Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

DEMONÍACOS PODERES DOS MITOS

Sexta, 28 de agosto de 2020
Por
Pedro Augusto Pinho*

Ernest Cassirer (1874-1945), no “Ensaio sobre o Homem”, de 1944, escreve que “o mito parece ser apenas o caos”, se existe algo característico do mito “é o fato de que ele não tem pé nem cabeça” (Editora WMF Martins Fontes, SP, 2016, tradução de Tomás Rosa Bueno).

Francis Fukuyama, um dos ideólogos de Ronald Reagan, no célebre artigo “O Fim da História” (1989), identificou o desmantelamento dos estados comunistas como o final da “evolução ideológica da humanidade”. Mas o que se viu, na verdade, foi a incrível mudança onde numerosos operários, sindicatos lutam pelo status quo, pelos valores tradicionais, pelo conservadorismo, e o capital financeiro pela total liberdade, pelo fim das fronteiras, pelo avanço tecnológico e pela cultura pantopolista.

Um dos mitos criados pelo liberalismo é o mercado. Ou como denomina a economista Loretta Napoleoni (Economia Bandida, Difel, RJ, 2010) o “Estado-Mercado”. E exemplifica com Silvio Berlusconi, “vindo do nada, com conexões duvidosas com o mundo da política e do crime, ascendeu ao poder explorando o tribalismo do futebol italiano”.

O mito deve ter raízes onde se inserem tradições, culturas, entre elas o esporte. Berlusconi, como analisa Loretta Napoleoni, “requentou o simbolismo mítico do esporte que os italianos mais amam e o vendeu como a nova fórmula da política”.

Aqui, o mito no Governo usou o inegável patriotismo militar para que, com sua farda, vendesse o Brasil para os capitais e interesses estrangeiros. Mas aprofundemos este Estado-Mercado, onde tudo, efetivamente tudo, é negócio.

A dicotomia esquerda-direita se explicitava nas visões antagônicas das igualdades, dos interesses de classe, bem como do papel do Estado e da propriedade privada no que diz respeito aos dispêndios. Ao Estado se pedia controle, moderação e, num extremo, sua total ausência, enquanto à iniciativa privada tudo se abria, invadia até serviços indispensáveis à população porém de baixo retorno financeiro. A própria expansão do poder.

Como se pode concluir, nos eleitores, no povo em geral, pouco ou nunca chamado a discutir política, tão somente a votar, e nos mesmos de sempre, reinava muita confusão nesta “globalização”, para o que contribuíam os próprios políticos e seus partidos. Além da comunicação de massa comercial, reforçando a pedagogia colonial.

Busquemos exemplo em Loretta Napoleoni. “Em 2006, o partido da coalizão da esquerda italiana, La Margherita – dirigido por Romano Prodi, fez campanha contra o aborto e a pesquisa com células-tronco. Em contraste, a Forza Itália, partido de Berlusconi, deu aos seus membros liberdade de voto nessa questão”.

O populismo busca sempre um inimigo — a corrupção, o comunismo, o terrorismo — mesmo quando a justiça atua com rigor nos casos da corrupção pública (a corrupção privada, via de regra, é considerada inevitável aos negócios) e o comunismo e o terrorismo não têm qualquer expressão popular nem política, quando não ajuda a extrema direita com discursos radicais e infantis.

No Brasil, nas palavras do ex-presidente e maior líder do Partido dos Trabalhadores (PT), o seu governo foi o maior amigo dos banqueiros. Efetivamente, durante os 14 anos de governo petista os bancos lucraram como nunca e os veículos de comunicação mais entreguistas foram mantidos pelos cofres públicos. É ou não um nó na cabeça das pessoas.

Logo tudo isso converge para um mito, sem pé nem cabeça, como afirmou Cassirer. E a passagem de um mito para um ditador é apenas uma questão de oportunidade, que o mercado pode criar ou uma comoção nacional facilitará.

Mas as contradições, a dialética das relações sociais nos oferece casos fantásticos.

No momento em que tudo se encaminha no Brasil para um total aparelhamento do Estado-Mercado pelos liberais, alguns militares e a imprensa golpista se transferem para um tipo de oposição. E fica difícil para um homem do povo separar o Presidente, em quem votou, do Ministro que este Presidente escolheu e agora repudia, do jornal/televisão que fez clara e descarada campanha para eleger estes políticos, para o executivo e alguns para o legislativo, e da assumida oposição que agora lhes devota.

Temos outro exemplo na citada obra de Napoleoni. “Na noite de 25 de dezembro de 2004, um ônibus passava por movimentada rua da vizinhança de San Pedro Sula, em Honduras, cheio de trabalhadores, quando, de repente, uma picape saiu de via secundária e bloqueou-lhe a passagem. Um grupo de encapuzados armados de metralhadoras e facões avançou em direção do ônibus e o invadiu. O massacre terminou em poucos minutos com 28 mortos, dentre os quais quatro crianças, e 14 feridos. Ao sair, os matadores pregaram um comunicado criticando o governo de Honduras por sua campanha contra o crime. A mensagem advertia: não se atreva a nos desafiar!” O objetivo da gangue era intimidar o governo e provocar gangue rival.

O fim da disputa ideológica passou a alimentar a disputa dos carteis de drogas, das organizações criminosas, muitas vezes associadas a partidos políticos e a governos. Hoje, com frequência assustadora, se identificam agentes de organismos estatais como a CIA estadunidense, o Mossad israelense, entre outros, favorecendo os marginais, os criminosos internacionais.

A queda do muro de Berlim, o desmonte da União Soviética levaram milhares de mulheres e crianças para a prostituição na Europa Ocidental e no Oriente Médio. Como é óbvio, formando uma classe de milionários saída deste crime. O mesmo passa a ocorrer com as guerras que os impérios e as finanças travam para avançar ou consolidar suas posições ao redor do mundo. Os contrabandos, as drogas, a prostituição, a venda de pessoas e dos órgãos humanos estão disputando com o petróleo e com os lucros bancários as maiores receitas do planeta.

E tudo converge para uma política incompreensível, onde não mais se identificam posturas à esquerda e à direita, mas sucessivas e esmagadoras farsas, onde os mitos desempenham um papel totalitário, sem necessidade de tanques nas ruas nem das violências, que se imputam a quadrilhas criminosas.

A repressão sai dos Estados para as milícias, e estas passam a servir ao Estado.

Os mitos não são todos iguais, mas apresentam sinais identificadores. Eles não tem projeto coerente, sequer projeto algum, de gestão. Soltam aqui e ali frases de conveniência ou slogans publicitários. E é tudo que se consegue de suas incapacidades administrativas. Mas sempre arregimenta um grupo religiosamente fiel, que o segue como manada bovina, num tropel alienado.

O mundo atual está mais uma vez atravessando momento de transformação social. Quase sempre estas mudanças são acompanhadas de guerras.

Há, aproximadamente, um século, o fim do colonialismo político-mercantil europeu e o surgimento do Estado comunista levaram a mais outra guerra. Esta guerra distinguiu estados industriais capitalistas de estados industriais socialistas. Tal situação, denominada guerra fria, perdurou até 1990, aproximadamente, quando ambos estados industriais foram substituídos por Estados financeiros ou Estados-Mercados, na designação da Loretta Napoleoni.

O fato verdadeiramente novo e desagregador, que vem produzindo mitos neste século XXI, é a inserção da economia bandida ou da economia dos ilícitos, no sistema financeiro, na banca, como designamos.

As desregulações financeiras, a proliferação de paraísos fiscais (só nos Estados Unidos da América – EUA – existem quatro estados federados que são paraísos fiscais), bancos centrais atuando unicamente para benefício das finanças, colocaram os capitais marginais, ilícitos — que mais facilmente se multiplicam e se impõem — na testa das empresas “gestoras de ativos”.

E estas empresas gestoras de ativos, com patrimônios superiores ao Produto Interno Bruto (PIB) da maioria absoluta dos Estados Nacionais, os transformam em Estados-Mercados. Então não serão líderes, estadistas, políticos comprometidos com o povo ou mesmo com elites nacionais que governarão. Estes estados estarão gerenciados por mitos, sem pé nem cabeça, mas extraordinariamente cordatos ao capital financeiro, à banca. E as drogas, o crime, as milícias serão os seus principais assessores.
* Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.
Transcrito do portal Pátria Latina