Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Servidora do Itamaraty repudia os insultos de Paulo Guedes: “Parasita, senhor ministro?”

Sábado, 15 de fevereiro de 2020
Da Tribuna da Internet
Rose Marie Romariz Maasri
Apresento-me: sou Oficial de Chancelaria, uma das duas carreiras de nível superior, típicas de Estado, que compõem o quadro do Ministério das Relações Exteriores. Aposentei-me há pouco mais de três anos, após servir ao Ministério por mais de 45. Tenho Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo, Licenciatura em Desenho e Artes Plásticas -ambos pela Universidade de Brasília – UnB, e estou em fase de conclusão de uma tese de Mestrado em Arte Sacra Oriental, em conceituada Universidade libanesa.
Ensinei em algumas Universidades brasileiras e, concluída a tese, pretendo voltar a ensinar.  Falo bem três idiomas, dois outros razoavelmente. Este texto tem um pouco de minha estória.  Espero que outros colegas lhe façam conhecer a deles. Quem sabe, conhecendo as funções que desempenhamos e os riscos que corremos, tente entender que não somos parasitas.
UMA LONGA CARREIRA -Dos muitos anos de carreira, vivi 28 no exterior, em Missões provisórias ou permanentes:  Finlândia,  Grécia, Itália, Reino Unido, França, Alemanha, Estados Unidos, Argentina,  Chile, Líbano, Síria, Líbia, Moçambique. Como a grande maioria de meus colegas, no trabalho fiz um pouco de tudo: Administração, Pessoal, Contabilidade, Comercial, Comunicações, Consular, Cultural.
Em todos os setores aprendi e me desdobrei para desenvolver um bom trabalho, mas o Consular e o Cultural foram os que mais me marcaram.
Enquanto Vice-Cônsul visitei prisões e hospitais, atendi mulheres e crianças abusadas, raptadas, maltratadas, abandonadas; pessoas enganadas por falsos contratos de trabalho; enfrentei – pagando caro por isso, o submundo dos documentos brasileiros falsificados;  e muitas vezes chorei por não poder fazer mais por quem necessitava.  Parasita, senhor ministro ?
IMAGEM DO BRASIL – No setor Cultural, esforcei-me por divulgar a imagem do Brasil, ministrando  aulas  e conferências em  escolas e Universidades dos países onde atuei, além do trabalho desenvolvido na Embaixada.  Participei da equipe que organizou e fundou o Centro Cultural Brasil-Líbano e fui sua Diretora.  Em alguns dos Postos em que servi usei meus conhecimentos de arquiteta para propor reformas ou novos lay-outs dos escritórios.
Por haver trabalhado diretamente com o Arquiteto Olavo Redig de Campos, e conhecer bem seu projeto para a residência do Brasil no Líbano,  propus ao então Chefe do Serviço Cultural da Embaixada em Beirute a inclusão,  no Programa Cultural do Posto,  de uma publicação sobre a Residência, enquanto Próprio Nacional.
O projeto não apenas foi aceito pelo Itamaraty como, ampliado, deu vida a uma coleção que abrange todos os próprios nacionais do MRE.  A administração da preparação do livro sobre a Residência em Beirute ficou sob minha responsabilidade. O texto do livro que explica o projeto, embora não leve meu nome, foi escrito por mim.  Parasita, senhor ministro ?
EM PLENA GUERRA – Servi em país em guerra. Manter a Embaixada funcionando era um desafio diário.  Meus colegas e eu íamos para o trabalho com o rádio do carro ligado, buscando caminhos fora dos locais onde, naquele dia, caiam as bombas.  Por vezes dormia-se na própria Embaixada, porque as estradas não apresentavam condições de segurança.
Certa vez passamos um dia e uma noite no porão do prédio, ouvindo os bombardeios incessantes e inalando os vapores que saíam dos aquecedores a querosene com quem dividíamos o espaço. Tarde da noite, um cessar fogo foi estabelecido e  pude voltar para casa, onde estavam minhas filhas com a empregada. As ruas desertas tornaram a viagem curta.
Ao entrar no prédio em que morava as bombas voltaram a cair.  Passamos a noite no hall de entrada, local mais protegido.  Sentadas no cháo, as crianças dormiram com a cabeça em minha perna. Eu não pude dormir, pensando no marido que não havia conseguido deixar o  local de trabalho, e com o sentimento ilógico de que, enquanto mantivesse os olhos abertos,  protegeria melhor  minha família.
MAIS UM ABORTO – Pela manhã, novo cessar-fogo.  Ao me arrumar para voltar ao trabalho senti as primeiras dores do aborto que interrompeu minha gravidez de quatro meses.  Não foi a única. Dois anos mais tarde, grávida de seis meses e meio decidi viajar ao Brasil para que o bebê nascesse em paz, porque a guerra continuava a devastar o país em que eu servia.  Segui para o aeroporto com as duas crianças. Iamos no banco de trás, elas deitadas com as cabecas no meu colo, eu curvada sobre elas, escondendo-as dos franco-atiradores que ficavam nas ruas onde deveriamos passar.
As três sobrevivemos; a bebê, não. Após a chegada ao Brasil comecei  a sentir contrações.  Levada às pressas para o hospital, ocorreu o parto prematuro.  Irina não conseguiu sobreviver: deixou-nos poucas horas depois que nasceu. Um dos momentos mais tristes de minha vida, gerou uma depressão que levou muito tempo para ser curada.  Se é que o foi… Parasita, senhor ministro ?
FORA DA GREVE – Em 2012 eu servia na Embaixada em Damasco. A carreira a que pertenço decidiu iniciar uma greve por reinvindicações trabalhistas.  Embora concordasse e apoiasse cada uma das reinvindicações, não aderi fisicamente à paralisação.  E não o fiz porque o Posto em que estava lotada, diariamente confrontado com as sequelas da guerra na Síria, vivia em constante prontidão.
Não foi decisão fácil e espero que os colegas a tenham entendido. É que, para mim, interesses pessoais – mesmo os da classe a que pertencemos –, não podem se sobrepor ao daqueles que, vivendo em situaçõese emergência, necessitem da assistência que os funcionários públicos do Posto, como eu e os colegas, lhes podem  proporcionar.  Isto é, para mim, consciência profissional. Parasita, senhor ministro?
QUESTÃO SALARIAL – Quando entrei no Itamaraty, o salário de um Ofchan aposentado equivalia ao de um Conselheiro da Carreira de Diplomata.  Com o tempo essa relação foi-se deteriorando e hoje meu salário é menor do que o de um Terceiro Secretario em início de Carreira. Obviamente não gosto disso. É injusto.  Mas em nenhum momento deixei que tal injustiça prejudicasse o nível de trabalho que me propus a realizar.  Parasita, senhor ministro ?
De uma autoridade de seu calibre, que se propõe a resgatar o Brasil do caos,  espera-se um conhecimento detalhado do tecido administrativo do país.  Sua afirmação, desqualificando-nos, demonstra não ser este o caso.  O senhor pode ser um excelente economista – e o é; mas acaba de demonstrar que não entende nada de pessoas.  Quer encontrar parasitas dos recursos brasileiros?  Porque eles existem e são inúmeros.
Olhe na direçao certa: volte-se para os altos escalões dos Poderes da República;  para aqueles que recebem salários de marajás, complementados por seguro creche, educação e outros; veículo oficial com motorista, auxílio moradia, reformas principescas dos apartamentos funcionais; e uma miríade de possibilidades de exploração da máquina pública, como o uso de aviões da FAB para deslocamentos pessoais.  É contra esses, senhor Ministro, que o senhor deve voltar sua artilharia. Nós,  os funcionários públicos,  ofendidos  por sua declaração,  esperamos desculpas. Porque, entenda: não somos parasitas, senhor ministro.
(artigo enviado à Tribuna da Internet por Vicente Limongi Netto)