Segunda, 26 de setembro de 2011
Após
30 anos de destruição dos direitos sociais na América Latina, o Chile
demonstra que a democracia real é incompatível com as ‘plenas liberdades
de mercado’ e que está na hora de construir a verdadeira igualdade
social forjada na luta popular.
O neoliberalismo apresentou seus primeiros sinais de crise com a
emergência de governos anti-imperialistas na Venezuela (1998), na
Bolívia (2005) e no Equador (2006). Com a crise econômica aberta em 2008
o imperialismo se viu mais debilitado para garantir sua política
neoliberal na América Latina. Junto com a crise econômica veio uma nova
situação política mundial, especialmente gerada pelas revoluções árabes
de 2011, que derrubaram ditadores e forjaram movimentos sociais de
massas com ampla capacidade. Os ventos das revoluções democráticas do
mundo árabe atravessaram o mediterrâneo e alcançaram as praças da Europa
em um dos momentos mais agudos da crise econômica, que se manifestou
como crise da dívida pública dos países europeus. A bandeira “democracia real ya”
criada na Espanha é a expressão do povo contra o domínio dos mercados
financeiros nas decisões dos governos. Essa nova dinâmica da luta de
classes mundial é marcada pelo conflito entre capitalismo e democracia:
os interesses financeiros de salvar os bancos entraram em choque com os
interesses públicos para salvar os direitos sociais. Os governos
europeus, como previsto, tinham lado claro neste choque, e abraçaram os
planos de ajustes do FMI.
É nesta nova conjuntura mundial que a crise do neoliberalismo na
América Latina de aprofunda, tendo como principal expressão a luta do
povo chileno por educação pública. Depois de 2011, o movimento social
chileno não recua um passo atrás. O povo chileno não aceitará mais
programas de falsas mudanças. Ou seja, a experiência de luta
antineoliberal chilena é irreversível e agora o neoliberalismo está
efetivamente em cheque. E foi justamente no Chile que o neoliberalismo
nasceu.
O neoliberalismo é filho da ditadura de Pinochet.
A certidão de nascimento do neoliberalismo chileno é um medíocre documento ideológico de 1973 chamado El Ladrillo.
Recorrendo ao mito da neutralidade da técnica e da eficácia dos agentes
privados, eles elaboraram uma doutrina que se declarava antimarxista,
fundada em uma série de mentiras e manipulações a respeito do governo
Allende. O documento apregoava a redução dos gastos públicos, a venda o
setor estatal, abertura do país ao capital estrangeiro, e a política de
meta de inflação. Foi isso que fizeram. Venderam tudo: as terras dos
camponeses, o cobre estatal do norte, as florestas do sul, os recursos
naturais, os solos urbanos. Com isso, a burguesia chilena realizou uma
gigante demonstração de antipatriotismo. O governo militar apoiou as
políticas de redução salarial e acobertou as ganâncias da especulação
financeira. As privatizações da saúde e da educação públicas se
consolidaram em 1981. A distância entre ricos e pobres, dali em diante,
só aumentou. Foi a partir de 1981 que a educação pública chilena deixou
de ser gratuita e passou a ser encarada como uma mercadoria igual a
qualquer outra.
A ditadura chilena, de fortes traços fascistas, foi uma condição
necessária para a experiência inicial do neoliberalismo, que depois foi
adotado por regimes democrático-burgueses em todo continente
latino-americano. O nefasto legado de Pinochet para o mundo foi o modelo
neoliberal. Para o Chile, foi também uma Constituição autoritária e
privatista que até hoje governa o país. Só é possível compreender a
atual luta chilena por educação gratuita a partir da sua amplitude
política, ou seja, o combate contra o neoliberalismo e a defesa da
democracia real.
Nem Bachelet, nem Piñera: com neoliberalismo não há democracia real.
Após 20 anos de governo da Concertación (composta por
Partido Socialista, Democracia Cristã e Partido Radical), a educação
neoliberal de Pinochet seguiu intacta. Patrício Alwyn (DC), Eduardo Frei
(DC), Ricardo Lagos (DC) e Michele Bachelet (PS) tiveram a oportunidade
de alterar a desigualdade educacional do país, e não o fizeram. Pior,
criaram novos mecanismos de crédito e geraram novas possibilidades de
endividamento dos estudantes. Com a eleição de Sebastián Piñera em 2010,
tradicional aliado de regime Pinochet, a situação não podia melhorar.
No atual governo, os capitalistas da educação chilena estão bem
representados. Joaquín Lavín, ex-Ministro da Educação que em julho de
2011 virou Ministro do Planejamento, é proprietário de uma universidade
privada, de duas imobiliárias que arrendam terrenos para universidades
públicas, e de um centro de pesquisas educacionais. O atual ministro da
Educação Felipe Bulnes, de família aristocrática, compartilha a
ideologia pinochetista. O governo Piñera está plenamente comprometido
com os agentes mais poderosos do mercado da educação pública e privada.
Por estar convicto de um projeto de democracia real, o movimento
popular chileno prioriza 3 eixos de luta: a gratuidade total da educação
pública, o fim do lucro bancário e empresarial do mercado educacional, e
a desmunicipalização da educação como primeiro passo para eliminar as
desigualdades no sistema. Para financiar essa reforma educacional, os
estudantes defendem a nacionalização do cobre, proposta acatada
pelos sindicatos de mineiros. Além disso, o movimento social chileno
defende uma Assembleia Constituinte Popular e Soberana, que crie as
bases da democracia real.
A educação privatizada e a dimensão da luta.
Já com educação em geral, somando todos os níveis, o governo gasta
cerca de 4% do PIB. O sistema de municipalização da educação básica,
vigente desde 1981, cria a escola pública do rico e a escola pública do
pobre, sucateia a educação básica e cria insatisfações enormes nas
famílias. Municipalidad, no Chile, corresponde a bairro. Cada
bairro financia a educação local. Os bairros de classe alta possuem
recursos, enquanto os bairros de periferia possuem poucos recursos e
alta demanda social. Assim, a reprodução da desigualdade social é
garantida. Os bairros pobres ficam com escolas vergonhosamente
precárias. O salário de um professor da escola pública no Chile chega,
no máximo, a R$ 2400/mês no fim da carreira.
Após marchas que reuniram mais de 2 milhões de chilenos em todo país,
após mais de 700 liceus ocupados por estudantes secundaristas, após a
manifestação clara de apoio de 80% do povo chileno às demandas
estudantis, o governo Piñera não foi capaz de dar uma resposta. A única
coisa que o governo repete é sua proposta já rejeitada de fiscalizar o
lucro, criar uma superintendência responsável pela fiscalização, ampliar
bolsas, abaixar os juros. O movimento já explicitou o real significado
desta proposta: legalizar o lucro, criar um novo órgão burocrático para
alojar mais um empresário da educação no governo, criar melhores
condições de endividamento dos jovens chilenos. O atual movimento de
massas chileno deu novo fôlego às lutas sociais latino-americanas e
reforça a crise do neoliberalismo que pode alcançar dimensões
continentais no próximo período.
O movimento e seus sujeitos: ensaios da dualidade de poder.
A ausência de representação partidária unificada contra o neoliberalismo.
* Joana Salém Vasconcelos é historiadora e colaboradora da Secretaria de Relações Internacionais do PSOL.