Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 1 de abril de 2022

TORTURA, CENSURA, DITADURA E BOLSONARO: NUNCA MAIS

Sexta, 1º de abril de 2022

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 1º de abril de 2022

O noticiário da penúltima semana do mês de março de 2022 foi dominado por dois temas de profunda importância: a) a corrupção e b) a liberdade de manifestação.

As notícias sobre corrupção trataram das peripécias do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro e dos pastores evangélicos Gilmar Santos e Arilton Moura. Confira a explosiva fala do ex-ministro da Educação: “Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar. A minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar”.

A partir da divulgação da referida confissão, relacionada com a liberação de recursos do Ministério da Educação para Municípios, surgiram elementos adicionais como: a) várias audiências dos pastores com o ministro; b) vários encontros e fotos dos pastores com o presidente Jair Bolsonaro; c) eventos com distribuição de bíblias e a presença do ministro da Educação; d) voos em aviões da Força Aérea Brasileira - FAB e e) falas de vários prefeitos (pelo menos dez) detalhando o modus operandi dos “homens da fé”, incluindo pedidos explícitos de propinas, em dinheiro e ouro, e de apoio eleitoral (fontes: estadao.com.bruol.com.brg1.globo.com e metropoles.com). O mais novo escândalo de corrupção do (des)governo Bolsonaro culminou com a exoneração do senhor Milton Ribeiro.   

Já as notícias relacionadas com a liberdade de expressão envolveram o festival de música Lollapalooza e uma decisão do Ministro Raul Araújo, no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral - TSE. O magistrado, a partir de representação do Partido Liberal - PL, vedou “… a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos musicas que se apresentem no festival, sob pena de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de descumprimento”. 

Obviamente, a liberdade de manifestação, assim como qualquer outro direito, não é absoluto ou tem exercício ilimitado. Entretanto, parece fora de dúvida, que a manifestação de apreço ou desapreço a pré-candidato, sem remuneração e sem pedido expresso de voto (art. 36-A da Lei n. 9.504, de 1997), realizada por artista ou não, num palco ou não, não se inclui entre as referidas limitações (Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI n. 5.970, Supremo Tribunal Federal - STF). Prevalece o exercício dos direitos fundamentais de manifestação de pensamento e liberdade de expressão das atividades intelectuais e artísticas, tal como consagrados no art. 5o, incisos IV e IX, da Constituição.
           
Aliás, o que se observou foi uma posição amplamente majoritária do mundo jurídico brasileiro no sentido de condenar a aludida decisão monocrática do Ministro Raul Araújo. O    tempo da censura é um triste registro histórico e deve permanecer assim pela vigilância e ação das instituições do Estado Democrático de Direito e da cidadania ativa.

Um outro assunto, de profunda relevância para a prevalência dos  direitos humanos, terminou ofuscado diante do noticiário voltado para os dois primeiros temas destacados. Esse assunto é justamente o da tortura.

Segundo o art. 5o da Constituição:

“III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”

“XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”

A Lei n. 9.455, de 1997, considera como crime de tortura:

“I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.

A prática da tortura é uma daquelas mais nítidas fronteiras civilizatórias. Afinal, provoca-se, em alguém indefeso ou sem possibilidade de reação, intenso sofrimento físico ou mental. Estamos, nesses casos, no limite máximo da covardia e da afronta à dignidade da pessoa humana. O torturador é invariavelmente comparado a um monstro pela evidente ausência de sentimentos humanos fundamentais como a empatia, a compaixão e o amor.

A primeira das notícias acerca da tortura teve origem numa importante decisão do Supremo Tribunal Federal. Segundo a decisão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 607, proferida por unanimidade, “o esvaziamento de políticas públicas previstas em lei por meio de atos infralegais, como decretos, é abuso do poder regulamentar, e contraria o princípio da separação dos Poderes” (fonte: conjur.com.br). Esse entendimento foi aplicado para reconhecer a inconstitucionalidade de várias partes do Decreto n. 9.831, de 2019. O ato foi adotado pelo presidente Jair Bolsonaro e alterava a composição e funcionamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - MNPCT.

O decreto referido remanejou onze cargos comissionados de perito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para o Ministério da Economia. Os ocupantes dos cargos foram exonerados. Ademais, a participação no Mecanismo foi considerada como "prestação de serviço público relevante, não remunerada". O STF, na decisão aludida, determinou o restabelecimento da destinação dos cargos aos peritos, com a pertinente remuneração.

A segunda notícia relacionada com a tortura teve como objeto mais uma fala repulsiva do senhor Jair Bolsonaro. No dia 27 de março de 2022, esse senhor fez mais uma lamentável homenagem a Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-coronel do Exército Brasileiro. Ustra já foi condenado em segunda instância por tortura e outros crimes praticados durante a ditadura militar. Bolsonaro afirmou que Ustra foi um "velho amigo, que lutou por democracia" !!! Não custa lembrar a declaração de voto de Bolsonaro, no dia 17 de abril de 2016, por ocasião do processo de impeachment da então presidente da República. Disse, para nojo geral, o atual presidente: "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff" (fonte: em.com.br).

Essas falas são repetições de tantas outras registradas pela imprensa brasileira. Talvez a mais contundente tenha sido efetivada em entrevista no dia 25 de maio de 1999. Naquele momento, o senhor Bolsonaro afirmou: “Dá porrada no Chico Lopes. Eu até sou favorável que a CPI, no caso do Chico Lopes, tivesse pau de arara lá. Ele merecia isso: pau de arara. Funciona! Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também”. Na mesma ocasião, Bolsonaro defendeu o fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e disse que “daria golpe no mesmo dia” e fecharia o Congresso se fosse eleito presidente da República” (fonte: poder360.com.br).

Temos, não há como negar, um chefe de Governo e de Estado dos mais desprezíveis. Como não caracterizar como desprezível alguém que faz apologia da tortura? Esse senhor figura entre os mais desqualificados brasileiros por qualquer critério de análise utilizado: a) qualidades como pessoa; b) qualidades como gestor ou c) qualidades como governante. No dia 31 de março de 2022, depois de celebrar o golpe de 1964, o senhor Jair Messias, em mais um gesto de arrogância e descontrole, chegou a afirmar, caracterizando um ataque institucional raras vezes visto na República: “O que que falta? Que alguns poucos não nos atrapalhem. Se não tem ideias, cale a boca! Bota a tua toga e fica aí sem encher o saco dos outros! Como atrapalham o Brasil” (fonte: estadao.com.br). Afinal, o senhor Messias Bolsonaro poderia ser apresentado como exemplo de quais virtudes para um conjunto de jovens estudantes brasileiros? Seria um modelo a ser seguido? Seria um líder a ser admirado e inspirador dos melhores valores do convívio humano?

E aqui cabe uma ponderação específica. O senhor Bolsonaro se diz cristão e utiliza um lema onde consta: “Deus acima de todos”. Jesus Cristo foi um preso político barbaramente torturado, mas promoveu a mais relevante revolução na face da Terra. Foi a revolução do amor ao próximo, da justiça, da harmonia e do perdão. Acolheu a todos sem distinções, incluindo explicitamente prostitutas, bandidos e leprosos. Os ensinamentos do Mestre dos Mestres e o Deus apresentado por Jesus não guardam nenhuma relação com o discurso de ódio, violência e apologia à tortura de Jair Bolsonaro. Esse senhor, confortavelmente instalado em motos e jet skis, conseguiu (para uma parcela da sociedade brasileira) a façanha de transformar as mais sublimes lições de um Cristo torturado em armas de convencimento político em favor de todo tipo de violência física e simbólica. Registre-se, para que dúvidas não pairem, a essência do pensamento de Jesus Cristo: “Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes” (Bíblia. Marcos 12:30,31).
    

No momento em que alguns rendem indevidas homenagens ao golpe militar de 1964, é importante afirmar e reafirmar: tortura nunca mais, censura nunca mais e ditadura nunca mais. Em acréscimo, como forma de realização dessas máximas, é imperioso dizer, repetir e agir no seguinte sentido: Bolsonaro nunca mais. Vale lembrar o famoso alerta de William Shakespeare: “Atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se está bem morto”.