Sábado, 22 de outubro de 2016 "De um ponto de vista de esquerda, não me parece que o PT
tenha condição de ser o condutor de um processo de reorganização da
esquerda brasileira" ==============
Do Esquerda.Net
Em entrevista ao Esquerda.net,
Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST),
adverte que o governo Temer é o mais perigoso para os trabalhadores
desde o início da Nova República. E defende que o grande desafio posto à
esquerda brasileira é reconstruir a sua vinculação com o povo. Por Luis
Leiria, do Rio de Janeiro.
20 de Outubro, 2016 - 09:01h
Luís Leiria
Em
entrevista ao Esquerda.net, Guilherme Boulos adverte que o governo
Temer é o mais perigoso para os trabalhadores desde o início da Nova
República - Foto Mídia Ninja
Aos
34 anos, Guilherme Boulos assumiu um protagonismo decisivo nas
mobilizações contra o novo governo nascido do impeachment de Dilma
Rousseff, sob o lema “Fora Temer”. O MTST, por ele dirigido, é o mais
dinâmico dos movimentos sociais que atuam no Brasil e o que mais cresceu
nos últimos anos.
Chegou atrasado ao nosso encontro, marcado dias antes num café no centro de S. Paulo, para conceder esta entrevista ao Esquerda.net.
Pede-me desculpas pela demora, mas eu tranquilizo-o: conheço bem esse
tipo de vida repleta de reuniões que muitas vezes se prolongam
inesperadamente. Pergunto-lhe de quanto tempo dispomos. Uma hora. Mais
do que suficiente.
Mas não me deixa começar de imediato. Pede-me que antes fale um pouco
da situação política portuguesa. Apanhou-me de surpresa, habituei-me a
que ninguém no Brasil, mesmo na esquerda, tenha o mínimo interesse pela
política de Portugal. Bom sinal. Será que a geração do Boulos está menos
enfurnada no Brasil e menos de costas voltadas para o exterior?
Explico-lhe a “geringonça” e as contradições que ela envolve, o jogo de
forças entre a Comissão Europeia de um lado, e as pressões da esquerda
para que seja cumprido o acordo com o Bloco, o PCP e os Verdes do outro,
acordo esse que permitiu viabilizar o governo de António Costa.
Começa então a entrevista e a certa altura pergunto-lhe se tem
ambições políticas. Responde-me corretamente que o que ele faz é
altamente político e que política não é apenas a intervenção
institucional. Dito isto, não fecha a porta a uma participação
institucional no futuro: “Acho que isso não é algo que ninguém possa
descartar a priori”, diz. Ainda vamos ouvir falar muito dele.
Filho de médico, formado em filosofia, especializado em psicologia,
começou muito jovem a militância política. Apaixonado pela capacidade de
organização do MTST, acabou indo viver para um acampamento de ocupação
do movimento, e a dedicar-se de alma e coração à causa da moradia digna
para os trabalhadores, da reforma urbana, do direito à cidade.
Que avaliação faz das últimas eleições municipais no Brasil, as primeiras a realizar-se já depois do impeachment da presidente Dilma e já sob o governo do vice Michel Temer?
Na
minha opinião, uma das coisas que o golpe demonstra é o fracasso de uma
política de conciliação. A burguesia não quis mais - Foto Jeso CarneiroNós podemos dizer, grosso modo, que houve uma vitória dos
setores mais à direita que representam um projeto neoliberal na economia
e um projeto conservador na política. Fundamentalmente com um
crescimento do PSDB, que teve uma vitória em S. Paulo de proporção
surpreendente. E, entre as maiores cidades do Brasil, o PSDB foi o maior
vitorioso.
Ao mesmo tempo, podemos dizer que foi uma grande derrota do PT,
inquestionável. O PT perde dois terços das suas prefeituras, vence
apenas em uma capital pequena, Rio Branco, de todas as capitais
brasileiras, e vai a segundo turno em Recife. E o voto petista – e isso é
o mais preocupante – saiu do PT e via de regra não foi para a esquerda.
Foi canalizado pela direita.
Dito isso, acho que há dois fatores que são dignos de nota. Um deles é
o crescimento do PSOL. Não foi um crescimento suficiente para alavancar
o PSOL como uma alternativa de esquerda que venha a tomar o lugar do
PT, mas o PSOL vai ao segundo turno em duas capitais, uma delas o Rio de
Janeiro. O PSOL elege os vereadores mais votados em várias capitais,
teve candidatos a prefeito com mais de 20% dos votos…
Alguns desses candidatos a vereadores mais votados foram mulheres… Sim, a maioria foram mulheres.
Isso é interessante... Claro. Em Belo Horizonte foi uma mulher negra, em Porto Alegre a
Fernanda Melchionna, em Belém a Marinor Brito… Ou seja, o PSOL se coloca
como um segmento de representatividade de novos movimentos sociais com
um dinamismo importante de representação.
E um outro fator que precisamos considerar é o avanço do “não voto”,
ou seja, as abstenções, o voto nulo e o voto em branco. Isso não foi um
facto novo, houve um avanço progressivo nos últimos processos
eleitorais. Mas, nas grandes cidades, foi um pico. Em S. Paulo, o Dória,
o prefeito eleito, teve menos votos do que esses três somados. No Rio
de Janeiro foram 42% os eleitores que não votaram, ou votaram nulo ou
branco.
Isso num país em que o voto é obrigatório. Claro. Belo Horizonte, foram 43%, o maior resultado deste voto entre
as capitais, quase metade. É algo que tem de se analisar. Isto reflete
uma desilusão com a política, uma rejeição à política, que, convenhamos,
é justificada, porque o sistema político brasileiro está falido, está
em pandarecos, mas ao mesmo tempo também pode ser canalizado pela
direita. O João Dória é eleito com um discurso antipolítico, “eu não sou
político”, sou um gestor, sou um empresário. Isso pode levar à
tecnocracia, efeito Donald Trump, efeito Berlusconi.
Acho que o balanço que podemos fazer destas eleições é um avanço da
direita inquestionável, uma derrota do PT também muito forte e, não
podemos deixar de dizer, pelos erros do PT, mas não só; o PT tem vindo a
ser alvo de um linchamento mediático desde há dois anos sem
precedentes. É difícil ver um partido que resistiria a isso.
Refere-se à operação Lava-Jato? Refiro-me à operação Lava-Jato mas refiro-me também ao linchamento
mediático que tem sido regra, e que é extremamente direcionado contra o
Partido dos Trabalhadores. Mas evidentemente, reitero aqui, também pelos
seus erros. Isso abre um campo de disputa onde a esquerda deve se
colocar. Além de enfrentar os governos de direita, a disputa é por
canalizar essa insatisfação do eleitorado.
Disse no dia das eleições que o PT já não tem autoridade para ter a hegemonia da esquerda. O que tinha em mente ao dizer isso? Isso não vem apenas desse resultado eleitoral. Não é ele que
estabelece essa sentença para o PT. O PT foi, na minha opinião, a força
política, nos últimos 35 anos, capaz de produzir um guarda-chuva que
unificou o eleitorado progressista, unificou com a parte dos movimentos
sociais e populares, do movimento sindical, da intelectualidade
progressista. Por mais que haja críticas e questionamentos, o PT era a
alternativa que aparecia a esse campo. Foi a aposta dos governos
petistas num pacto social, com Lula, mantido por Dilma, o “ganha-ganha”,
em que a burguesia continua ganhando mas, pela primeira vez em muito
tempo, ganham também os trabalhadores, com o aumento gradual do salário
mínimo, da massa salarial, do crédito popular, dos programas sociais.
De um ponto de vista de esquerda, não me parece que o PT
tenha condição de ser o condutor de um processo de reorganização da
esquerda brasileira
A crise económica solapou as bases para que esse projeto continuasse
indo adiante, porque esse processo de “ganha-ganha” foi feito sem
qualquer combate efetivo aos privilégios históricos no Brasil, sem
nenhuma reforma popular. Nós costumamos dizer que o Estado brasileiro é o
Robin Hood ao contrário: ele tira dos pobres, por um sistema tributário
extremamente regressivo, onde se tributa o consumo e não a renda, e dá
aos ricos, por um sistema de dívida pública baseada em juros usurários.
Essa lógica de funcionamento do Estado brasileiro é concentradora. Mas o
PT não mexeu nisso. Foram treze anos em que isso não foi tocado. Não se
trabalhou a democratização do sistema político, a democratização das
comunicações que são oligopólicas no Brasil.
Os avanços sociais que, na minha opinião, são inegáveis, dos governos
petistas, foram feitos à custa de manejo orçamentário. Houve um
crescimento económico em que as políticas adotadas pelo governo
contribuíram para que esse crescimento acontecesse, mas também surfou a
onda do crescimento chinês, do aumento do preço das commodities
internacionalmente. Esse crescimento permitiu um aumento da
arrecadação, um aumento orçamentário que deu base a essa política. Só
que depois de 2008, acabou a festa.
Com a queda dos preços internacionais das commodities, a crise económica… A retração do mercado internacional… Um exemplo: o Brasil é o 2º
maior exportador do mundo de minério de ferro. Em 2008, a tonelada do
minério de ferro custava 200 dólares; agora está custando 40, 50.
Quando a Dilma se reelege,
em 2014, quando a crise já está estourando, o que ela faz é adotar o
programa de austeridade, de mais uma vez tentar repactuar com a
burguesia, jogando a conta da crise para as costas dos trabalhadores
Ou seja: não era mais possível manter esse modelo. E o PT não foi
capaz de apresentar outro projeto. Pelo contrário, quando a Dilma se
reelege, em 2014, quando a crise já está estourando, o que ela faz é
adotar o programa de austeridade, de mais uma vez tentar repactuar com a
burguesia, jogando a conta da crise para as costas dos trabalhadores. E
isso fez com que a base progressista, a base popular responsável por
sustentar os governos petistas desde 2006 rompesse com este governo, que
perdeu a credibilidade perante esta base.
Isso deu condições para o golpe institucional que tivemos no país, o
golpe parlamentar, em que o governo se torna flutuante, perde a sua
sustentação social, e a direita percebe a situação e se aproveita para
dar um golpe, e isso deixa o PT sem autoridade política e moral para
conduzir um novo projeto de esquerda no Brasil.
Eu não sou daqueles que acham que o PT acabou, que o PT está morto.
Acho que esse é um juízo precipitado. O Lula continua sendo a principal
liderança social e política do país. Não é à toa que está sendo caçado e
achincalhado pelo sistema judicial e pelos média. Agora, desde um ponto
de vista de esquerda, principalmente porque o PT não faz uma
autocrítica desse processo, faz apenas autocríticas pontuais e
fragmentárias, desde um ponto de vista de esquerda, não me parece que o
PT tenha condição de ser o condutor de um processo de reorganização da
esquerda brasileira. Foi isso que eu quis dizer naquele momento. E acho
que as eleições municipais atestam ainda mais esse processo.
Aparentemente, o PT, mesmo prevendo uma catástrofe eleitoral,
manteve a mesma política: fez muitíssimas alianças com partidos que
votaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff, por exemplo… O PT manteve as suas alianças com os partidos golpistas. Quando
ocorreram as eleições para a Presidência da Câmara dos Deputados,
setores do PT compuseram com a direita mais oligárquica e atrasada, que é
o DEM do Rodrigo Maia, que se tornou presidente da Câmara. Defenderam a
composição em nome da derrota de Eduardo Cunha. Ou seja: não foi
questionada a lógica de acreditar nos acordos, de se tornar refém dos
setores mais conservadores.
Na minha opinião, uma das coisas que o golpe demonstra é o fracasso
de uma política de conciliação. A burguesia não quis mais. Quando a
burguesia quer prender o Lula, que foi a voz que permitiu esse consenso
construído na sociedade, isso tem um simbolismo histórico muito forte. A
burguesia disse: “acabou o momento da conciliação, agora é espoliação
pura, eu não quero mais o PT, agora eu preciso acumular e espoliar.
Preciso acabar com os direitos dos trabalhadores, preciso fazer um
programa de terra arrasada, de destruir os investimentos sociais, que é o
programa de Michel Temer, é o programa do golpe.
Quem do lado de cá não entender isso, não está entendendo o que está acontecendo no país.
Você apoiou a candidatura do Marcelo Freixo (PSOL) para a prefeitura do Rio de Janeiro…
E continuo apoiando.
Aliás, chamou-me a atenção que ao mesmo tempo que foi ao Rio
manifestar esse apoio, o Lula também lá foi mas para apoiar a
candidatura de Jandira Feghali (PC do B). Tem esperanças de que o Freixo
possa vencer o 2º turno? Tenho esperanças, sim. O Freixo não é um candidato arrivista,
aventureiro. Ele construiu uma legitimidade no Rio de Janeiro como
liderança política de esquerda que é muito considerada. Construiu um
movimento de diálogo com a base, teve uma votação expressiva, quase um
terço, nas últimas eleições, fez o enfrentamento às milícias – foi assim
que se notabilizou pela sua firmeza, coragem no enfrentamento a essa
excrescência que são as milícias, apoiadas pelo Estado subterraneamente.
Na minha opinião, o Freixo conseguiu ganhar no Rio de Janeiro o voto de
opinião de esquerda, conseguiu penetrar muito bem nos setores médios,
conseguiu penetrar mais do que na outra ocasião em setores populares,
mas as regiões mais periféricas ainda deram voto ao Crivella.
O desafio neste 2º turno é o Freixo conseguir penetrar nessas
regiões, se apresentar a esse povo e ter condições de ganhar as
eleições. Eu acho que isso é possível, porque o Freixo não é um
candidato elitista, longe disso, e acho que pode ter sim uma boa
estratégia de comunicação e de trabalho de campanha para, na reta final,
vencer. Vai ser muito duro, pelas sondagens não está fácil, mas vejo
possibilidades.
E há outro fator: agora os tempos de antena são iguais. No primeiro turno, o Freixo tinha apenas 11 segundos… Foi muito desigual. O Freixo chegar ao 2º turno, o Edmilson
[candidato do PSOL de Belém] chegar ao 2º turno – principalmente o
Freixo, porque o Edmilson fez uma composição maior – é um milagre.Um dos
objetivos da reforma eleitoral patrocinada pelo Eduardo Cunha foi
silenciar o PSOL. A campanha foi de apelo social, e com a participação
de intelectuais e artistas importantes. Acho que agora no 2º turno, numa
situação mais equitativa, as possibilidades de reverter o resultado são
maiores.
Falemos um pouco do governo Temer. Logo que tomou posse,
depois do afastamento definitivo de Dilma, houve muitas manifestações
contra o novo governo, levantando a palavra de ordem “Fora Temer”. Em S.
Paulo, foram quase diárias, durante uma semana. Mas, por outro lado, o
Temer tem um apoio extremamente sólido no Congresso Nacional e pretende
aplicar uma política de ataques muito violentos. Que avaliação faz deste
governo?
Acho que o governo Temer talvez seja o mais perigoso para
os trabalhadores, para o povo pobre do Brasil, desde o início da Nova
República
Acho que o governo Temer talvez seja o mais perigoso para os
trabalhadores, para o povo pobre do Brasil, desde o início da Nova
República. E é perigoso porque, na medida em que não foi eleito, que não
pretende reeleição, não precisa prestar contas a ninguém na sociedade
brasileira. O próprio Temer diz isso em alguns momentos: “eu não sou
candidato”, “não me preocupo com popularidade”, “vou fazer o que for
necessário”. Ele está habilitado, pela sua falta de legitimidade social e
de voto popular, para realizar o programa do Mercado, o programa de
terra arrasada, que talvez sequer um governo eleito da direita teria
condições de fazer. Porque teria de preservar aparências, pensaria dali a
quatro anos na próxima eleição. O Temer tem um apoio consistente dos
média – não é uníssono, existem críticas, mas é um apoio consistente,
que os governos do PT nunca tiveram. Tem apoio de ⅔ do Parlamento.
Apesar de ser uma base fisiológica, ele sabe lidar bem com isso, foi um
gestor do fisiologismo durante muito tempo. E o Temer tem uma
sustentação em bloco do empresariado. Claro que há tensões internas
dentro deste bloco de poder. Mas eu acredito que este governo vai tentar
aplicar os maiores retrocessos neste país, nas últimas épocas.
Vou citar alguns exemplos.
A PEC 241 já foi aprovada em primeira votação. A PEC 241 é uma
Proposta de Emenda Constitucional que prevê o congelamento dos
investimentos públicos por 20 anos! Apenas com o reajuste da inflação. É
colocar a política de austeridade na Constituição do país! Isso
significa inclusive que nos próximos 20 anos qualquer governo de
esquerda que seja eleito vai estar engessado e amarrado. Porque a
esquerda – e nem digo a esquerda, o campo democrático desse país – nunca
teve ⅔ do Parlamento. Eles têm ⅔ para aprovar uma emenda
constitucional. Quando é que nós vamos ter ⅔ para reverter o que eles
estão aprovando agora? É um retrocesso que pode pegar as próximas
gerações de trabalhadores deste país. Vai significar uma redução do
investimento social do Estado brasileiro em saúde, em educação, em
moradia, em políticas públicas de uma forma geral, em outros programas
sociais… vai ser desastroso.
Junto a isso, a proposta da reforma da Previdência regressiva, com o
aumento da idade mínima da aposentadoria, com a equiparação de homens e
mulheres, com o fim do regime especial de aposentadoria rural, com a
desvinculação do aumento do salário mínimo das aposentadorias.
Se for para 65 anos, há estados em que a expectativa média de vida é pouco maior que essa idade… Claro, as pessoas vão se aposentar no caixão. E ainda há a reforma
trabalhista [laboral], que embora a tenham deixado mais no canto,
significa acabar com a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) que é a
lei que regula o trabalho desde a década de 40, que assegura os direitos
trabalhistas essenciais.
Veja uma coisa: nesse meio tempo, da década de 40 até hoje, nós
tivemos 21 anos de ditadura militar. Pois nem os militares ousaram mexer
na CLT. Este governo, em dois anos, quer desmontar a CLT. É um nível de
retrocesso, de destruição da proteção social, de rasgar o que há de
progressivo na Constituição de 1988, que é avassalador.
Eu não acredito que vá passar sem reação social e popular. Eu acho
que se eles insistirem nessas medidas – e dão todos os sinais de que vão
insistir – cedo ou tarde vai haver uma forte reação do movimento social
organizado. É um desafio que está posto nesse sentido para a esquerda.
Quanto às manifestações: nós fizemos manifestações expressivas de 2015 para cá. Lamentavelmente isso ficou em 2º plano porque o impeachment foi
vitorioso. O lado de lá, com um apoio mediático incrível, conseguiu
convocar manifestações em muitos momentos maiores do que as nossas. Mas a
mobilização feita pelo movimento social e pela esquerda brasileira
contra o golpe, em defesa dos direitos, a partir de 2015 e
principalmente no início deste ano, foi a maior mobilização social da
esquerda brasileira desde as “Diretas Já” nos anos 80. Foram centenas de
milhares de pessoas às ruas pelo país afora. Agora, isso não foi
suficiente para barrar o golpe. E ainda não é suficiente para barrar
estas medidas.
O desafio que está posto é
conseguir trazer à cena os atores sociais que não vieram à rua, nem
conosco, nem com eles. Que é a grande massa das periferias urbanas, são
os trabalhadores precarizados, também os trabalhadores de carteira
assinada [com contrato]
O desafio que está posto é conseguir trazer à cena os atores sociais
que não vieram à rua, nem connosco, nem com eles. Que é a grande massa
das periferias urbanas, são os trabalhadores precarizados, também os
trabalhadores de carteira assinada [com contrato]. O grosso da massa
assistiu a este processo todo pela televisão, acreditando que não era
com ele, que era uma briga entre políticos, “eles que se resolvam”.
Essas medidas fazem com que a crise chegue no colo do trabalhador e
do povão. Quando as pessoas começarem a perceber o que elas significam
do ponto de vista do desmonte de serviços públicos, do ataque aos
direitos trabalhistas e previdenciários, eu acredito que se a esquerda
estiver bem posicionada e conseguir traduzir isso para a massa da
população brasileira, poderemos ter um processo de reação muito
significativo.
O Guilherme Boulos é o principal fundador da Frente Povo Sem
Medo, que teve um papel de protagonismo muito importante nessas
mobilizações. Quer explicar como vê essa frente, qual o seu papel no
atual contexto? A Frente Povo Sem Medo começou a ser articulada logo após as eleições
de 2014, quando notámos dois fenómenos fundamentais. O primeiro é uma
ofensiva conservadora muito forte, já naquelas eleições que elegeram
esse Parlamento que está aí. Um avanço da direita. E o segundo foi
quando nós percebemos também que a Dilma Rousseff, eleita com um
programa de manutenção dos direitos, começou a aplicar no dia seguinte a
austeridade. Então, a Frente nasce para enfrentar ao mesmo tempo a
ofensiva da direita conservadora e a política de austeridade aplicada
pelo próprio governo petista.
Desenvolveu uma série de lutas nesse período, mobilizações nacionais
expressivas em defesa dos direitos, contra o ajuste fiscal, contra o
impeachment, contra a direita. Protagonizámos o lema “Contra a direita,
por mais direitos”, com várias manifestações nesse sentido.
A Frente Povo Sem Medo reúne quase 40 movimentos sociais, entre os quais o MTST- Foto Brasil de Fato
A Frente reúne quase 40 movimentos sociais, com uma composição
diversificada. Tem desde movimentos que estão no campo petista, ou do PC
do B, portanto do campo que esteve no governo nos últimos 13 anos – a
CUT faz parte da Frente, a UNE faz parte da Frente –, estão também
movimentos ligados ao PSOL, que se colocou como oposição de esquerda ao
governo petista nestes 13 anos – a Intersindical, movimentos de
juventude como o Rua e outros tantos –, está o MTST e um campo de
movimentos independentes – Brigadas Populares, MLP, e um espaço de
diálogo com esses novos movimentos de juventude, feministas. O papel que
a Frente Povo Sem Medo tem tido até o momento é de organização de lutas
de resistência. É uma frente de mobilização social.
Mas naturalmente, no cenário em que está a esquerda, a Frente também
se coloca um desafio de discutir os rumos da esquerda brasileira, de
pensar neles. Pensar um projeto para o país, pensar o que seria um
projeto de esquerda hoje. E tem feitos debates nessa direção. O que
seria uma saída pela esquerda? O que seria a retomada de um programa de
reformas populares estruturais no Brasil? O que seria a radicalização da
democracia? Temas que começam a ser debatidos no interior da Frente
Povo Sem Medo para pensar uma alternativa. Não só na resistência aos
ataques, mas já apontando uma perspectiva de futuro.
Acho que é um espaço promissor. Porque tem conseguido estabelecer
ligas, não é o campo petista de um lado e o campo do PSOL do outro, os
movimentos pelas suas lutas corporativas… tem conseguido valorizar o que
nos une mais do que o que nos separa – o que é uma dificuldade
histórica da esquerda em todo o mundo. Sem, é claro, perder a dimensão
da diversidade, da diferença. Estar unido por pautas que são comuns não
significa ignorar diferenças expressivas que existem nesse campo. Acho
que a Frente Povo Sem Medo tem conseguido lidar bem com essa
contradição.
Fale um pouco do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
Acredito que as pessoas em Portugal não devem saber muito bem as
diferenças entre MTST e MST. Durante um período, o grande movimento
social no Brasil era o MST. Mais recentemente, o MTST tem uma dinâmica
muito superior e um crescimento considerável. O MTST não é exatamente um movimento que surgiu agora. Nós temos
quase 20 anos e a origem do MTST está ligada ao Movimento dos Sem Terra.
Foi uma construção junto ao MST, em 1997. Mas o MTST teve um salto de
crescimento nos últimos três, quatro anos. E esse salto tem a ver com a
dinâmica urbana no Brasil.
O
MTST tem quase 20 anos, mas teve um salto de crescimento nos últimos
três anos, o que "tem a ver a dinâmica urbana no Brasil" - Foto Mídia
Ninja
Veja: nós tivemos governos petistas num momento de expressivo
crescimento económico. Um dos carros-chefe desse crescimento económico
foi o setor da construção civil, que se empoderou com o crédito público,
muito financiamento, se capitalizou, também pela abertura de capital na
Bolsa de Valores, se internacionalizou inclusive. Ora o aumento da
disponibilidade de crédito imobiliário para uma classe média que
ascendia com o governo e o aumento da disponibilidade de recursos para o
setor da construção gerou um surto especulativo nas grandes cidades
brasileiras. Uma especulação imobiliária impressionante. Para ter uma
ideia, entre 2008 e 2016 em S. Paulo, tivemos quase 220% de aumento do
valor médio do metro quadrado. No Rio de Janeiro foram 260%.
No Rio também houve a ajuda dos grandes eventos, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos… Claro, Copa e Olimpíadas incentivaram esse processo. Porque veio como
nunca investimento público em infraestruturas urbanas, só que isso não
foi acompanhado de uma regulação pública. Isso empoderou o setor
privado, alçou o preço da terra e agravou os conflitos e as contradições
urbanas. Principalmente o problema da moradia. Uma parte importante da
classe trabalhadora urbana paga aluguer. Esta especulação refletiu-se
diretamente no preço do aluguer que dobrou, triplicou em alguns lugares.
E os trabalhadores não tiveram o que fazer: foram ocupar. Começaram a
ser jogados para regiões mais distantes, houve um novo ciclo de expulsão
para novas periferias para continuarem podendo pagar aluguer. E ocorreu
uma reação, uma resistência que se expressou no aumento expressivo das
ocupações nas grandes cidades.
Neste processo, o MTST cresce muito. Cresce como o movimento capaz de
organizar esses trabalhadores sem teto que estão sendo expulsos das
suas casas e de construir uma alternativa de política pública de
habitação. Acho que o MTST teve o mérito também de não ficar ligado
apenas ao tema da moradia, de estender para uma luta mais ampla por
reforma urbana, por direito à cidade e de construir um diálogo no campo
da esquerda que veio a se traduzir no impulso à Frente Povo Sem Medo.
Fale um pouco de si. Originariamente da classe média, seu pai é médico, você é formado…
Em Filosofia.
Filosofia. Como é que foi parar no MTST? Veja, eu comecei a militar muito cedo, como secundarista, no grémio
estudantil e, naquele momento, o Movimento dos Sem Terra era a grande
referência para a minha geração que era progressista, de esquerda. Eu
organizava campanhas na escola de visitas aos acampamentos. E foi um
pouco depois disso, eu já entrando na universidade, que o MTST vem atuar
na região metropolitana de S. Paulo, onde eu nasci e sempre morei.
Fazendo ocupações como a Anita Garibaldi em 2001, gigantesca.
Quando diz gigantesca, estamos a falar de quantas pessoas? De 7 mil famílias, uma cidade. Depois consolidou-se num bairro, houve
uma redução, coisa que sempre acontece, mas ficaram nesse novo bairro
2.500 famílias. E lá estão, no bairro Anita Garibaldi, em Guarulhos.
E eu comecei aí, me encantei com aquele potencial, aquela capacidade
de mobilização, de organização, com tudo o que tinha ali de
autenticidade, de poder de organização coletiva. O encontro da esquerda
com a periferia – o MTST já como movimento caracterizadamente de
esquerda desde a sua fundação, conseguindo chegar em lugares em que a
esquerda brasileira não chegava.
Eu fui viver num acampamento, isso já em 2002, e há 15 anos atuo no
movimento. Entrei depois na coordenação do MTST e hoje faço parte da sua
coordenação nacional.
Você tem ambições políticas? Primeiro, é preciso precisar esse termo. A atuação que faço, a
atuação do MTST já é extremamente política. Quando o movimento faz a
disputa da cidade, quando construímos uma Frente para fazer a disputa de
políticas para o país, acho que há uma atuação política muito forte.
Acho que um dos vícios da esquerda brasileira no
último período foi reduzir a política à política institucional. Foi não
entender que fazer política é também estar nas ruas, é também estar nas
bases. Esse esvaziamento nos levou à crise em que estamos hoje
Acho que um dos vícios da esquerda brasileira no último período foi
reduzir a política à política institucional. Foi não entender que fazer
política é também estar nas ruas, é também estar nas bases. Esse
esvaziamento nos levou à crise em que estamos hoje.
Por isso, eu acho que a atuação que tenho é uma atuação eminentemente
política, no movimento. Não é uma atuação institucional de disputa do
Estado. Acho que isso não é algo que ninguém possa descartar a priori,
mas neste momento eu entendo que o grande desafio que está posto à
esquerda brasileira é reconstruir a sua base social, a sua vinculação
com o povo, algo que já há mais de 20 anos a maior parte da esquerda
deixou de fazer. A maior parte da esquerda brasileira, incluindo o PT,
se reduziu à disputa institucional.
Não existe espaço vazio. Esse espaço que a esquerda fazia nos anos
80, que era o pé no bairro, o trabalho de base, ir aos bairros dialogar
com o povo, construir, trabalhar a consciência social, feito pela
Teologia da Libertação, pelo movimento territorial, pelo movimento
sindical… Quando a esquerda deixa de fazer isso, esse espaço foi sendo
tomado pelas igrejas evangélicas neopentecostais que cresceram muito no
país. Cresceram porque foram capazes de fazer o que a esquerda deixou de
fazer.
Por isso eu entendo que a retomada desse trabalho de base,
impulsionar um novo ciclo de mobilização social hoje é a grande
prioridade da esquerda brasileira e eu me coloco esse desafio, mais do
que qualquer outro.