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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A quebra da cultura nacional: Disneylândia no lugar de Monteiro Lobato

Terça, 8 de fevereiro de 2022
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Por Afonso Costa.
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8 De Fevereiro De 2022

Além de tortura e entrega da economia, ditadura acelerou invasão estadunidense

A ditadura militar empresarial que assolou o País de 1964 a 1985 promoveu, além da tortura, dos assassinatos e da entrega da nossa economia, uma outra perda irreparável: a quebra da cultura nacional, a genuinamente brasileira.

Por mais que o Brasil sempre tenha sofrido a influência da nação economicamente predominante ao longo dos séculos, seja por parte de Portugal, como da Holanda, Inglaterra e França, com o desenrolar dos tempos desenvolvemos nossa própria cultura, uma mistura de tudo isso com a influência africana, afora a autóctone, a indígena.

Sofremos um processo de aviltamento gritante, particularmente após a II Guerra Mundial, mas que já vinha ocorrendo há muito como cantava Jackson do Pandeiro em Chiclete com Banana. O personagem Zé Carioca, a vinda do Pato Donald ao Rio de Janeiro e a própria Carmen Miranda, apesar do seu talento, são demonstrações claras da intromissão cultural estadunidense no Brasil. Viramos galinheiro, como se dizia antigamente.

Essa verdadeira invasão se deu também através da imprensa e da publicidade. É de conhecimento público que jornais receberam dinheiro para combater o desenvolvimento do petróleo em nosso país, conforme constatado em Comissão Parlamentar de Inquérito da época. As agências de publicidade estadunidenses escolhiam os veículos de comunicação e anunciavam apenas naqueles que faziam o jogo do capital. O caso mais gritante, porém, foi o financiamento da hoje principal rede de televisão, que se tornou a “porta-voz oficial” do imperialismo a partir dos anos 60.

Tal processo se acelerou com o rompimento da pueril democracia existente. A partir daí as calças jeans tomaram o mercado de roupas; os tênis o de calçados; o rock & roll e as grandes bandas as rádios; Oscarito, Grande Otelo, Mazzaropi e outros perderam espaço para os Charles Bronson estadunidenses, com os filmes de faroeste, das explosões e perseguições de carros; Jane Fonda e as Bond Girls substituíram nossas Odete Lara e Tônia Carreiro; os seriados e os desenhos animados importados preponderaram, apesar de termos Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros.

Woodstock e Hair tomaram conta da juventude em detrimento das passeatas ocorridas na França e da luta contra a guerra do Vietnã; Monteiro Lobato é substituído pela Disneylândia; a Praça XI perde para a V Avenida; o banquinho e o violão são suplantados pela guitarra elétrica, o baixo e a bateria; o Teatro de Arena e do Oprimido são batidos pela Broadway. O samba começa a perder espaço e só não caiu porque, como canta Paulinho Viola, “há muito tempo escuto esse papo-furado dizendo que o samba acabou / só se foi quando o dia clareou”.

Quando Geraldo Vandré é substituído por Tony Tornado, as marchinhas de carnaval por Sérgio Mendes, Roberto Carlos começa a fazer sucesso e se torna o rei, se inicia a verdadeira débâcle da cultura genuinamente nacional.

Em reforço desse processo, ao mesmo tempo, o acordo MEC-Usaid tentou calar as universidades, os currículos escolares são dilapidados, cria-se os famosos créditos, acelera-se um processo de privatização do ensino superior, cada vez mais voltado para atender as necessidades das multinacionais e tornar os estudantes meros robôs, preparados para o mercado de trabalho mas não para exercer a plenitude da cidadania. Nesse contexto se dá a reforma universitária de 1968, ano emblemático devido a instauração do Ato Institucional (em verdade ditatorial) nº 5, de triste memória.

Acaba a estabilidade no emprego, é criado o Fundo de Garantia, a correção monetária de infeliz lembrança, os fundos de pensão chegam ao Brasil, o processo de nacionalização da indústria e da substituição de importações iniciado na era Vargas começa a ser destruído por Juscelino e é acelerado pelos militares em atenção aos ditames dos Estados Unidos e do empresariado. A indústria de bens de consumo duráveis ganha impulso sem precedentes em detrimento da indústria de base. Nosso perfil de país agroexportador é maximizado para atender aos interesses das multinacionais, inclusive do que viria a ser o agronegócio. Reformas de base? Nunca!

Até mesmo nos esportes a grandiosidade que o Brasil vivia era latente, sendo bicampeão mundial de futebol, mesmo com Pelé machucado, mas com um Garrincha insuperável, a verdadeira alegria do povo; e até bi de basquete, com espetacular vitória em cima dos EUA. Éder Jofre é o primeiro brasileiro campeão mundial de boxe, e Maria Ester Bueno mostra que as brasileiras também são boas no tênis.

Toda essa energia positiva deu lugar a um país sombrio, no qual o medo e a censura prevaleceram, em detrimento da alegria e da personalidade festiva, típicas dos tupiniquins. Incentiva-se a televisão e o rádio de baixa qualidade, o futebol é badalado na “pátria de chuteiras”, as novelas que nada dizem viram a coqueluche.

Apesar disso uma boa parte da juventude resistiu. Uma parcela enfrentou, de forma equivocada, na chamada luta armada, a ditadura e tudo que ela representava. Outros preferiram tentar através da política e da unidade com os democratas burgueses superar aquele período discricionário. Como cantavam os Mutantes, “É proibido proibir”.

A história é conhecida. Em que pese toda a resistência, enfrentamos o período mais sangrento e ditatorial desde Cabral. Torturas, assassinatos, sequestros, lares destruídos, fome, miséria e desemprego, apesar do falso milagre. A reação, entretanto, veio. Lenta, mas veio.


Afonso Costa é jornalista.