Segunda, 2 de fevereiro de 2015
Gerivaldo Alves Neiva*
Eu nasci em
Irecê (BA) e lá vivi até os 15 anos de idade. Depois, fui estudar em Salvador e
atualmente retorno à Irecê poucas vezes ao ano para visitar os pais, amigos e
parentes.
Nos anos 70,
havia dois cinemas em Irecê: Cine Nunes e Cine Barbosa. Como não tínhamos TV,
Internet e outras diversões, íamos muito ao cinema e assistíamos muitos filmes.
Aliás, todo dia era dia de cinema. Eram duas sessões à noite (19 e 21h) e “matinês” (era
assim que chamávamos as sessões da tarde) aos domingos para a criançada.
Eu só não
assistia as famosas “pornochanchadas” brasileiras porque
também não tinha idade. Adorava os dramas italianos (“Dio, come ti
amo”, por exemplo, fez um sucesso estrondoso) e os “bang-bangs” à
italiana com Giuliano Gemma.
Certa vez,
assisti um filme que me deixou impressionado por alguns dias, especialmente por
não ter entendido nada. Já tinha lido em algum lugar que aquele era um dos
melhores filmes da história do cinema e a excitação era grande. Cheguei cedo,
tomei um dos melhores lugares e assisti “Amarcord”, de
Federico Fellini. Na verdade, não ter entendido o filme era o de menos. O
importante era poder dizer aos amigos, com ar de intelectual, que já tinha
assistido “Amarcord.” Depois de adulto, e com o conhecimento
necessário do mundo dos anos 30, assisti novamente “Amarcord” e
pude constatar que, de fato, é um grande filme.
“Amarcord”, em
dialeto de alguma região da Itália, significa algo como “eu me recordo” e
eu me lembrei deste filme, também de alguns episódios de minha adolescência em
Irecê, quando fiz um exercício “amarcord” esta semana ao tentar me
explicar por que odiamos tanto os ladrões comuns, esses “ladrozinhos” baratos
mesmo.
Outro dia,
terminei presenciando um episódio em um shopping de Salvador que me causou
profundo mal estar. Caminhava em direção a uma livraria quando ouvi gritos e
aplausos vindos de outra ala do shopping. Não resisti e segui na mesma direção
de outros tantos curiosos. Nem foi preciso caminhar muito e entendi a razão da
algazarra. Um segurança trazia um jovem com o braço direito voltado para trás e
as pessoas, aplaudindo efusivamente, pareciam que estavam todas em um grande
gozo coletivo. O rapaz aparentava 16 ou 17 anos, era magro, moreno, bermuda
comprida e mostrando a cueca, boné com a aba voltada para trás e calçando largas
havaianas ou imitações de havaianas. Depois que o segurança entrou com o rapaz
em uma dependência privativa do shopping, ouvi alguém dizer perto de mim, como
quem termina de sair de um poderoso orgasmo: “o segurança pegou um
ladrãozinho safado.”
Presenciando
episódios como esses, fiquei a me perguntar: - Por que odiamos tanto os
ladrões? Por que aceitamos tão indiferentes que a Constituição seja violada
para punir ladrões? Evidente que não sei a resposta e nem sei se saberei um
dia, mas de tanto pensar terminei fazendo uma espécie de “amarcord” de
casos envolvendo ladrões.
Lembrei-me
de uma cena quando ainda era criança em Irecê em que um comerciante raspou
metade dos cabelos da cabeça de dois meninos e os amarrou em frente ao seu
mercado, sob acusação de que tinham tentado furtar pacotes de bolachas
recheadas, uma novidade na época. Um dos meninos era conhecido, jogava bola com
a turma da rua e eu fiquei impressionado com aquela cena durante alguns dias.
Não me lembro quantas horas ficaram naquela situação humilhante e nem sei o
futuro que tiveram.
Lembrei-me
também de uma estória que circulou na cidade de que um policial militar teria
obrigado um ladrão a beber “óleo queimado” misturado com
cimento. Comentou-se também, na época, que o rapaz teria ficado muito doente,
passou um tempo internado no hospital, mas que não tinha mais roubado a partir
daquela “lição”. Poucos dias depois, vindo da escola, vi um
balde com “óleo queimado” em um posto de gasolina e pensei no
preso bebendo aquele negócio misturado com cimento. Senti náuseas, uma forte
dor no estômago e muita pena do preso.
Lembrei-me
também de uma família que morava em outra rua e vivia ameaçando um dos filhos
que gostava de entrar nos quintais dos vizinhos e praticar pequenos furtos. A ameaça
era assim: - Olhe, se você for preso roubando, ninguém da família vai
levar comida para você na delegacia. O problema é que naquela época a
família alimentava seus presos, pois a prefeitura só mandava a comida para quem
não tinha parentes na cidade. Aquela ameaça me deixava atordoado: além de
ladrão, preso e com fome em uma cadeia!
Lembrei-me
também de um caso que teve ampla repercussão na cidade quando um ladrão foi
surpreendido e morto a tiros pelo dono da casa. O debate foi intenso sobre o
caso e as pessoas comentavam em cada canto sobre os limites da reação do
proprietário da casa que está sendo assaltada. Ao final, parece que restou um
consenso de que se podia matar o ladrão que já estivesse dentro de casa, sendo
crime apenas se o ladrão tivesse ainda no quintal. Era mais ou menos assim a
tese que permaneceu em nossa memória de crianças e adolescentes, ou seja, entre
o patrimônio e a vida de um ladrão, valia mais o primeiro.
Enfim,
minhas lembranças apenas reforçaram a ideia de que este ódio que temos dos
ladrões vem de muito longe e, além disso, a figura que mais se relaciona aos
ladrões é a polícia, a cadeia e o castigo, que também pode ser a morte. É como
se aos crimes contra o patrimônio não fosse necessário um julgamento. Ao
ladrão, portanto, basta a condição de ladrão para ser execrado socialmente.
Depois,
lembrei-me das leituras que fazia naquela época. Como não podia ser diferente,
líamos revistas em quadrinhos e uns poucos livros da biblioteca da escola. Nas revistas,
o herói sempre prevalecia contra os ladrões. Assim, terminavam sempre na prisão
o “João Bafo de Onça” e os “Irmãos Metralha”, de Walt
Disney; outros ladrões e inimigos da sociedade, sob o poder de Batman, Super
Homem, Fantasma, Homem Aranha e outros heróis, também sempre tinham o mesmo
fim. Mais uma vez, a cena mais forte que me vem à lembrança é dos ladrões atrás
das grades. Não me lembro de nenhuma cena de julgamento, da figura do Juiz, do
Promotor, do advogado...
Pois bem, ao
invés de passar a ter certezas, minhas inquietações apenas aumentaram com
meu “amarcord”. Ora, por que mesmo em uma pequena cidade do
interior da Bahia, nos anos 70, as pessoas já alimentavam tanto ódio contra os
ladrões? Vinha de onde este ódio? Por que a defesa do patrimônio justifica este
sentimento de um humano contra outro humano que lhe tira algum bem? Por que já
existia no inconsciente coletivo das pessoas que habitavam aquela pequena
cidade, distante quase 500 km de Salvador e com poucos meios de comunicação,
tão fortes significados para arquétipos do tipo ladrão e herói?
Para não
dizer que em nada me ajudou, meu “amarcord” serviu ao menos
para algumas vãs justificativas. Assim, consigo agora imaginar que este
sentimento vem desde muito tempo e que, sendo assim, estaria justificada esta
ojeriza dos homens com relação aos ladrões e a admiração aos heróis que lhes
prendem. De outro lado, continua me inquietando, e muito, a falta de explicação
para este gozo que sentimos quando um ladrão é preso ou morto.
Pois bem, ao
fazer um “amarcord” mais profundo fui parar em minhas aulas de
catecismo e na imagem de Jesus crucificado ao lado de dois ladrões. Busquei
alguma explicação na bíblia sobre o simbolismo daquelas figuras ao lado de
Jesus e não encontrei respostas. Na verdade, tal qual os atuais, eram pessoas
sem nome e sem história. No nosso inconsciente coletivo, no entanto, tinham
apenas alcunhas (o “vulgo”) de “bom ladrão” e “mau
ladrão”. É sempre assim com os ladrões. Eles são ladrões e pronto. Quando
muito, tem um “vulgo.” Mas o que me deixou mais impressionado
nesta pesquisa sobre os ladrões crucificados com o Cristo, além de continuar
não entendendo os adjetivos de “bom” e “mau” da
tradição, é que o texto da bíblia não os trata de “ladrões”, mas
de malfeitores e salteadores. (Lc 23:33, Mt 27:38, Mc 15:27). Ora, por que
então me ensinaram durante toda a vida que se tratava de um “bom
ladrão” e de um “mau ladrão?”
As lições do
catecismo não me respondiam mais. Precisava, agora, de outras justificativas
históricas ou filosóficas para entender até que ponto a nossa formação católica
contribuiu para este sentimento em relação aos ladrões. Resolvi, então, visitar
os primeiros livros, o antigo testamento, e buscar alguma referência à figura
do ladrão. Acessei o site “bibliaonline” e digitei “ladrão” no
campo “pesquisar”. A lista de resultados não foi muito longa, mas o
primeiro deles me causou uma grande decepção e mal estar: “Se o ladrão
for achado roubando, e for ferido, e morrer, o que o feriu não será culpado do
sangue”. Ex 22:2.
Chego à
conclusão, por fim, que preciso de mais conhecimentos de arqueologia,
antropologia, história, filosofia, psicologia, sociologia e teologia, dentre
outras ciências, para continuar nesta pesquisa sobre nosso ódio aos ladrões
comuns. Infelizmente, ou felizmente, pelo que pensei até agora, não sei se vou
precisar muito do Direito.
*Juiz de Direito (Ba), membro da
Associação Juízes para a Democracia e Porta-Voz no Brasil do movimento Law
Enforcement Against Prohibition (Leap) – Agentes da Lei Contra a Proibição.