Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A fé que traz gente de longe

Quarta, 24 de junho de 2015
Há 50 anos realizando cirurgias espirituais, Seu Valentim é procurado por gente do mundo inteiro em suas sessões de cura, que atraem mais de mil pessoas por dia
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O que não está perto está… Longe. Assim explica o dicionário. Mas a definição de espaço é relativa quando se trata da fé, segundo a dona de casa Cleide Makigussa, que enfrentou 31 horas de voo até Brasília em busca de cura. “Cheguei a mentir na hora de fazer o check in. Disse que estava na cadeira de rodas por conta de uma crise de labirintite. Se eu falasse a verdade, não me deixariam viajar”, conta. Ela começou a sentir náuseas e tonturas há 11 anos. Foi diagnosticada com um tumor na cabeça em estágio avançado e com poucas chances de vida, segundo os médicos do Japão, onde morava. Apreensivo, o marido dela, o funcionário público José Shigueyo, já havia levado todos os exames para “Seu Valentim,” médium que atende no Gama, a 34 km de Brasília, e que atrai, semanalmente, centenas de pessoas em busca de cura para os males do corpo e da alma. Ele conta que, ao receber os exames, Valentim foi enfático: “Você tem fé, meu filho? Então, traga ela. Se ela for operada lá, ela morre”.


Do aeroporto Juscelino Kubitscheck, Cleide foi direto para o Gama. “Ele imediatamente me colocou em uma maca e começou o tratamento espiritual. Em seguida, me pediu que procurasse o melhor neurocirurgião da cidade”, comenta ela, sem se recordar de muitos detalhes do procedimento. Ela seguiu o conselho de Valentim e foi em busca de um neurologista. Foi operada 40 dias depois e ficou outros 30 na UTI, muito fraca. “Muita gente dizia que eu não ia resistir, mas ‘Seu Valentim’ afirmava que eu ficaria boa”, lembra, emocionada. Após a recuperação, Cleide ficou mais cinco anos em tratamento com o médium do Gama e foi convidada por ele a trabalhar como voluntária.

Há nove anos se dedica a acolher aqueles que passam pela mesma experiência pela qual ela passou ao chegar do continente asiático. Abraça, encaminha, organiza as filas e conversa com amorosidade, sempre com um sorriso estampado no rosto, com cada um dos visitantes que chega ao hospital espiritual Recinto de Caridade Adolfo Bezerra de Menezes.
Depoimentos como o de Cleide, não faltam, afirma o aposentado Sátiro Francisco da Silva, de 83 anos, que fez uma cirurgia com Valentim em busca da cura de um aneurisma e foi embora para o Maranhão ainda durante o tratamento. Voltou seis meses depois e, ao retornar nos médicos, descobriu que não tinha mais qualquer sintoma. “Em primeiro lugar tenho fé em Deus, depois em Valentim e em terceiro nos médicos”.

A professora Elizabeth Trindade compartilha uma história parecida como a de Sátiro. Ela descobriu um mal no fígado e também buscou o médium. Diagnosticada com doença de Caroli, de ordem genética, caracterizada pelo desenvolvimento de cistos e pela dilatação dos dutos biliares dentro do fígado, descobriu algo pior. Elizabeth conta que ‘Seu Valentim’ lhe disse que estava com um tumor. Ficou 90 dias na UTI, e chegou a ser desenganada pelos médicos. Não havia mais o que se fazer. Apenas aguardar. A irmã dela continuou indo às sessões de Valentim semanalmente e o tratamento, mesmo a distância, seguiu. Elizabeth aos poucos foi melhorando até que saiu do hospital há três anos. Hoje, continua frequentando as reuniões no Recinto Bezerra de Menezes e atribui a melhora ao médium do Gama. “Seu Valentim e essa casa tem uma importância muito grande pra mim. Não consigo ficar sem vir às sessões”.

O nome do centro, que faz jus ao mentor espiritual do pernambucano, analfabeto, de 75 anos, chamado Valentim Ribeiro de Souza, que desde a década de 60 realiza cirurgias espirituais e é procurado por pessoas do mundo inteiro. Ele diz nunca ter entrado em um centro espírita na vida, mas que tem curiosidade. “Desde pequeno eu vejo os espíritos e eles conversam comigo”, conta.  Aos 18 anos, ficou cego e paralítico. O médium relata que um dia o colocaram sentado embaixo de uma árvore e ele então viu dois espíritos vestidos de branco. Apresentaram-se como médicos e, segundo Valentim,  receitaram uma mistura de arruda e leite para pingar nos olhos. Aos poucos, ele foi voltando a enxergar e recuperando os movimentos. Desde então, teve certeza da sua vocação para a cura dos necessitados.
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O atendimento começou em sua própria casa em 1965, que fica no Gama mesmo, mas em outro endereço. Depois, mudou-se para o Recinto Bezerra de Menezes por conta da quantidade de atendidos, que aumentava a cada dia. Com o tempo, ele logo foi atraindo pessoas de todos os tipos e lugares. Artistas, anônimos, umbandistas, candomblecistas, pastores, padres, freiras, políticos… “Só teve um governador que nunca veio me procurar. Todos os outros já vieram me pedir ajuda”, conta Valentim.

Perseguição
Mas nem sempre foi assim. Pioneiro da cidade, Valentim relata que, no início, foi questionado por médicos e até perseguido com paus e pedras pela população revoltada, que o apontava como “charlatão”. A desconfiança foi sendo quebrada ao longo dos anos e das curas. O “obreiro”, como gosta de ser chamado, opera com uma tesoura cirúrgica nas mãos, sem cortes ou incisões. Nunca sofreu denuncias no Conselho Regional de Medicina, que prefere não se pronunciar sobre o assunto. Por meio de nota, o CRM afirma não se envolver com atividades profissionais não regulamentadas, “apenas com a ética do ato médico reconhecida”.

Precavido, Valentim guarda no escritório de sua residência várias pastas com mais de 4 mil cartas, autenticadas em cartório, de pessoas que relatam as curas recebidas em tratamentos com o médium. “Dessa forma, se alguém vier questionar a ‘minha medicina’, eu tenho como provar que essas pessoas foram curadas”.

Legislação
A lei brasileira, também, é bem clara quando se trata de medicina espiritual. O Código Penal Brasileiro pode enquadrar adeptos da cirurgia espiritual. O artigo 282 condena a prática ilegal de medicina e o 283 condena anúncios de cura por “método secreto ou infalível”. O 284 prevê condenação ao curandeirismo, “fazer diagnósticos”. Todas podem dar cadeia, de seis meses a dois anos de detenção. Na prática, as acusações contra espíritas são raras e as condenações mais raras ainda.

A Federação Espírita Brasileira reconhece o ofício de Valentim. “O senhor Valentim e outros médiuns, do presente e do passado, são pessoas bondosas que, unidas a espíritos igualmente bondosos, escolheram se dedicar ao próximo”. Na opinião da instituição, eles se dedicam a aliviar o sofrimento de quem busca ajuda. Isto é algo realmente meritório, e tais médiuns e os espíritos merecem nossa gratidão e respeito”, conclui a vice-presidente da FEB, Marta Antunes.

Rotina que se repete
A crença na cura é vista nos dias de atendimento, ao longo da fila que se forma antes do amanhecer. A rotina se repetiu durante três sábados entre os meses de abril e maio, quando a reportagem esteve no local. As 6h45, já é possível ver mais de 50 pessoas aguardando a abertura dos portões. Ao entrar, às 7h em ponto, a triagem do lado de dentro é feita aos pacientes que ali se encontram pela primeira vez. Na casa simples, de paredes brancas, macas enfileiradas pelo corredor, muitos quadros com fotos dos espíritos dos médicos, que ali trabalham, duas filas são formadas. Ao longo dos corredores, várias placas pedem “silêncio”, outras informam os dias e horários de atendimento, sempre as segundas e quartas-feiras e aos sábados, e o nome dos médicos espirituais, que ali trabalham. Pessoas de todas as idades presentes.

À direita, pacientes com câncer, que retornam para fazer a quimioterapia espiritual. Do lado esquerdo, pessoas com as mais variadas doenças. Todos encaminhados aos longos bancos da varanda para aguardar o chamado de Valentim. Olhares esperançosos, máscaras cirúrgicas, bengalas, cadeiras de rodas, tripés de apoio a bolsa de soro… o clima não poderia ser mais parecido com o de um verdadeiro hospital.

Do lado de fora, pés balançando demonstram inquietude. Poucas pessoas conversam, falam baixo. Nas feições, um misto de ansiedade, dor e esperança. A porta principal da casa é aberta e os “pacientes” começam a entrar. Lá dentro, um senhor de jaleco branco, estetoscópio no pescoço, calça jeans e tênis dá boas vindas ao público. É Valentim que, com um microfone nas mãos, aos poucos chama as pessoas que estão com exames nas mãos para analisá-los. Alguns são diagnosticados com alguma doença, outros apresentam comprovações de cura. Entre uma frase e outra, o médium, reforça: “Eu não curo ninguém. Quem cura é Deus”. Insistia em dizer algumas vezes que o tratamento da medicina tradicional é de suma importância. “Você não devem vir só aqui. A fé cura, mas o médico tem que fazer a parte dele também”.

Silenciosa e, de olhos atentos no médium, a plateia escuta as instruções e, por fim,  entoa uma oração. É hora de dar início aos trabalhos. Em seguida, ele encaminha, em fila, as pessoas para a sala ao lado. Nas várias macas enfileiradas, elas se deitam e, logo, o médium, na companhia de uma médica, também de jaleco branco, começa a realizar as cirurgias. De maca em maca, Valentim, segundo ele já incorporado por seu mentor,  ‘doutor Aguiar’, passa a tesoura por uma região específica de cada paciente. Resmunga baixo, algo que não é entendido por quem está ali. Logo o paciente é liberado e outro se senta no mesmo local. Assim é por toda manhã de atendimento.

Em um dos sábados de abril, mais de 1.500 pessoas receberam atendimento. Na saída, uma voluntária entrega um papel com uma dieta a ser seguida ao longo da semana. Carne de porco, alimentos ácidos e álcool são proibidos para os que estão em recuperação “pós-cirúrgica”. Na semana seguinte, todos devem voltar para “retirar os pontos”.

É rotina o acompanhamento de médicos durante as cirurgias espirituais. O braço direito de Valentim é a cirurgiã plástica Cherifa Mohamed. “Há 20 anos comecei a ter perturbações espirituais e comecei a apresentar manifestações”, diz ela. A mediunidade descontrolada, afirma, a estava prejudicando ao invés de fazê-la melhorar. “Eu estava sendo assediada por espíritos que precisavam de ajuda”, conta Cherifa, que recebeu tratamento, no lar de Valentim, por um mês para afastar espíritos sofredores, como ela intitula. Melhorou. Logo em seguida, o marido dela teve aneurisma e, mais uma vez, retornaram ao “hospital” de Valentim em busca de cura. Foram prontamente atendidos. Ele, também, melhorou.

Tempos depois Cherifa foi convidada a trabalhar no Recinto Bezerra de Menezes. Mesmo atuando na medicina tradicional, ela diz não ter qualquer dúvida sobre o trabalho espiritual naquele lugar. “Todos ali são orientados por algum espírito de um médico ou enfermeiro”, reitera. Para ela, o saber do médium extrapola o conhecimento científico. “Ele é analfabeto, mas sabe mais de medicina do que eu mesma. Quem dá suporte a nós médicos é ele (Valentim), não nós a ele”, completa.

A aposentada Juracy da Silveira é uma das que passou por uma destas cirurgias espirituais. Atraída pela fé, ela procurou o médium em busca da cura para a irmã internada com câncer. Passou a frequentar periodicamente as reuniões do Recinto de Valentim. Com a foto da irmã na mão direita e uma rosa branca na esquerda, recebe o tratamento duas vezes por semana. “Minha irmã está com metástase espalhada por vários lugares do corpo. Ela está nas mãos deles aqui agora”.

Juracy explica que, certo dia, ao sair do lar de Valentim, ligou pra saber notícias da irmã e uma enfermeira contou que, ao entregarem o almoço, ela disse que não poderia se alimentar naquele momento. “Não posso comer hoje, pois vou fazer uma cirurgia”, teria afirmado a irmã. Não havia nenhuma cirurgia marcada no hospital aquele dia, conta Juracy. “A única cirurgia que aconteceu, foi essa que eu vim fazer por ela aqui no Recinto Bezerra de Menezes. Vai entender como ela pressentiu isso”, indaga.

As curas de Valentim atraem até os que não encontram explicação para esse fenômeno na ciência. Em meio aos procedimentos, um tumulto ocorre na porta. Dezenove pessoas de jaleco branco pedem licença e entram na “sala de cirurgias”. Um senhor mais velho, guia de um dos grupos, se ajoelha em frente ao médium e pede benção.  “Os médicos se impressionam e se curvam, como eu vi o doutor Eduardo fazer. Se ajoelhou diante da entidade”, conta Fernanda Machado, de 22 anos, estudante do primeiro período de medicina da Faciplac. Ela e outros alunos, da mesma turma, foram levados pelo professor da  disciplina “Interação Comunitária 1”,  o médico Eduardo de Oliveira, para conhecer o hospital espiritual. Fernanda, explica ainda que, logo que chegaram, os alunos ouviram muitos relatos de curas de câncer. Ela considera fundamental a relação entre fé e medicina para a evolução de tratamentos. “A medicina e a fé se complementam… Pensamento é uma coisa muito poderosa”, afirma.

Ali mesmo, com uma câmera em punhos, um casal francês filmava o atendimento dos pacientes do médium Valentim. Os cineastas Vincent Moon e Priscila Telmon estão há dez meses no Brasil e produzem um filme sobre a espiritualidade, que, segundo eles, é tão presente no país. Já visitaram vários médiuns, centros espíritas e terreiros. Ouviram falar de Valentim no Rio de janeiro e vieram registrar seu trabalho. “Fomos conhecer o  médium João de Deus em Abadiânia e, quando citamos o nome de Valentim,  muitas pessoas se manifestaram mostrando conhecê-lo por lá”, diz Priscila. Vincent afirma que não existe nada parecido na França. Considera-se ateu, mas ficou encantado e, por muitas vezes emocionado com a fé e a seriedade como os trabalhos espíritas são realizados no Brasil. “Você nunca vai encontrar outro país no mundo com uma diversidade e uma riqueza espiritual como aqui no Brasil. Não tem”, disse por fim.

Ao longo de tantos anos, o trabalho de caridade do Recinto Bezerra de Menezes, à medida que aumenta, ganha força. A casa vive de doações. Fraldas geriátricas, cadeiras de rodas, macas, roupas usadas, cestas básicas, dentre outros. Algumas famílias são cadastradas e dependem dessa doação. Muitos dos pacientes são carentes como afirma o voluntário Ademir Ferreira “Às vezes um doente, que vem procurar a cura, precisa de uma cadeira de rodas. Se tivermos duas, doamos uma porque não podemos ficar sem cadeiras de rodas aqui. É um hospital. Outras vezes as pessoas realmente precisam, mas nós não temos para doar”.

A sabedoria e boa vontade do médium, que trata até 1.600 pessoas em um mesmo dia, demonstra que, ainda por muito tempo esse trabalho de caridade irá ocorrer. Seja no Recinto Bezerra de Menezes ou através de vibrações mentais.  Cleide, Cherifa, Juracy, Vincent, Priscila, Fernanda, Ademir e tantas outras pessoas, compartilham de uma mesma certeza: Quando se trata de fé, o que está longe, muitas vezes está… perto.


Fontes:Portal de Jornalismo IESB - 22/06/2015 
Gama Cidadão