Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Que morra o povo

Terça, 27 de setembro de 2011
Por Ivan de Carvalho
No domingo, a Rede Globo, no programa Fantástico (que, como incontáveis outras coisas da televisão brasileira, só não é mais chato por falta de espaço, ou tempo, sei lá), apresentou uma reportagem importante sobre o setor público de saúde no país.

            Na verdade, a reportagem foi sobre as ambulâncias do Samu. Mas, como efeito colateral, acabou revelando uma parte da absurda gestão do setor público de saúde e das condições calamitosas em que funcionam (ou não funcionam, seria mais correto dizer) as emergências nos hospitais públicos. 

            Quanto ao Samu, a reportagem mostrou que há centenas de ambulâncias desse serviço imobilizadas, não por estarem quebradas ou “em manutenção”, mas por terem sido recebidas antes de implantada a rede que lhes daria utilidade, de modo que nunca foram postas em uso. 

            Isso é tão vergonhoso sob o aspecto da má gestão do setor – má gestão que evidentemente resulta no desperdício de vários bilhões de reais – que autoridades sob cuja custódia estão algumas dessas ambulâncias novas e nunca usadas as mantêm escondidas, talvez para evitar a indignação pública. Ou não aumentá-la. A reportagem flagrou alguns casos, mas também mostrou que, entre as escondidas, as guardadas discretamente e as que estão disponíveis à observação popular, são centenas. 

            O jornalismo da emissora, que, quando quer ou não recebe orientação para só produzir abobrinhas, sabe trabalhar, mostrou que também há um inaceitável número de ambulâncias muito usadas caindo aos pedaços ou em interminável “manutenção”, enquanto outras, as novas sem uso, não estão nem aí para o drama e o sofrimento popular. Motor não é coração. 

            A reportagem sobre as ambulâncias do Samu acabou mostrando, mais uma vez, pois já é rotina vermos isso, o caos nas emergências dos hospitais públicos. As ambulâncias chegam, entregam o paciente e ficam “presas” no hospital por duas horas ou mais, porque a maca do veículo não é liberada. É que o paciente continua nela – o hospital usa as macas das ambulâncias, pois a alternativa seria por o paciente no chão. Aliás, não está na reportagem, mas isso às vezes acontece. 

          Impressionam as pressurosas explicações e “garantias estendidas” à reportagem por autoridades de Estados e Municípios sobre as razões de cada coisa ruim descoberta e sobre planos e providências em curso que vão normalizar tudo nos prazos que anunciam. Além da correção dos malfeitos e da natural responsabilização. Tudo com uma certeza só comparável à que terá emocionado as populações ao observarem a chegada de ambulâncias novinhas que iriam atender suas necessidades de emergência em saúde. Também impressionam as declarações da autoridade federal ouvida pela reportagem sobre os problemas apresentados. Palavras firmes, planos e certezas sobre a melhoria da gestão e resolução ágil dos problemas identificados. 

            Enquanto isso, a ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, do PT, em entrevista, ontem, admite que o governo ainda quer (mas não toma a iniciativa de propor para não se desgastar, como deixou claro a presidente Dilma em recente reunião do Conselho Político da coalizão que apóia seu governo) a criação de um tributo que permita investir mais R$ 45 bilhões por ano para o setor de saúde. A ministra Ideli espera que o tributo seja aprovado pelo Congresso em 2012. Assim, poderão ser compradas milhares de ambulâncias para o Samu e, depois de exibidas juntas em um local, para que o povo veja o feito, escondidas em vários, para que o povo não veja o malfeito e morra sem saber. 

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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.
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Olha o Samu aí, gente!