Sábado, 2 de junho de 2012
Por Léo Lince*
O confronto entre Lula e Gilmar Mendes, na lona armada pelo
indefectível Nelson Jobim, é o assunto do momento. O cidadão, espantado
diante das versões conflitantes, tem razões de sobra para botar as
barbas de molho. Seria cômico, fosse apenas uma patuscada patrocinada
por três patetas. Mas, por envolver figuras de proa, gigantes putativos
da nossa rala República, pode ser trágico. Crise institucional? Mais uma
operação abafa? Em qualquer dos casos, o “barraco” protagonizado por
contendores de tão elevado coturno revela e avulta a dimensão da
encalacrada na qual estamos metidos.
O primeiro dos contendores, tido e havido como intuitivo genial, foi
titular por oito anos da principal alavanca do poder político no Brasil.
E não foi um presidente qualquer. Liderança popular construída na luta
contra a ditadura, ele polarizou pela esquerda as três primeiras
disputas presidenciais do novo período. Ganhou as duas seguintes e,
depois de governar, fez a sucessora. Floresceu na oposição como
esperança de protagonismo político da classe trabalhadora. Governou
ancorado na composição com as forças conservadoras e teve o apoio
crescente do grande capital. Segundo o mais abalizado dos especialistas
no assunto, ele “salvou o capitalismo brasileiro”.
O segundo contendor, tido e havido como jurista astuto e competente,
ocupou pelo tempo de praxe o mais alto posto do nosso Poder Judiciário.
No Supremo Tribunal Federal, onde foi presidente e continua ativo e
influente, ele opera no contraponto radical daquele tipo de juiz que só
fala nos autos, não se mete em política, nem se faz sócio de empresas e
negócios. Ele, ao contrário, se faz sócio de empreendimentos, faz
política de forma ostensiva e fala pelos cotovelos. Tudo às claras. Ao
dar plantão noturno para revogar a ordem de prisão contra Daniel Dantas,
ele se definiu por inteiro. Julgou salvar, no corpo do banqueiro, o
espírito que anima as nossas instituições. Sem dúvida, ocupa um lugar
ímpar entre os pares da “sereníssima República”, uma espécie de luminar
da “direita togada”.
O anfitrião do encontro, cada vez mais tido e havido como trapalhão, é
um caso à parte. Ao longo das últimas décadas, passeou sua figura
espalhafatosa pelos mais altos escalões dos três poderes. No
Legislativo, sua marca indelével foi a da trapaça na Constituinte
(textos não votados incluídos na Carta Magna). Foi ministro e presidente
da Suprema Corte e saiu de lá com um apelido nada glorioso para a
função exercida: “líder do governo no Judiciário”. No Executivo, foi
titular de ministérios e frequentou o alto escalão dos vários governos
do período. Afastado por falastrão do governo em curso, continua
circulado nas altas esferas dos poderes público e privado. O episódio em
pauta deve reforçar-lhe a fama de pé frio, uma espécie de Rasputin
desastrado.
O encontro, que explodiu como desencontro um mês depois, existiu e
foi pedido por Lula. Essa, por enquanto, é a única certeza. As amizades e
tratativas pregressas que possibilitaram a sua realização, bem como o
teor e o tom do que foi dito ali, saíram da penumbra do segredo para a
ofuscante luminosidade das versões interessadas. O cidadão, nos dois
casos, segue mal servido. Por isso, barbas de molho e atenção redobrada
para os desdobramentos do episódio.
Mais do que indignado, o ex-presidente Lula deve estar arrependido.
Qualquer que tenha sido sua motivação ao pedir o encontro, o tiro saiu
pela culatra. Ele, ao que tudo indica, ainda não elaborou seu novo lugar
na engrenagem do poder. Por ser turno, Gilmar Mendes, como revela a
adjetivação pedestre de suas reiteradas denúncias, partiu para o ataque
como forma de defesa. Ao explicar o motivo do retardo na sua explosão de
revolta, deixou patente a fonte de seus temores. Fez lembrar Roberto
Jefferson.
A chamada turma do “deixa disso” já saiu em campo. Entre a cruz e a
caldeirinha, os magistrados do Supremo buscam formas de contemporização.
O atual presidente, Ayres Brito, remete o problema para o âmbito das
relações pessoais. A sua veia poética prefere tratá-lo como uma
patuscada patética. A presidente Dilma, até por dever de ofício, já
disparou os poderosos mecanismos da operação abafa. No discurso de
desagravo ao ex-presidente, ela pareceu elogiá-lo ao dizer que “as
pessoas nos lugares certos e na hora certa mudam os processos e
transformam a realidade”. Na contraface do espelho, onde a alma se
revela, pode se ler diferente: a mesma pessoa, no lugar errado e na hora
errada, pode escangalhar tudo.
O ex-presidente, indignado com as ofensas do juiz boquirroto, vai
exigir dele retratações para tantas injúrias? Vai processá-lo? O
ministro do Supremo, que acusa o ex-presidente de operar uma central de
boatos a serviço de criminosos, vai exigir explicações na barra dos
tribunais? Ou ficará o dito pelo não dito e tudo seguirá como dantes no
quartel de Abrantes? Crise institucional ou operação abafa? Não se sabe,
de antemão, o rumo dos acontecimentos. Uma coisa, no entanto, é certa. O
episódio em pauta abre uma fase nova na atual conjuntura. Marcada pelo
rescaldo de resíduos tóxicos acumulados (mensalão/CPMI Delta, Cachoeira/
Demóstenes), ela define os termos do ocaso melancólico de um ciclo
político.
*Léo Lince é sociólogo.
Fonte: Correio da Cidadania