Segunda, 23 de fevereiro de 2015
O financiamento privado de campanha, segundo o juiz Márlon
Reis, “abre avenidas iluminadas para os candidatos que chegam com os milhões
das mega empreiteiras”
Márlon Reis, um dos artífices da lei da Ficha Limpa, cita
caráter pedagógico da Operação Lava Jato e critica o presidente da Câmara por defender doações empresariais a
políticos.
Resposta de Dilma Rousseff às manifestações de junho de
2013, a proposta de realizar um plebiscito pela reforma política perdeu força
tão logo chegou ao ouvidos do Congresso.
Eleito presidente da Câmara em janeiro, Eduardo Cunha
(PMDB-RJ) decidiu retomar as discussões sobre o tema, mas aos seus moldes...
Fonte: Mariana Melo, revista
CartaCapital / Blog do Sombra.
Leia a íntegra clicando no link abaixo
Em 10 de fevereiro, foi instalada na Câmara uma nova
comissão especial de reforma política. A presidência do colegiado foi entregue
por Cunha, integrante da base aliada ao governo, a um oposicionista, Rodrigo
Maia (DEM-RJ). Além disso, Cunha decidiu que o texto a guiar as discussões será
a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 352/2013 do ex-deputado federal
Cândido Vaccarezza (PT-SP). O projeto é duramente criticado por
constitucionalizar o financiamento privado de campanhas eleitorais, visto como
interferência indevida no processo democrático. As doações eleitorais por parte
das empresas foram consideradas inconstitucionais pela maioria dos magistrados
do Supremo Tribunal Federal, mas o julgamento ainda não terminou, graças a um
pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Se o texto de Vaccarezza for
aprovado antes de Gilmar Mendes liberar o processo no STF, o que não tem data
para ocorrer, o financiamento privado estará "protegido".
Por conta disso, para o juiz eleitoral do Maranhão Márlon
Reis, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), um dos
artífices da lei da Ficha Limpa, as ações de Cunha tratam-se de um ato
antidemocrático. Reis e o MCCE integram, ao lado de outras 106 organizações
nacionais, como a OAB e a CNBB, a coalizão pela Reforma Política Democrática e
Eleições Limpas. Nesta entrevista a CartaCapital, o juiz detalha o objetivo da
aliança: conseguir 1,5 milhão de assinaturas e levar aos deputados um projeto
popular de reforma política, que preveja mais transparência nas doações
partidárias e o fim do financiamento por empresas, visto como um caminho para empreiteiras
e outras empresas "se aproximarem perigosamente da máquina pública".
CartaCapital: O projeto de reforma política que está no
Congresso, feito pelo ex-deputado federal Cândido Vaccarezza (PT-SP) e
defendido pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), é adequado para
as necessidades do Brasil?
Márlon Reis: É preciso igualar as chances de disputa. Se
essa não for a premissa mais elementar da reforma, é porque essa reforma está
indo no caminho antidemocrático. Não há democracia com chances de igualdade na
disputa eleitoral atual. E a proposta delineada pelo deputado Vaccarezza, e que
agora conta com toda a boa vontade do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, tem
justamente o objetivo de não apenas manter as doações empresariais, como protegê-las,
dando-lhes forma constitucional. E parte de uma falácia, a de que cada partido
escolherá a sua forma de financiamento. Mas como alguém vai optar pelo uso de
recursos públicos, se outro partido vai optar pelo uso de recursos privados num
volume incontrolável?
CC: A que o senhor atribui o ímpeto pela aprovação deste
projeto?
MR: O incentivo a esse projeto tem o objetivo claro de
impedir a sequência do julgamento que acontece no Supremo. Esse processo está vindo
de encomenda, para um fim particular, que é impedir a aplicação da Constituição
de 1988, como a sociedade brasileira quis que ela fosse feita. O que se
pretende agora é subverter uma das partes mais importantes da Constituição, que
conclui que pessoas jurídicas não podem doar para campanhas.
CC: O senhor diz que as eleições hoje são baseadas no
abuso de poder econômico. Poderia explicar isso melhor?
MR: O dinheiro não se apresenta de forma neutra nas
campanhas, mas de forma orientada por interesses não políticos ou democráticos
e sim que apresentam a conquista de lucros. E, além disso, não participa de
forma sutil do processo, pois chega à campanha desequilibrando a disputa em
favor dos poucos que foram escolhidos pelas empresas, para representar os seus
interesses e não os interesses do eleitorado.
CC: Qual é melhor modelo de financiamento de campanha para
o Brasil?
MR: Um modelo misto e essencialmente público, mas ao qual
se possa acrescentar uma carga de doações de pessoas físicas, feitas de maneira
completamente transparente e fiscalizada. Essas doações serão de pequenos
valores, no máximo de 400 reais, para impedir que algum detentor de grandes
fortunas venha tentar substituir o papel das empresas e cause o desequilíbrio
do pleito. Além disso, nós defendemos que as doações feitas por pessoas físicas
não sejam a cada candidato, mas ao partido político, que fica obrigado a
distribuir igualitariamente aquela doação.
CC: Como é o projeto defendido pela coalizão?
MR: Nós elaboramos um projeto com mudanças baseadas no
texto constitucional. Foi possível elaborar um projeto de lei ordinária, no
qual se apresenta por iniciativa popular, seguindo o exemplo da lei da Ficha
Limpa. Já temos 600 mil assinaturas e vamos até o final, coletar 1,5 milhão,
que é necessário hoje para apresentar um projeto direto do povo no parlamento.
CC: De que forma a população pode participar da reforma
política?
MR: Nós adotamos duas posturas. A primeira de mobilizar a
sociedade sobre a importância de vencer essa tentativa antidemocrática de parte
da Câmara de aprovação do projeto do Vaccarezza e sensibilizar as bancadas com
quem nós temos mantido contato. Mas nós também não deixamos de adotar outra
providência. Nós já apresentamos o mesmo texto da lei, com a assinatura de 164 deputados
federais de todos os partidos, para discussão parlamentar, de forma que o
debate já comece a acontecer. Inclusive, por reivindicação de parlamentares de
vários partidos, o Eduardo Cunha afirmou que todos os projetos de reforma
política serão votados, inclusive o nosso.
CC: Por que alguns parlamentares têm receio da reforma
política popular?
MR: Na verdade, se nós formos analisar a projeto do
Vaccarezza, chegamos à conclusão de que ele representa uma não reforma. É um
conjunto de medidas que busca apresentar-se como uma reforma política, mas que
não tem o poder de mudar absolutamente nada nas relações que já acontecem. Pelo
contrário. Medidas como colocar as eleições ocorrendo juntas, por exemplo,
voltam ao centro da questão, que é o abuso do poder político e econômico. Até
mesmo a reeleição, para diversos cargos, poderia ser aceitável, se não houvesse
o abuso do poder. O centro do debate está sendo evitado, que é quem financia as
campanhas e também como se vota nas eleições parlamentares. Essas listas
abertas, da maneira como ocorrem, são grosseiramente contrárias aos interesses
da sociedade brasileira.
CC: Por que o atual sistema de votação para o Legislativo
é contrário à sociedade brasileira?
MR: O modelo de votação atual não é transparente. O
eleitor não tem a menor noção do que de fato está fazendo. E não tem como
adquirir essa noção. O nosso sistema é ruim. Eu, que me considero uma pessoa
extremamente interessada no assunto, muito preocupado com o sistema do voto, me
sinto angustiado quando vou votar para deputado federal, estadual e vereador,
porque nosso modelo gera o voto imprevisível. O eleitor não tem como ter
certeza de qual vai ser o resultado, não tem certeza para quem será dirigido
seu voto. Um exemplo: nas eleições de 2010, 29% dos eleitores do Distrito
Federal escolheram os deputados distritais. Significa que 71% não votaram nos
eleitos, mas tiveram os seus votos aproveitados indiretamente pelos eleitos,
por causa do sistema. É por isso que a sociedade tem às vezes a sensação de que
"eles não me representam".
CC: Como a compra de votos e apoio político influencia o
comportamento eleitoral da população?
MR: Especialmente nas eleições parlamentares, paga-se por
apoio, e dá-se a isso o nome de estrutura de campanha. Só que na verdade, quem
não oferece a tal estrutura de campanha não obtém apoio, de tal maneira que o
sistema "cospe" aquele que tem menos dinheiro. E abre avenidas
iluminadas para os que chegam com os milhões das mega empreiteiras, e outras
empresas interessadas em se aproximar perigosamente da máquina pública.
Passa-se a imagem de que a competição é econômica, em torno do quem arrecada
mais. E essa mensagem chega até os líderes políticos locais e até o eleitor,
que vêem essa corrida como um mercado eleitoral.
CC: Por que o sistema vigente é uma "máquina de
escândalos", como o senhor diz?
MR: Nós precisamos aproveitar didaticamente e
politicamente do episódio da Lava Jato, por exemplo. Para ilustrar o tipo de
relação que é incentivada ao extremo pela maneira como nós financiamos as
nossas campanhas. Não é possível negar a gravidade dos fatos ocorridos lá, mas
é importante aproveitar os fatos e tentar transformar isso não só num processo
criminal, que é também, mas numa questão que vai além disso. A Operação Lava
Jato tem um efeito, eu diria, até pedagógico. As práticas que estão ali
denunciadas são as mesmas que acontecem até mesmo nas eleições dos municípios
mais pobres da Federação. Essas relações econômicas entre o público e o privado
se repetem.
Fonte: Mariana Melo, revista
CartaCapital / Blog do Sombra. Foto: Reprodução/Facebook - 23/02/2015