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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Estudo revela violações dos direitos dos Avá-Guarani na construção da Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional

Quinta, 25 de abril de 2019
Do MPF
Documento entregue a lideranças indígenas será agora analisado pela procuradora-geral, que conduz inquérito sobre o tema

Foto: Leonardo Prado/Secom/PGR

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, entregou nesta quinta-feira (25), a lideranças indígenas Avá-Guarani, estudo produzido pelo Ministério Público Federal (MPF) que comprova as violações de direitos sofridas pela etnia em razão da construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Itaipu Binacional. O texto reúne documentos oficiais, depoimentos, pesquisa bibliográfica, fotografias e mapas para mostrar que os índios foram deliberadamente excluídos dos processos de reassentamento e reparação, inclusive por ação de órgãos do Estado, como a Funai e o Incra, e da própria Itaipu. As consequências são vividas pelos Avá-Guarani até os dias de hoje, segundo o relatório. O documento foi produzido por grupo de trabalho composto por procuradores e antropólogos, a pedido da procuradora-geral, para instrução do inquérito civil 1.25.003013674/2008-85, que investiga as violações.
“No histórico de demarcação de terras indígenas no Brasil, a demarcação de terras do povo Guarani é muito pequena. O trabalho do Ministério Público é reunir informações que permitam essa demarcação segundo critérios da Constituição”, afirmou a procuradora-geral durante o encontro com as lideranças, acrescentando que o próprio MP pode promover o processo demarcatório em caso de omissão dos órgãos do Poder Executivo. Ela lembrou ainda que os Avá-Guarani vêm sofrendo, ao longo dos anos, um processo de desterritorialização, e que a realidade deles ainda é marcada por conflitos, exclusão, fome e extrema vulnerabilidade.
O diretor-geral da Escola Superior do Ministério da União (ESMPU), João Akira Omoto, disse que, quando o trabalho foi iniciado, o MPF não tinha a dimensão da dificuldade que apresentaria mas não era possível imaginar que o desafio fosse tão grande. “De fato, é a contribuição que o Ministério Público, como órgão de Estado, pode dar nesse processo de violações históricas e sistemáticas dos direitos do povo Guarani. Esperamos que o Estado brasileiro também possa, a partir da conclusão desse relatório, mudar a história desse povo. O relatório tem potencial para isso, ele pode, e nós queremos dizer o seguinte: que estamos dispostos a trabalhar juntos até porque temos todo o apoio da procuradora-geral da República que, desde o início, tem se colocado à disposição para a realização desse trabalho”.

Na avaliação do procurador da República Felício Pontes, integrante da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR), do Ministério Público Federal (MPF), o documento também servirá de norte para a atuação institucional em casos similares, sobretudo em grandes projetos em que há violação dos direitos territoriais indígenas, como na construção de hidrelétricas. Ao destacar a importância do relatório para o resgate da história do povo Guarani no Brasil, o cacique Celso Japopy, da aldeia Ocoy, em São Miguel do Iguaçu (PR), considera que o documento é o primeiro passo no processo da luta pela demarcação das terras indígenas. “Esse livro é o caminho para a gente levantar mais guerreiros da nossa região, conhecer nossas histórias, nosso passado”, resume.

Após a entrega do documento, a procuradora-geral e as lideranças Guarani realizaram o plantio de uma muda de sumaúma, espécie considerada sagrada por vários povos indígenas no Brasil, no terreno em frente à sede da Procuradoria-Geral da República. A árvore, que pode atingir 80 metros de altura em sua fase adulta, é um símbolo do compromisso de proteção ao meio ambiente e do respeito aos povos e à convivência harmônica entre as pessoas.

O estudo – O relatório analisa a situação de indígenas que ocupavam áreas no Tekoha Guasu Guavirá (situado basicamente nos municípios de Guaíra e Terra Roxa) e Tekoha Guasu Ocoy-Jacutinga (de Foz do Iguaçu a Santa Helena), ambos no oeste do Paraná. O primeiro grupo envolve 14 comunidades, e o segundo, outras dez. O estudo mostra que os Avá-Guarani estão presentes no oeste do Paraná e no Paraguai desde o período colonial, de forma amplamente documentada. Apesar disso, durante a construção de Itaipu, laudos e diagnósticos precários produzidos pela Funai e outros órgãos de Estado atestaram a inexistência de indígenas nas áreas alagadas, numa ação deliberada que tornou as comunidades invisíveis. Com isso, elas ficaram excluídas dos processos de reassentamento e reparação.

“Aldeias inteiras foram alagadas, moradias foram destruídas e redes de parentesco foram afetadas. A obra afetou lugares históricos e sagrados, como o famoso Salto de Sete Quedas, localizado em Guaíra, além de cemitérios e sítios arqueológicos que servem de referência à ocupação indígena na região”, diz o texto. Segundo o documento, Itaipu, Funai e Incra utilizaram “mecanismos fraudulentos de identificação étnica” para classificar a maior parte dos indígenas afetados pelos alagamentos como posseiros pobres, estrangeiros ou paraguaios recém-chegados às áreas, impedindo, com isso, a reivindicação de qualquer direito possessório sobre as áreas e reparação pelos alagamentos.

Os danos, segundo o relatório, são sentidos até hoje. Os indígenas da etnia ocupam áreas não demarcadas. Nas quase 20 ocupações existentes no oeste do Paraná, as famílias Avá-Guarani vivem “desprovidas de praticamente tudo, convivendo com altos índices de desnutrição infantil e senil – pois se alimentam basicamente de doações de itens de cestas básicas e da criação de alguns pequenos animais –, sem energia elétrica, água potável e estradas ou vias de acesso”. Além disso, são ameaçadas de despejo pelas ações de reintegração de posse movidas contra elas.

Nesses locais, os indígenas sofrem discriminação, ameaças e violências por parte da usina e dos proprietários formais das áreas onde se encontram. Também são altos os índices de alcoolismo e de suicídios entre os jovens Guarani. “Esses índices negativos possuem relação direta com as pressões, discriminações e violências físicas e simbólicas que experimentam esses locais e que afetam de modo mais contundente os mais vulneráveis do grupo”.

O estudo sugere algumas medidas que poderiam ser adotadas a título de reparação. Propõe, por exemplo, que os órgão estatais sejam obrigados a indenizar os indígenas por terras alagadas ou indevidamente tituladas a particulares, demarcar definitivamente a terra e reconhecer publicamente a violação de direitos da etnia durante a construção da usina. Já Itaipu deve reconhecer publicamente os danos causados e desenvolver ações de reparação, incluindo iniciativas de reconstrução e resgate da imagem dos índios perante não-indígenas no contexto regional. Devem ser construídos também processos conjuntos de ressarcimento, com a participação dos indígenas. As conclusões serão analisadas pela procuradora-geral da República, que é responsável pelo inquérito sobre o tema.