sector privado e no público. Os efeitos políticos recomendados pelos fundos monetários nacionais foram dramáticos. Assistiu-se a um empobrecimento extremamente grave da população – ao ponto de em 2015 os salários reais dos trabalhadores ucranianos se situarem no fundo da escala de todos os países da Europa.

Sushovan Dhar: Haverá uma parte considerável da dívida da Ucrânia que seja ilegítima?

Éric Toussaint: A resposta é afirmativa: a esmagadora maioria da dívida reclamada à Ucrânia, para não dizer a sua totalidade, é ilegítima. Não foi contraída no interesse da população, foi acumulada para favorecer o 1 % mais rico e os credores internacionais, à custa de uma degradação dramática dos direitos sociais e das condições de vida da população. Tudo isto aconteceu antes de estalar a guerra e a Rússia invadir o território ucraniano – uma primeira vez em 2014 e uma segunda vez em fevereiro de 2022.

Já antes das agressões perpetradas pela Federação Russa dirigida por Vladimir Putin em 2014 e 2022, a dívida reclamada à Ucrânia não beneficiava a população e seria perfeitamente normal considerar que essa dívida não deveria ser reembolsada pela população.


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Rocket attack on Mariupol

Sushovan Dhar: Quais são as dívidas que deviam ser prioritariamente anuladas?

Éric Toussaint: A dívida reclamada pelo FMI, de longe a mais volumosa das dívidas multilaterais, devia ser anulada, pois esse organismo desempenhou um papel directo no processo de destruição progressiva da economia ucraniana e na degradação dramática das condições de vida de grande parte da população. Além disso o FMI favoreceu o enriquecimento do 1 % mais rico e estimulou o aumento das desigualdades.

A dívida reclamada pela Rússia à Ucrânia é um caso à parte. Em dezembro de 2013, quando a Ucrânia tinha Viktor Ianukovytch como presidente, muito ligado ao regime de Putin, a Federação da Rússia convenceu o Ministério das Finanças ucraniano a emitir títulos na Bolsa de Dublin, na Irlanda, no montante de 3 mil milhões de dólares. Tratava-se de uma primeira emissão que poderia ter sido seguida de outras até ao montante de 15 mil milhões de dólares. Portanto a primeira emissão de títulos ascendeu a 3 mil milhões e o conjunto dos títulos foi comprado pela Federação da Rússia, por intermédio de uma empresa privada que as autoridades russas criaram na Irlanda. A taxa de juro é de 5 %. No ano seguinte, a Rússia anexou a Crimeia, que até então fazia parte da Ucrânia. O governo ucraniano mudou, na sequência de mobilizações populares cuja exacta natureza é discutível, pois havia ao mesmo tempo uma autêntica rebelião popular e uma intervenção da direita e da extrema-direita. Havia também a vontade das potências ocidentais de se aproveitarem do descontentamento popular. Tudo isto é muito complexo e eu não estou à altura de fazer uma análise da chamada revolução laranja. O novo governo continuou durante algum tempo a reembolsar a dívida à Rússia. Ao todo foram pagos à Rússia 233 milhões de dólares de juros. A partir de dezembro de 2015, o Governo decidiu suspender o pagamento da dívida.

Em resumo, o Governo ucraniano justificou a suspensão do pagamento com o argumento de que a Ucrânia tinha o direito de tomar contra-medidas contra a Rússia, por esta ter agredido a Ucrânia e anexado a Crimeia. E de facto, ao nível do direito internacional, um estado tem o direito de adoptar contra-medidas e suspender a execução de um contrato em tais circunstâncias.

A Federação da Rússia levou o caso à justiça do Reino Unido, em Londres. De facto, os títulos foram emitidos de acordo com a lei inglesa e em caso de litígio os tribunais britânicos seriam competentes. Portanto a Rússia apresentou queixa, pedindo à justiça britânica que condenasse a Ucrânia e retomar o pagamento. O processo teve início em 2016. No momento em que decorre esta entrevista, a justiça britânica ainda não emitiu uma sentença definitiva, que deve ser decidida nas próximas semanas ou meses.

Houve um primeiro julgamento, seguido de recurso. Por fim o processo chegou ao Supremo Tribunal do Reino Unido em 11 de novembro de 2021 (esta sessão do tribunal pode ser vista integralmente na página electrónica do Supremo Tribunal do Reino Unido).

É importante sublinhar que num primeiro momento os magistrados britânicos, nomeadamente o principal magistrado que teve a seu cargo o processo inicial, era nada mais nada menos que William Blair, irmão de Tony Blair, que até há pouco tempo estava muito ligado aos interesses da Rússia de Putin. Este magistrado tendeu a dar razão à Rússia. A justiça do Reino Unido quer permanecer atractiva para os investidores. O irmão de Tony Blair emitiu uma sentença em março de 2017 na qual não aceitou uma série de argumentos, ainda que evidentes, da Ucrânia [1]. William Blair considerou que não tinha havido verdadeira coacção da Rússia sobre a Ucrânia. Considerou que não se trata de um conflito entre estados. Seguiu o ponto de vista da Rússia, segundo o qual a sociedade que comprou os títulos ucranianos (The Law Debenture Trust Corporation P.L.C.) é uma sociedade privada. Mas na realidade essa sociedade age directamente por conta da Rússia e na verdade foi a Rússia quem comprou os títulos.

A seguir o tribunal de recurso pôs em causa o julgamento emitido por William Blair e agora o processo chegou ao seu último estádio, no Tribunal Supremo.

Como a Rússia invadiu a Ucrânia após fevereiro de 2022, provocando enormes perdas humanas e cometendo crimes de guerra, é difícil imaginar o Supremo Tribunal a dar razão à Rússia contra a Ucrânia neste processo. A sentença será fortemente influenciada pelo curso dramático do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Se o Tribunal reconhecer que a Rússia exerceu coacção (duress) contra a Ucrânia e que a Ucrânia tem o direito de exercer contra-medidas, a sentença criará jurisprudência e outros estados poderão evocar essa jurisprudência nos seus conflitos com os credores. Por isso este processo é tão importante.

Sushovan Dhar: Qual é a posição do CADTM a respeito da anulação das dívidas reclamadas à Ucrânia?

Éric Toussaint: O CADTM considera que todas as dívidas reclamadas à Ucrânia devem ser anuladas. Estamos a falar das dívidas que se encontram nas mãos de credores privados, do FMI, do Banco Mundial e doutros organismos multilaterais e das dívidas bilaterais, isto é, reclamadas por outros estados. O CADTM, juntou-se a uma petição internacional, 20642, lançada após a invasão da Ucrânia por movimentos sociais e personalidades individuais sediadas na Ucrânia e que resistem à invasão. Os signatários dessa petição declaram, muito justamente, que «Os empréstimos caóticos e a imposição de condições anti-sociais da dívida resultaram de uma oligarquização total: pouco inclinados a lutarem contra os ricos, os dirigentes do Estado endividaram-se cada vez mais. Os empréstimos foram emitidos com a condição de as despesas sociais serem reduzidas e o seu reembolso obriga a economizar nas necessidades vitais e a aplicar a austeridade em sectores vitais da economia.» Esta é uma razão suficiente para exigir a anulação da dívida ucraniana.

Sushovan Dhar: Que faz o Governo ucraniano?

Éric Toussaint: De facto é muito importante colocar essa questão: que faz o Governo ucraniano? Em vez de suspender todo o pagamento da dívida, a fim de resistir à agressão externa, o Governo ucraniano segue a pura lógica neoliberal de reembolsar toda a dívida, com excepção da parte reclamada pela Rússia. Encontramo-nos por isso numa situação extremamente grave. Embora o Governo devesse suspender o pagamento da dívida, ele insiste em salvaguardar a sua credibilidade junto dos mercados financeiros e dos diversos credores e continua a desviar quantidades enormes do seu orçamento para o reembolso dos juros da dívida.

Além disso continua a contrair novos empréstimos. Está a emitir títulos de guerra vendidos nos mercados financeiros. Por conseguinte o Governo ucraniano aumenta a dívida, aumentou os seus pedidos de crédito junto do FMI, do Banco Mundial, do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento, do Banco Europeu de Investimento e de outros credores bilaterais. Continua a aplicar políticas neoliberais de austeridade anti-social, com o argumento da necessidade de fazer um esforço excepcional para resistir à invasão russa. O Governo decretou que os trabalhadores devem trabalhar mais horas; que deviam reduzir as férias; e permitiu aos patrões despedir mais facilmente os trabalhadores em plena situação de guerra. Acho que é preciso denunciar a política do actual governo. É preciso adoptar outra atitude política: suspender o pagamento da dívida, perguntar onde param os oligarcas ucranianos, expropriar os seus bens e devolvê-los ao povo ucraniano. É claro que também é preciso expropriar, com a máxima urgência, os oligarcas russos e reverter o seu património para um fundo de reconstrução da Ucrânia controlado pelos movimentos sociais. Mas enquanto a imprensa internacional insiste em destacar justamente os oligarcas russos, o CADTM não encontra nenhuma razão para considerar que os oligarcas ucranianos sejam aliados do povo ucraniano. A luta de classes continua durante a guerra. Os oligarcas ucranianos deviam prestar contas e deviam ser expropriados; mas na realidade continuam a enriquecer escandalosamente, com a cumplicidade do Governo ucraniano e das potências estrangeiras.

O Governo ucraniano deveria também decretar um imposto de guerra sobre os mais ricos, sobre o 1 % mais rico, para financiar o esforço de guerra. Seria necessário fazer uma auditoria da dívida com participação civil, pois a dívida atingiu tais proporções, que é absolutamente inconcebível não apontar os responsáveis pelo endividamento totalmente irresponsável contraído tanto pelo governo precedente como pelo actual.




Tradução: Rui Viana Pereira

Notas

[1Ver o comentário de Monica Feria-Tinta e Alister Wooder, «Sovereign debt enforcement in English Courts: Ukraine and Russia meet in the Court of Appeal in USD 3 bn Eurobonds dispute», https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=ee2a9c0d-a27f-4b31-8e25-2f1e70c37f79

Eric Toussaint 

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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