Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 1 de outubro de 2011

Cultura autoritária

Sábado, 1 de outubro de 2011
 Por Ivan de Carvalho
O Brasil é um país democrático com uma cultura autoritária. A colonização portuguesa contribuiu poderosamente para construir essa cultura. A independência veio tarde. As 13 colônias que vieram a ser os Estados Unidos da América fizeram a sua em 1776 e o Brasil se atrasou 46 anos, declarando a sua somente em 1822.
 
    Mesmo assim houve – com exceção da escravidão negra, que foi adotada lá e aqui – uma grande diferença de formação da sociedade norte-americana e da brasileira. A idéia de liberdade, tanto política quanto econômica e individual firmou-se muito mais depressa e profundamente lá do que aqui. E até hoje está muito mais arraigada na sociedade americana, onde nunca houve uma ditadura, do que na brasileira.
 
    Lá, pelo menos por enquanto – porque a tecnologia avança, inclusive na direção de derrubar todas as barreiras que ainda restam ao monitoramento total do indivíduo – o cartão do seguro social é a única identidade individual admitida.
 
    Claro que, se o cidadão resolve viajar, aí vai precisar de um passaporte. Ou, se resolve ser policial, vai ter sua estrela de xerife ou algum outro distintivo que o identifique pela função que exerce. Se dirige veículos, deve possuir uma licença para isso, para que se saiba que está apto. Já aqui no Brasil somos cheios de documentos de identificação que nos são solicitados com extrema freqüência e espalha-se o costume de nos obrigarem, a cada passo, a por as digitais em leitores ligados a sistemas de computação.
 
     Bem, mas fazer essa comparação entre Estados Unidos e Brasil não é o objetivo. Ela só ajuda a perceber o que, por estarmos mergulhados numa cultura autoritária, talvez não víssemos sem ter como referência uma cultura diversa.
 
     Nos Estados Unidos o uso de algemas é universal, são postas em todo mundo e não há a intenção de expor as pessoas. Aqui, passaram em muitos casos – principalmente em operações da Polícia Federal – a ser usadas com sentido desmoralizante, por meio de uma exposição que funciona, em nossa cultura (aí é que está o problema) como uma pena antecipada, antes de qualquer julgamento ou até de formação de culpa. Vazar ilegalmente fotos de dentro do próprio sistema policial ou prisional, como ocorreu na Operação Voucher, mostra quanto há de autoritarismo e arbitrariedade.
 
     Forçar pessoas, supostamente “bandidos”, a darem entrevistas, melhor dizendo, a responderem a interrogatórios de repórteres, em delegacias, diante das câmeras de TV, também é autoritarismo intolerável, viciante tanto do aparelho policial quanto da própria sociedade nesse tipo de cultura autoritária. O fenômeno existe em quase todo ou todo o país, inclusive na Bahia, e fico pasmo de vê-lo continuar.
 
    Há dias, o conselheiro Pedro Lino, do Tribunal de Contas do Estado, implicou em recusar a autoridade de uma blitz da Transalvador, sob a alegação de que só a polícia pode fazer blitz. Quando a polícia chegou, ele prontamente deixou que sua mulher fizesse o teste do bafômetro.
 
     Mas deixou porque quis. Ninguém é obrigado a fazer prova contra si. Assim, o bafômetro, o exame de sangue para verificação da alcoolemia, o fazer um “quatro” ou andar em linha reta ou ficar de pé, de olhos fechados ou abertos, tanto faz, para o agente da Transalvador ou o policial observar o equilíbrio são coisas absolutamente opcionais, assim como fornecer material para testes de DNA para verificação de paternidade ou até investigação criminal.
 
    Aliás, acertadamente, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia, em decisão recente e unânime, concedeu habeas corpus preventivo a um cidadão para não ser obrigado a fazer teste do bafômetro nem exame de alcoolemia nas blitzen da Transalvador. O habeas corpus é desnecessário se os agentes da Transalvador e os policiais estiverem conscientes dos seus limites.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia deste sábado.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.