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(Millôr Fernandes)

domingo, 16 de agosto de 2020

A Constante Presença de Corrupção entre Militares

Domingo, 16 de agosto de 2020


Link da música “Um Comunista”, de Caetano Veloso, para ouvir enquanto se lê o artigo: https://www.youtube.com/watch?v=pM-V3f28Oqc
Por Salin Siddartha*
É constante a presença de corrupção entre militares, principalmente no alto oficialato. Basta terem oportunidade e não temerem punição que muitos dos militares desviam recursos públicos, fraudam licitações, pedem e recebem propinas. A corrupção não somente existe nas Forças Armadas, mas também é praticada tanto por praças (suboficiais, sargentos, cabos e soldados) quanto pela elite dos oficiais de alta patente.
No governo do general Emílio Garrastazu Médici, já se observavam muitas regalias para os componentes da Ditadura Militar: o Ministro do Exército, cuja pasta ficava em Brasília, tinha uma residência oficial de veraneio na serra fluminense, com direito a mordomo; os generais-de-exército (detentores de quatro estrelas) possuíam dois carros, três empregados domésticos e casa oficial decorada; os generais-de-brigada (detentores de duas estrelas) que iam residir em Brasília contavam com US$27 mil para comprar mobília. Cabos e sargentos prestavam serviços domésticos às autoridades, e a Presidência da República também pagou transporte e hospedagem a aspirantes para um churrasco na Capital Federal. Em 1970, uma avaliação feita pelo SNI ajudou a determinar quais seriam os Governadores dos Estados indicados pelo Presidente Médici (1969-1974). No Paraná, Haroldo Leon Peres foi escolhido após ser elogiado pela postura favorável ao regime militar, mas, um ano depois, foi pego extorquindo um empreiteiro em US$1 milhão e obrigado a renunciar. Segundo o general João Baptista de Figueiredo, Chefe do SNI no Governo Geisel, os agentes descobririam que Peres “era ladrão em Maringá” se o tivessem investigado adequadamente.
A partir de 1970, dentro da 1ª Companhia do 2º Batalhão da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, capitães, sargentos e cabos começaram a relacionar-se com o contrabando carioca. No caso, o Capitão Ailton Guimarães Jorge era um dos integrantes da quadrilha que comercializava ilegalmente caixas de uísques, perfumes e roupas de luxo, inclusive roubando as cargas de outros contrabandistas; os militares escoltavam e intermediavam negócios dos contraventores. O capitão Guimarães, posteriormente, deixaria o Exército para virar um dos principais nomes do jogo do bicho no Rio de Janeiro.
Papéis confidenciais do governo da Inglaterra revelam que a Ditadura brasileira atuou para abafar uma investigação de corrupção por superfaturamento na compra de fragatas construídas pelos britânicos para a nossa Marinha nos anos 1970. Segundo registros oficiais do governo inglês, o Reino Unido estava disposto a investigar esse escândalo e se ofereceu a pagar indenização de, pelo menos, 500 mil libras ao Brasil (o equivalente a 3 milhões de libras hoje). Os fatos narrados naqueles papéis ocorreram durante os governos dos generais Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979).
No início do Governo Geisel, explodiu o “escândalo Lutfalla”, que envolveu o empréstimo de dinheiro público para salvar da falência a empresa Lutfalla. A empresa era de propriedade do sogro de Paulo Maluf, político paulista ligado ao regime militar (Maluf tinha sido prefeito de São Paulo, nomeado pela Ditadura Militar). Em 1979, Maluf foi eleito, indiretamente, Governador de São Paulo e, em 1980, foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito-CPI para investigá-lo, todavia o processo não andou e foi arquivado pelo STF.
Pelo Decreto nº 75.627, de 18 de abril de 1975, foi criado para os servidores públicos o nível FAZ-Fundo de Assessoramento Superior, que dispunha sobre a contratação para o desempenho das atividades de assessoramento aos Ministros de Estado, por parte de funcionários que atendessem a um alto nível de especificidade, complexidade e responsabilidade no grau superior para assessores de Ministros de Estado e dirigentes de órgãos integrantes da Presidência da República. Esse decreto acabou gerando disparidade, com funcionários do mesmo órgão exercendo a mesma função, porém ganhando salários completamente diferentes. Desse modo, os funcionários poderiam acumular vários salários, ou seja, recebiam aposentadoria de militar, de ex-Ministros de Tribunais, de funcionários de empresas estatais acrescidos do salário correspondente à função que fosse atual. Enquadraram-se nesse caso o Ministro-Chefe da Casa Civil do Governo Ernesto Geisel, general Golbery do Couto e Silva, e todo o pessoal da Petrobras que acompanhou aquele Presidente da República para exercer funções no Palácio do Planalto.
Em 1976, ficou-se sabendo, depois confirmadas, as mordomias de que Ministros e servidores, financiados com dinheiro público, dispunham em Brasília: uma piscina térmica banhava a casa oficial do Ministro das Minas e Energia, enquanto o Ministro do Trabalho contava com 28 empregados; na residência oficial do Governador do Distrito Federal, nomeado pelos militares, frascos de laquê e alimentos eram comprados em quantidades desmedidas – 6.800 pãezinhos teriam sido adquiridos no mesmo dia. Filmes proibidos pela censura, como o erótico “Emmanuelle”, naquela época eram permitidos na casa dos servidores que o requisitavam, e os Ministros não viajavam em voos de carreira, e sim, gratuitamente, em jatos da Força Aérea Brasileira.
Muitos militares e civis foram alvo de denúncia durante o regime militar. O próprio Presidente Geisel utilizou a “corrupção das Forças Armadas” como uma das justificativas para iniciar a “abertura” política e afastar os militares dos encantos e armadilhas do poder do Estado. Também existem muitos escândalos que lançam máculas sobre o Governo Figueiredo.
Em 1982, a Folha de São Paulo denunciou o Grupo de Crédito Imobiliário Delfim, que atuava na venda de terrenos superfaturados que movimentaram cerca de US$200 milhões, na época. O Grupo Delfim teria sido beneficiado pelo Banco Nacional de Habitação ao receber 70 milhões de cruzeiros para abater parte da dívida que a empreiteira tinha com o banco público – isso teria envolvido um lucro ilícito de mais de 60 bilhões. A empresa entrou em falência pouco tempo depois, porque ficou desacreditada pelos clientes.
Ainda em 1982, o jornalista Alexandre von Baumgarten denunciou que o general Newton Cruz, Diretor do SNI, estaria planejando sua morte; pouco tempo depois, o jornalista foi encontrado morto. Segundo o dossiê, Baumgarten era alvo por seu conhecimento em relação a um esquema de corrupção existente entre o general Newton Cruz e a Agropecuária Capemi-Caixa de Pecúlio dos Militares, uma empresa de propriedade de oficiais das Forças Armadas.
Um telegrama diplomático dos Estados Unidos, a que o governo brasileiro teve acesso no primeiro semestre de 2018, contudo expedido em 1984 pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil ao Departamento e Estado norte-americano, apontou que o então todo-poderoso Ministro do Planejamento, Antônio Delfim Netto, era beneficiário de esquemas corruptos milionários.
Apesar de a falta de liberdade de imprensa ter abafado denúncias de falcatruas durante a Ditadura Militar, com todos os instrumentos de controle hoje existentes, militares são muitas vezes investigados por casos de propina e má utilização de recursos públicos. Os dados a respeito não são de amplo conhecimento por causa da tramitação secreta que costuma acompanhar esses processos; entretanto investigações conduzidas pelo Ministério Público Militar-MPM e um levantamento do Superior Tribunal Militar-STM mostram que, assim como as demais instituições brasileiras, as Forças Armadas também ainda padecem do mal da corrupção.
O MPM identificou, nos últimos 10 anos, desvios de, pelo menos, R$191 milhões nas Forças Armadas, boa parte desse valor é resultado de crimes como fraude a licitações, corrupção passiva e ativa, peculato e estelionato. E, entre 2010 e 2017, foram condenados 132 militares, derrubando a falácia de que as Forças Armadas são a reserva moral contra a corrupção. Há casos típicos de uma organização militar criminosa de soldados que roubaram peças de um tanque de guerra no Sul do País para vende-las em um ferro-velho, e o de um coronel do Exército reformado que, às vésperas de sua morte, se divorciou de sua mulher e se casou com a esposa de seu próprio filho apenas para garantir que sua pensão fosse paga por mais tempo.
O vice-almirante Othon Pinheiro da Silva, um dos patronos do programa nuclear brasileiro, ex-presidente da estatal Eletronuclear, após deixar a farda teria recebido R$4,5 milhões em propinas envolvendo obras da usina nuclear Angra 3; Othon foi condenado a 43 anos de reclusão pela Lava-Jato. O MPM-RJ denunciou, em junho de 2018, militares por participação em um esquema que teria desviado R$150 milhões em contratos entre o Departamento de Engenharia e Construções do Exército-DEC, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes-DNIT e órgãos de apoio – as obras estavam sob coordenação do Centro de Excelência em Engenharia e Transporte do Exército-Centram –; a falcatrua teria ocorrido entre setembro de 2005 e dezembro de 2010 e envolveu oficiais coordenadores do Centram e oficiais da reserva que atuavam nas fundações Ricardo Franco, Trompowisky e Bio-Rio (esta última da UFRJ): para cumprir 71 contratos, foram subcontratadas 14 empresas de fachada – foram denunciados três coronéis e um major.
Com as prisões da Operação Saúva, desencadeada pela Polícia Federal a partir de agosto de 2006, sob acusação de fraudar licitações para compra de alimentos para as Forças Armadas, constatou-se a existência de conexões desse esquema com setores de direção da Força Terrestre em Brasília, o que fez surgir indícios de que esquemas parecidos foram construídos e utilizados em outros órgãos provedores (Depósitos e Batalhões de Suprimentos do Exército) existentes em outras localidades.
Condenados por crime de peculato (desvio de dinheiro, mediante uso de cargo público), capitães e um major que atuavam no 12º Batalhão de Suprimentos, sediado em Manaus, superfaturaram a compra de duas embarcações regionais que estavam impróprias para uso. Conforme disse o juiz federal substituto Alexandre Augusto Quintas, da Justiça Militar da União-JMU, em 17 de julho de 2020, nesta aquisição foi causado um dano de R$220 mil aos cofres públicos, em valores nominais de 2006.
Em Recife, a Promotoria Militar conseguiu a condenação, em abril de 2018, de um tenente-coronel que fraudou contratos geradores de prejuízos de R$745 mil em obras no Hospital da Guarnição de Natal-RN. O oficial foi condenado a três anos, seis meses e vinte dias, ainda que em regime aberto.
O Superior Tribunal Militar, em 2017, condenou um tenente-coronel por ter desviado recursos em obras da BR-163, no Pará, o que causou prejuízo de 7,6 milhões de reais; a mesma Corte condenou outro tenente-coronel do Exército à perda do emprego e da patente, depois de ter sido condenado a seis anos de reclusão por desvios de recursos que somaram 538 mil reais. Esses são casos que mostram como as Forças Armadas não estão dissociadas das mazelas que afligem nossa sociedade.
No dia 2 de julho de 2020, a Justiça Cível Federal de São Paulo exigiu que o Exército justificasse uma licitação de R$6,5 milhões que incluiu a compra de caviar e 2 toneladas de camarão para serem consumidas por oficiais e seus familiares em hotéis de trânsito da corporação. Em 17 de julho de 2020, militares foram condenados pela formação de um núcleo criminoso comandado por um tenente dentro do Comando Militar da Amazônia.
Há muito mais casos de envolvimento de militares com a corrupção, tanto no tempo da Ditadura quanto hoje em dia. Só não os revelamos todos, porque seria necessário um livro inteiro para caber tantos fatos espúrios.
Portanto o envolvimento de militares com o crime demonstra que eles não são tão incorruptíveis como se costuma pregar.
Cruzeiro-DF, 16 de agosto de 2020
SALIN SIDDARTHA
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*Este artigo foi publicado originariamente neste domingo (16/8) no PorBrasília