Terça, 30 de agosto de 2011
Pedro Fuentes (*)
Pedro Fuentes (*)
Os combatentes rebeldes líbios, já apoiados por uma grande parte da
população de Trípoli, estão acabando com os últimos focos de resistência de
Gaddafi. Trata-se de um novo triunfo, mais um da revolução que se desenvolveu no mundo
árabe a partir do começo do ano e que seguramente se estenderá a Síria, Iêmen, Marrocos, Argélia. Nosso partido não pode se confundir de
maneira nenhuma dando apoio – mesmo que crítico – a Gaddafi ou Bashar al Asad.
Nós, que defendemos as bandeiras do “socialismo e da
liberdade” ficaríamos do lado oposto às revoluções democráticas, que estão
comovendo o mundo e a dominação imperialista.
A revolução na Líbia, por ser o processo mais complexo da região
abriu uma série de questionamentos. Sete semanas após seu começo e quando as
tropas de Gaddafi ameaçavam Bengazi, a OTAN interveio com seus bombardeios
aéreos. É a partir daí que surgem dúvidas em muitos lutadores e que setores da
esquerda também planteiem que o que ocorre é um triunfo do
imperialismo. Trata-se de um debate muito importante. Se aceitarmos esse raciocínio o que estaria acontecendo é que na região árabe é que na região árabe se iniciou
uma contra-revolução que vence una Líbia. Sob a idéia de uma luta contra o imperialismo estaríamos justificando as matanças de Gaddafi e de Bashar al Asad de
milhares de lutadores. Esse mesmo raciocínio levaria a pensar que definitivamente o que houve no mundo árabe foi revoltas que terminaram controladas pelo imperialismo.
É verdade que a Líbia é um país cobiçado por sua riqueza petroleira e
por causa dela os perigos da ingerência imperialista existem. Mas, o mais
importante e determinante da situação é que o velho regime está sendo derrubado;
esse é o triunfo do povo líbio e da revolução democrática árabe que deu
um novo passo adiante.
O Levante Popular na Líbia e a Guerra Civil
As manifestações revolucionárias iniciadas na Líbia em 16 de
fevereiro em Bengazi e que logo se propagaram a varias cidades chegando à
Trípoli sob o lema “Fora Gaddafi”, foram um feito previsível. A Líbia se encontra geograficamente entre Tunísia e Egito, os dois
países que, nessa data já haviam instalado revoluções populares. Gaddafi não era muito diferente de Ben Alí e Mubarak; Conduzia também
um regime autocrático no qual não cabiam mais partidários que os de sua família e se mantinha com o controle por meio da
repressão. Com o levante revolucionário que encabeçou em 1969, a Líbia se
converteu em um país independente. Mas, como já aconteceu muitas vezes na
história, o governo nacionalista foi se degenerando para culminar em 2000 com um
forte acordo com o imperialismo. Os abraços com Tony Blair, Berlusconi e, mais
recentemente a própria Hillary Clinton, selaram a abertura da riqueza petroleira para as empresas estrangeiras. ENI da Itália,
Winterstal da Alemanha, Total da França, Marathon e Philips dos EUA obtiveram
grande parte do petróleo líbio. Esses abraços foram mais estreitos quando
Gaddafi tomou partido na “Guerra contra o Terror” de Bush a partir da qual se justificaram as
invasões do Iraque e Afeganistão. Gaddafi assumiu uma posição ativa de
perseguição do islamismo e uns dos principais suportes da política imperialista
em toda a região.
(*) Secretário de Relações Internacionais do
PSOL
O levante popular foi protagonizado pelo povo, com os jovens da
vanguarda, da mesma forma que sucedeu em outros países. Bengazi, uma zona
tradicionalmente opositora, se transformou no centro da revolução e as
mobilizações se estenderam para numerosas cidades alcançando Trípoli alguns dias depois. Jamal Jaber,
militante libanês que esteve em Bengazi enviado pela revista trotskista Inprecor relata, em um recente artigo sua experiência em Bengazi.
Ele fala de uma “total liberdade de expressão e uma vida associativa intensa.”
Destaca como impactante a participação das mulheres nas atividades da Praça da Liberdade, rebatizada com esse nome (era Praça dos Tribunais).
Ele disse que pode constatar uma quantidade de demandas exigindo a emancipação
das mulheres, assim como uma participação muito grande de jovens. Relata que na
praça havia um grande cartaz que dizia “Por uma Líbia unida contra a divisão” e
algumas fotos do Che e de Bob Marley entre os jovens muito ativos. Um grande
cartaz dizia “Palestina e Líbia: revolução para a nação árabe”. Tivemos a
possibilidade de estar na Praça Tarhir do Egito o una Boulevard Borguiba de Túnis, podemos compreender que era algo muito similar
com o que se passava no país.
“Esmagar os revolucionários como ratos”
A diferença com essas revoluções é que na Líbia o regime não caiu,
Gaddafi resistiu às primeiras grandes investidas populares e lançou uma brutal
repressão. Seif Al Islam, seu filho e sucessor, graduado em Economia e Relações
Internacionais em Londres, ocupou a televisão para afirmar de forma ameaçadora
que estavam dispostos a usar toda a força militar para esmagá-los como
camundongos. E assim o foi. Apesar da deserção de alguns líderes e ministros,
Gaddafi manteve o controle do exército para lançá-lo brutalmente contra o povo
mobilizado nas ruas. A repressão sanguinária custou milhares de mortes. O povo
não se assustou e se armou graças ao assalto a delegacias e quartéis e com isso,
a revolução deu um passo para transformar-se em um enfrentamento armado
desigual. Em um primeiro momento as milícias que foram conformando o exército
rebelde conseguiram avançar sobre cidades importantes e com ele surgiu a
Autoridade Provisória que agora passou a se chamar CNT (Conselho Nacional de
Transição). Esse exército não-profissional foi o resultado de uma ampla frente
anti-Gaddafi formada pelos jovens voluntários que surgiram nas praças, militantes do islamismo agrupados na
Irmandade Muçulmana, setores democráticos de classe média, entre eles muitos
profissionais, e setores burgueses que se localizam em Bengazi. Há, inclusive,
militantes islâmicos radicais que têm conexões com a Al
Qaeda.
Sua preparação improvisada e seu plano militar
espontaneista e caótico tornou possível que Gaddafi, com base nos bombardeios de
sua aviação e seu exército profissional recuperasse terreno e lançasse uma
ofensiva brutal e sanguinária que impôs um cerco ameaçador sobre
Bengazi.
A intervenção da OTAN
A OTAN interveio quando se preparava um banho de
sangue exemplar em Bengazi para terminar com a revolução. Não seria a primeira
vez que Gaddafi lançaria uma repressão violenta sobre esta cidade: o fez em 1984
contra um levante popular da oposição.
Há de se destacar que o imperialismo deixou a
ofensiva de Gaddafi correr durante todo esse tempo. Os rebeldes pediam armas,
que os países ocidentais se negavam a dar sob o pretexto de não armar os
islâmicos vinculados à Al Qaeda. Os rebeldes também pediram o fechamento do
espaço aéreo no início de março e a Liga Árabe fez o mesmo em 6 de março. A ONU
aprovou sua resolução no dia 17 do mesmo mês e sua intervenção começou vários
dias depois. Dessa maneira, as Nações Unidas intervieram quando a revolução
estava debilitada, e para evitar que aparecessem como cúmplices da matança aos
olhos da grande maioria da população mundial. Os rebeldes apelaram aos únicos
que podiam apelar para defender sua revolução e Bengazi. Estavam entre a cruz e
a espada, morrer como ratos ou salvarem-se por meio dos bombardeios da OTAN.
Como escreveu Gilbert Acchar em seus artigos publicados no Inprecor, nesta
situação era lícito fazer um pacto com o diabo.
No já citado artigo de Jamal Jaber, ele também
conta que, “a maioria dos insurgentes que entrevistou em Bengazi, sobretudo os
jovens, continuam pensando que a intervenção da OTAN é necessária para acabar
com o que resta do regime de Gaddafi e estender a autoridade do CNT (Conselho
Nacional de Transição) sobre o conjunto do território. Mas que se trata de um
acordo de curto prazo”. “Quando eu frisei que se tratava de uma questão
perigosa, eles me responderam que não era mais de uma convergência de interesses
em curto prazo, e que eles, (os imperialistas) não teriam mais vantagens sobre o
petróleo das que Gaddafi já havia acordado”.
Então, não é uma coincidência que apesar da
heterogeneidade, esta frente anti-Gaddafii nunca pediu soldados em terra. E não
é por coincidência que um dos cartazes mais significativos na Praça da Liberdade
dissesse “Não à intervenção estrangeira sobre o nosso
solo”.
Por isso, era e é um erro pensar que a partir dos
bombardeios os rebeldes se transformaram em uma peça do imperialismo. Dessa
maneira perde-se de vista o conjunto da revolução árabe e da Líbia como parte
dessa revolução, bem como as grandes diferenças que essa ação militar possui em
relação a outras levadas a cabo pelo imperialismo. O imperialismo é sempre um
inimigo, evidentemente, e até que as massas o derrotem no mundo, são o principal
inimigo no sistema capitalista. Mas há que se fazer uma análise concreta da
situação em que atua; nem todas suas intervenções são iguais e têm a mesma
força.
Porque a Líbia não é o
Iraque
A intervenção na Líbia é muito diferente das
guerras de Bush e Rumsfeld no Afeganistão e no Iraque em importantes aspectos.
Iraque e Afeganistão foram guerras de conquista territorial com objetivos
colonialistas, nas quais os bombardeios altamente destrutivos tinham como
finalidade facilitar a ocupação militar dos territórios. Ademais, nesses países
havia no poder governos autocráticos que tinham controle total sobre o regime.
Na Líbia, a intervenção ocorre quando há uma revolução em curso e depois que se
deram mal nas guerras de conquistas que mencionávamos. É uma opinião geral que
no Iraque não conseguiram implementar seus objetivos e tiveram mais perdas que
ganhos, por isso estão se retirando, e que o Afeganistão vai pelo mesmo
caminho.
Se até agora não foi posto na Líbia nenhum soldado
em terra e não se encarou como uma guerra de conquista, se deve à luta das
massas líbias, das massas árabes e das derrotas sofridas no Iraque e
Afeganistão. Isto não quer dizer que na nova situação – como logo veremos – não
se tente como em muitos outros países desembarcar uma tropa de paz sob o
pretexto de conter a anarquia e as mortes. Mas é totalmente diferente de uma
ocupação militar. Esta política distinta se expressa também no fato de que pela
primeira vez a ação militar não foi encabeçada pelos EUA e sim pela França. As
diferenças entre o número de aviões e de bombardeios entre essas guerras, e
mesmo a do Kosovo, com a Líbia é muito grande. (Na “tempestade no deserto” em 11
dias no Iraque foram feitas 2.555 incursões por dia, no Kosovo os aliados usaram
1.100 aviões e realizaram em 78 dias 38 mil incursões, na Líbia foram 250 aviões
que efetuaram em 124 dias 11 mil, ou seja, 57 incursões por
dia).
Em um artigo de opinião no jornal inglês The Guardian, Mohamed Salem escreveu:
“Se nos disserem que a Líbia está destinada a ir pelo caminho do caos e da
fragmentação. Que a Líbia será outro Iraque ou Afeganistão. Se enganam, porque o
cenário pós conflito é diferente destes exemplos onde a intervenção militar teve
fracassos cruciais. Na verdade, se estuda os acontecimentos, Líbia está a ponto
de ser o mais completo e com mais possibilidade êxito da maioria dos levantes
árabes”.
E de fato isto pode ser dessa forma. Porque no
Egito e Tunísia a revolução democrática terminou com o regime autocrático, mas
não com todas as instituições dele; ficaram o exército, a polícia e a justiça e
sobre estas a burguesia tenta – e pode talvez conseguir – conter e amortecer o
processo para que não se aprofunde. Na Líbia a situação é outra. O regime está
totalmente desfeito, uma grande do povo está armado, e por isso mesmo existem as
condições para que o processo democrático popular revolucionário avance com
novas instituições.
Não por coincidência a política do imperialismo
foi a de tentar até o último momento uma negociação com Gaddafi para que isso
não ocorresse. Antes e durante os bombardeios se negociava um plano de divisão
do país, com os rebeldes controlando o Oriente com a capital em Bengazi e o
ocidente com Gaddafi, ou um sucessor, com capital em Trípoli. Recordemos que a
resolução da OTAN e as declarações dos líderes ocidentais sempre foram muito
cuidadosas sobre o que fazer com Gaddafi.
Se a divisão da Líbia não ocorreu foi pela luta
dos rebeldes e em particular pela heróica resistência que fizeram em Misrata,
cidade localizada a oeste na zona controlada por Gaddafi. Os habitantes desta
cidade agüentaram dois meses de ataques de Gaddafi. “Jogaram-nos de tudo, até
mísseis Grad. Também nos atacaram pelos lados. Eles têm melhores armas e mais
meios, inclusive instrumentos de visão noturna”, contava um morador ao diário El Pais, da Espanha. Esse cerco a
Misrata foi pouco repelido pela OTAN, que deixou Gaddafi livre. Foi a heróica
resistência dos rebeldes que conseguiu rompe-lo. E são estes combatentes de
Misrata que agora cumprem um papel fundamental para a tomada de Trípoli e a
marcha até Sirte. Foi assim que o processo revolucionário avançou e evitou a
divisão do país.
A nova situação está perfeitamente sintetizada na nota de Mohamed
Salem que citamos: “Líbia está a ponto de ser o mais completo e com mais possibilidade de
êxito da maioria dos levantes árabes”, ou seja,
estão em condições para avançar até um regime novo, uma assembléia constituinte
que reconstrua o país sobre outras bases
democráticas.
Impedir a política de controle do
imperialismo
Derrotado Gaddafi o povo tem a grande tarefa de
reconstruir o país sobre bases democráticas e independentes. A partir da queda
do ditador a frente anti-Gaddafi vai separar-se entre aqueles setores mais
vinculados com o imperialismo e os mais autênticos representantes da revolução
líbia. A nova questão que se coloca é impedir as tentativas do imperialismo que,
em retrocesso em toda a região, pretende recuperar algum peso político a partir
de Líbia e ficar com o petróleo desse país. A tarefa a partir deste novo momento
é a de solidariedade com o povo líbio para impedir a política colonialista que
começará sobre a base de ajudar a reconstrução do país. O que Líbia precisará é
ajuda humanitária solidária e não a presença de missões da ONU, que sob o
pretexto da pacificação, pretenderão pôr o pé do imperialismo no
país.
A revolução árabe golpeou o imperialismo na
região
A revolução árabe, ou apesar dela para aqueles que
defendem Gaddafi, virou de cabeça para baixo o esquema de dominação imperialista
na região, que se sustentava com o apoio das ditaduras árabes – excetuando a
Síria – à política dos EUA no conflito entre a Palestina e Israel. Com a queda
de Mubarak no Egito todo arranjo imperial mudou. A revolução árabe teve
conseqüências diretas até mesmo em Israel, onde começaram mobilizações de
indignados reunindo mais de trezentas mil pessoas. O imperialismo está correndo
atrás, na defensiva, em um processo revolucionário que, como assinalava o cartaz
na praça de Bengazi, tem fortes elementos antiimperialistas, “Palestina e Líbia:
revolução para a nação árabe”. Temos visto a bandeira palestina em todas as
manifestações ocorridas na região; o rechaço à política dos ditadores e o apoio
à causa palestina são componentes importantes da revolução árabe. As ditaduras
estão caindo pelas suas políticas econômicas e seu regime opressor, mas também
porque são vistas como os agentes traidores no mundo árabe da luta do povo da
Palestina.
Uma pesquisa de um importante instituto dos EUA
sobre o prestigio do governo dos EUA na região, que se faz anualmente a 4 mil
pessoas em seis países árabes (Marrocos, Egito, Líbano, Jordânia, Arábia Saudita
e os Emirados Árabes Unidos), mostra a queda impressionante que teve o governo
Obama em 2011, o ano da revolução. O informe diz que “Quando Obama fez o pacto
na Universidade do Cairo em 2009, há 100 dias no cargo, a aprovação dos EUA
passou de 9% em 2008 (era Bush) para 30%, mas agora caiu para 5% na pesquisa
desse ano”. “No Marrocos, por exemplo, as atitudes positivas fizeram os Estados
Unidos passar de 26% em 2008 a um pico de 55% em 2009 e hoje em dia caiu a 12%”.
O informe conclui dizendo que “este é um balde de água fria sobre as ilusões de
alguns analistas nos EUA e em Israel, que queriam imaginar que, no contexto da
primavera árabe, os árabes sentem que o tema palestino não é tão central para
suas vidas”.
Os perigos para a revolução árabe existem. Nesse
rico processo, todavia, não surgiram direções antiimperialistas conseqüentes ou
socialistas, nem classistas com peso de massas. Essa situação não é culpa das
massas destes países, mas sim uma conseqüência que pagamos pelo descrédito que
tem o socialismo com alternativa real, como decorrência da experiência do
socialismo estalinista que fracassou, e que dominou por décadas, setores
importantes do movimento de massas. Mas essa ausência não pode servir para
desmerecer as grandes ações que as massas realizaram, e com elas as mudanças que
estão fazendo no mundo e sua própria aprendizagem que levará mais cedo ou mais
tarde à formação de novas alternativas revolucionárias. Nisso temos que apostar.
O que fazem é muito; estão mudando o planeta e por isso vivemos em um mundo mais
explosivo desde que os povos árabes saíram à luta em janeiro. Estamos em agosto
e já tivemos as praças da Espanha e Grécia, a revolta inglesa, as lutas do
Chile, as grandes mobilizações contra a corrupção na Índia e as greves do
Cazaquistão. A insuspeitamente esquerdista revista Forbes assim titulou um
recente artigo: “Os conflitos no Reino Unido e a nova guerra de classes
mundial”. É verdade, a luta de classes voltou e nela temos que apostar para
avançar no caminho do socialismo com liberdade.
(*) Secretário de Relações Internacionais do
PSOL