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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

TRF4 determina que União siga repassando verbas para construção de casas em comunidade quilombola de Porto Alegre

Quarta, 19 de agosto de 2020
Do MPF
Tribunal acolheu pleito do MPF, considerando irrazoável objeção relacionada à garantia para o financiamento
Foto mostra a precariedade de uma das atuais casas da comunidade
Fotos anexadas ao processo retratam a precariedade e a insegurança de moradias atualmente ocupadas pelos quilombolas. Fotos: Reprodução
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) acolheu pleito do Ministério Público Federal (MPF) e determinou que a União siga repassando verbas para a construção de 50 unidades habitacionais na comunidade quilombola Alpes Dona Edwirges, localizada no Morro Cascata, em Porto Alegre (RS). O dinheiro é proveniente do Fundo de Desenvolvimento Social e está relacionado a contrato celebrado no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida, cuja operacionalização fica sob responsabilidade da Caixa Econômica Federal.

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Em fevereiro de 2018, após ter apresentado proposta de empreendimento habitacional, a comunidade chegou a ter o projeto habilitado pelo então Ministério das Cidades (atual Secretaria Nacional de Habitação, do Ministério do Desenvolvimento Regional). No entanto, em abril do mesmo ano, os quilombolas foram informados de que a contratação era, na verdade, inviável: o título de propriedade sobre as terras em que vivem seria incompatível com as modalidades de garantia previstas na resolução do Conselho Curador do Fundo de Desenvolvimento Social que aprova o Minha Casa, Minha Vida.

Segundo a norma, os contratos de financiamento devem prever como garantia, em favor do fundo, alienação fiduciária dos imóveis ou sua hipoteca. No entanto, as terras pertencentes às comunidades remanescentes de quilombos são inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis, conforme o Decreto 4.887/2003.
Tanto a comunidade quanto o MPF enviaram comunicações à Caixa e ao então Ministério das Cidades ponderando a injustiça da situação e sugerindo como alternativa a utilização da modalidade de garantia chamada de “solidária”, já aplicada no próprio Minha Casa, Minha Vida – tipo de garantia pessoal (como fiança, aval ou caução). Todavia, os apelos não modificaram o posicionamento.
O caso, então, chegou ao Judiciário em julho de 2018, por meio de ação civil pública movida pelo MPF. Entre seus argumentos, o fato de a norma do Minha Casa, Minha Vida excluir justamente as comunidades especialmente protegidas pela ordem constitucional (índios e quilombolas), pelo simples fato de a terra onde habitam ser de posse coletiva ou de propriedade da própria União: "Aquilo que deveria ser critério para acesso a políticas afirmativas acabou indevidamente se metamorfoseando em impedimento para a obtenção de um financiamento/subsídio franqueado, a princípio, a qualquer família com renda bruta mensal até R$ 1.800,00 organizada em entidade associativa", destacou o MPF em uma de suas manifestações.
Obra chegou a ser iniciada, em função das primeiras parcelas liberadas pela Caixa, mas acabou sendo paralisada (registro em 21/08/2019)
Obra chegou a ser iniciada, em função das primeiras parcelas liberadas pela Caixa, mas acabou sendo paralisada (registro em 21/08/2019)
Em primeira instância, a Justiça Federal no Rio Grande do Sul decidiu favoravelmente aos quilombolas. A sentença, proferida em março de 2019, considerou, no caso concreto, ilegal o trecho da resolução do Minha Casa, Minha Vida referente às garantias. Além disso, determinou a nulidade da desabilitação do projeto habitacional da Associação Quilombola dos Alpes Dona Edwirges e condenou a União e a Caixa Econômica Federal a exigirem apenas garantia na modalidade “solidária”.
Tanto a União quanto a Caixa recorreram ao TRF4, que, no último dia 4, manteve os termos da sentença e reconheceu a responsabilidade da União para liberação do saldo contratual. Em seu acórdão, a 3ª Turma do Tribunal manifestou-se assim: "Em que pesem as garantias (hipoteca e alienação fiduciária) previstas na norma infralegal serem incompatíveis com o título de propriedade da Associação do Quilombo dos Alpes, a parte ré deveria ter oferecido opção de outra modalidade de garantia, sob pena de obstar o próprio acesso ao financiamento público de moradia às comunidades quilombolas, o que implicaria em discriminação indevida de minoria cuja vulnerabilidade socioeconômica o ordenamento pátrio busca justamente reduzir. Assim, é possível, sem prejuízo à contraparte, conceder-se o financiamento mediante a modalidade 'garantia solidária', a ser prestada por cada um dos moradores postulantes ao mútuo".
Da decisão do TRF4, ainda cabe recurso.
Confira a íntegra os principais documentos relacionados ao processo (Apelação cível 5041816-35.2018.4.04.7100):
• Sentença (JFRS)
• Parecer do MPF em segunda instância (analisado pelo TRF4 antes do julgamento)
• Acórdão - evento 35 (TRF4)