Quinta, 26 de fevereiro de 2015
Do IHU
Instituto Humanitas Unisinos
"Perturbador não é o fato de o
deputado Eduardo Cunha cultivar e encampar ideias reacionárias. Perturbador é
constatar que Cunha não está sozinho nesta empreitada", escreve Luiz
Ruffato, escritor e jornalista, em artigo publicada no jornal El País,
25-02-2015.
Eis o artigo.
No dia 1º de fevereiro Eduardo Cunha
(PMDB-RJ) foi eleito presidente da Câmara dos Deputados, o que o coloca como
segundo nome na linha de sucessão da Presidência da República em caso de
ausência de Dilma Rousseff, logo após o vice-presidente, Michel Temer
(PMDB-SP). O Brasil encontrava-se em plena função pré-carnavalesca, enquanto
Cunha, articulador e líder do chamado Blocão, que reúne metade dos
parlamentares da Casa, trabalhava para trazer à pauta propostas que considera
essenciais para o bom funcionamento da sociedade brasileira.
Dentre as prioridades de Cunha estão
a votação do Estatuto da Família, de autoria do deputado Anderson Ferreira
(PR-PE), fiel da Assembleia de Deus, que define “família” como “união entre
homem e mulher”, contrariando decisão do Supremo Tribunal Federal, que igualou
os direitos dos casais homossexuais aos dos casais heterossexuais.
Cunha também desarquivou dois
projetos de sua autoria, um que institui o Dia do Orgulho Heterossexual e outro
que penaliza a discriminação contra os heterossexuais. Fosse brincadeira,
pensaria em farsa – mas, sendo sério, enxergo apenas cinismo.
Negar direitos aos casais
homossexuais, em nome da defesa de valores familiares, é acreditar ainda que o
sol gira em torno da Terra ou que as moscas nascem da carne em putrefação. A
ideia tradicional de família está em crise em todos os lugares, é uma marca dos
nossos tempos – e, ao invés de propor uma discussão honesta sobre como
organizar essa nova realidade, preferimos inventar culpados e caçá-los. Incompetentes
para nos adaptar a um mundo em mutação, aferramo-nos a um passado idealizado (e
portanto falso) e negamos o presente concreto. Esse discurso, baseado em um
moralismo fundamentalista, não combina com uma sociedade que se quer moderna e
laica, e resulta numa espécie de autismo social. Nunca soube de nenhum
heterossexual discriminado, onde quer que seja, por conta de sua orientação
sexual – mas em 2013 foram assassinados 319 homossexuais, quase um por dia.
Outra cruzada de Cunha, dentro de sua
lógica de preservação da família, é contra a legalização do aborto. Por sua
iniciativa, tramitam na Câmara dos Deputados quatro projetos de lei que ampliam
a repressão à prática do aborto: tipificando-a como crime hediondo,
conceituando o início da vida na concepção (hoje a legislação compreende que a
vida começa após a 22ª semana de gestação), prevendo a prisão de seis a vinte
anos do médico que pratique a operação, e tornando crime a orientação de
gestantes para o procedimento, com até dez anos de reclusão.
A proibição do aborto é mais uma face
visível da nossa hipocrisia. Todos sabem que o aborto é praticado no Brasil, e
de maneira intensiva – calcula-se em torno de 850 mil procedimentos
clandestinos todo ano. A diferença é que as mulheres ricas de classe média vão
a clínicas de alto padrão, com ameaça mínima para a saúde, enquanto as mulheres
pobres recorrem a consultórios de fundo de quintal, a aborteiras ou lançam mão
de expedientes domésticos, correndo sérios riscos, que resultam muitas vezes em
esterilidade e, pior, em morte. Recusar-se a discutir o assunto é continuar
condenando as mulheres, sejam ricas ou pobres, à marginalidade – e, em casos
extremos, à morte.
Perturbador não é o fato de o
deputado Eduardo Cunha cultivar e encampar ideias reacionárias – que ele tem
todo o direito de defender. Perturbador é constatar que Cunha não está sozinho
nesta empreitada.
Economista, 57 anos, começou sua
trajetória pública como presidente da Telerj, no governo Collor, assumindo em
seguida a presidência da companhia de habitação do Rio de Janeiro, no governo
Garotinho.
Radialista, ligado ao bispo Robson
Rodovalho, da igreja Sara Nossa Terra, elegeu-se em 1998 deputado estadual e a
partir de 2002 deputado federal, com votações crescentes a cada nova
legislatura – na última, foram 232 mil votos. Para conquistar a presidência da
Câmara, no primeiro turno, recebeu 267 votos.
Perturbador é isso: o deputado
representa a opinião de uma parcela cada vez maior da população brasileira,
que, renunciando a pensar, delega suas opiniões a homens como Eduardo Cunha,
que, escudado num falacioso discurso religioso, defende sabe-se lá que
interesses.