Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O QUE BOLSONARO VAI FAZER NA RÚSSIA

Segunda, 14 de fevereiro de 2022
Salin Siddartha

O que Bolsonaro vai fazer na Rússia? Na realidade, a grande imprensa oculta que Bolsonaro vai a Putin para pedir que não permita à Argentina fazer parte do BRICS. É que o Presidente Alberto Fernandez, em uma diplomacia relâmpago, que pegou de surpresa o Brasil e os demais representantes do império mundial, visitou a Rússia e a China em nome do Estado argentino e, no encontro com o Presidente russo, pediu-lhe que interfira para que aquele país platino faça parte do grupo, desfrutando, assim, das vantagens multilaterais que o BRICS propicia a quem pertence aos seus países-membros.

Foi calorosa a recepção que Vladimir Putin ofereceu a Alberto Fernandez, em contraste com o tratamento que foi dado por ele ao Presidente da França, Emmanuel Macron. No encontro entre os dois governantes, Fernandez expressou que deseja ser menos dependente dos Estados Unidos e do FMI e aproximar-se mais do governo de Moscou, motivo que o fez solicitar a entrada de seu país no BRICS, no que obteve o assentimento do Presidente russo; propôs também que a Argentina seja a porta de entrada para a Rússia em todos os países da América Latina. Foi abordada na conversação a possibilidade de desenvolvimento de uma parceria política, econômica, comercial, cultural e humanitária. Em seguida, ao visitar a China, Fernandez reforçou o pedido de ingresso no BRICS, obtendo também aquiescência de Xi Jinping e, além disso, demonstrou interesse de colocar a Argentina na Nova Rota da Seda.

A venda de armamentos russos à América Latina tem crescido exponencialmente na última década. Com isso, nosso continente é palco de disputa entre Rússia e Estados Unidos, evidenciando ser uma região importante, no que tange à geopolítica da cooperação militar. Procurando intensificar as relações militares com a Rússia, os ministros da defesa da Argentina, Jorge Taiana, e da Rússia, Sergei Shoigu, firmaram em Moscou acordos para capacitação de militares argentinos e treinamento de oficiais e suboficiais em instituições militares da Rússia. Por outro lado, pretende ceder àquele país eurasiático uma base espacial tal qual mantém com a China, na Patagônia, para monitorar satélites norte-americanos. Os russos também querem instalar um porto na Argentina para uso militar. A principal preocupação do governo brasileiro, do ponto de vista comercial militar, reside na possibilidade de compra, pelos argentinos, dos veículos blindados chineses 8X8 Norinco (eles concorrem com o brasileiro Guarani, que a Argentina compra do Brasil). Os chineses têm também oferecido o caça JF-17. Então, a influência da Rússia e da China aumenta na América do Sul. Ademais, os investimentos russos na Argentina possibilitam às empresas daquele país contornar as inofensivas sanções que lhe foram impostas pelos EEUU. E isso acontece numa hora em que se agudiza o conflito entre Rússia e Estados Unidos em relação à Ucrânia.

A visita de Bolsonaro a Putin não está desconectada da realidade conjuntural na qual se inserem nosso país e os portenhos. As recentes crises entre Brasil e Argentina mostram o esgotamento que circunda ambas as nações no Mercosul, com medidas protecionistas dificultando a concorrência com seus produtos nacionais, com barreiras alfandegárias e sobretaxas de importação contra a Argentina. Os dois países não têm interesses idênticos no Mercosul e não o terão no BRICS. A Argentina vislumbra ganhos comerciais com o acesso ao mercado brasileiro e por considerações políticas domésticas; já o Brasil antevê ganhos estratégicos, com a ampliação de sua projeção no âmbito internacional. Eles possuem percepções e interesses diferentes: a harmonização de políticas, as barreiras tarifárias, o grau de autonomia de suas instituições, as assimetrias entre os dois países são pontos de discórdia e incompatibilização.

A preocupação do governo brasileiro é a de consolidar uma liderança subregional e de imagem de potência média no cenário internacional. A pretensão brasileira no cenário sul-americano é a de exacerbar seu papel em relação aos países vizinhos, procurando projetar uma imagem de ator global. Ao passo em que as exportações argentinas vêm crescendo, os interesses entre os dois governos ficaram politicamente ideologizados por parte do bolsonarismo.

Em relação à Rússia, o Brasil mantém uma balança comercial de cerca de 5 bilhões de dólares, o que não é muito em comparação com a que mantém com outras nações, porém, a depender do que seja definido no jantar com Putin, a ampliação do comércio bilateral com Moscou poderá beneficiar nosso país com o aumento de até 17% nas exportações brasileiras. No momento, os fluxos comerciais entre ambos os países são marcados por um alto grau de concentração e baixo nível de comércio industrial (exportamos commodities minerais e agroalimentares enquanto importamos fertilizantes, petróleo e derivados).

Ao inverso do que possa parecer com base no que é noticiado pela grande imprensa, o Brasil não está afastando-se dos Estados Unidos e da União Europeia, com o encontro entre Bolsonaro e Putin. Até mesmo, porque o Itamarati optou por acatar a decisão a ser tomada pela ONU (que, logicamente, não contrariará os interesses norte-americanos) com relação à crise que se instalou sobre a Ucrânia, e o Brasil continua aliado da OTAN – reflita-se que nosso país recebeu o status de “aliado preferencial extra-OTAN” e o conflito entre Rússia e Ucrânia coloca Putin em lado diametralmente oposto ao da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Inclusive, nosso Ministério das Relações Exteriores celebrou, na sexta-feira passada, o aniversário de 30 anos das relações diplomáticas entre Brasil e Ucrânia, como forma de deixar nítida a posição de não aliar-se a Moscou no enfrentamento que faz a Kiev, afinal há cerca de quinhentos mil ucranianos e descendentes vivendo em nosso país.

Ao mesmo tempo em que agrada o agronegócio, a ida de Bolsonaro à Rússia não significa um alinhamento ideológico com o governo de Putin, contudo chega a ser inimaginável o verdadeiro contorcionismo que nosso Presidente terá de fazer para não aumentar a participação brasileira no BRICS, que reivindica maior protagonismo de seus membros constituintes, ao mesmo tempo em que tentará convencer o Presidente russo e, por extensão, o governo chinês, a não prestigiar a participação da Argentina no bloco.

Há que se levar em conta que o Brasil de Bolsonaro não tem a mínima autoridade política internacional capaz de influir nos rumos do conflito que se estabeleceu entre EUA e Rússia, motivado pela tendência do governo de Kiev em aliar-se à OTAN mediante seu ingresso na União Europeia (se o próprio Macron não tem essa capacidade, muito menos Jair Bolsonaro o terá). Também não se deve esquecer que o Brasil voltou a ser um dos dez membros rotativos do Conselho de Segurança das Nações Unidas (órgão da ONU responsável por determinar se uma intervenção armada da Rússia na Ucrânia é legal ou ilegal). Ou seja, Bolsonaro terá que requebrar e muito, dançando um miudinho, para não desagradar o império nem a nação russa nas conversações que encetará com Putin (vai ter que rebolar!).

Um diplomata estadunidense, comentando a ousadia bolsonarista em visitar a Rússia em um momento como este, e, levando também em consideração a inexpressividade e desprestígio de nosso governante no cenário internacional para impor-se ante a realidade conjuntural pela qual os dois expoentes bélicos mundiais atravessam, comparou a atitude de Bolsonaro à de uma criança que corre em direção a atravessar uma avenida com trânsito intenso de veículos: o atropelamento é quase certo.

E tudo isso para quê? Para tentar evitar que a Argentina ingresse no BRICS.

Todavia, trata-se de um jogo de cena a aparente contrariedade com que o Governo Biden vê a visita de Bolsonaro à Rússia. Washington sabe muito bem que o verdadeiro motivo da viagem – que, provavelmente, continuará a ser mantido em segredo – é escantear a Argentina. Aliás, o governante atual do Brasil não dá um passo, sequer, sem comunicá-lo à diplomacia norte-americana. E a Casa Branca não vê com bons olhos o governo de Alberto Fernandez. Desse modo, as notícias propagadas pela grande imprensa aliada ao grande capital monopolista internacional (leia-se Globo, SBT, Record, Estadão, Folha de São Paulo, El País et caterva), de que Bolsonaro está desviando-se do compromisso que tem com Tio Sam e com a Europa, não passam de uma grande balela para manter desinformada a opinião pública, a fim de atender aos objetivos escusos a que a grande mídia se submete. E Putin também sabe disso tudo – por extensão Xi Jinping também o sabe.

Como compradora de armamentos da Rússia (navios e tanques de guerra, por exemplo) e cada vez mais aberta a intensificar o comércio com a Rússia e a China, a Argentina solicitou e recebeu de Vladimir Putin e Xi Jinping apoio para ingressar no BRICS. Esse bloco de países acrescenta a seus membros legitimidade de atuação como representantes do mundo em desenvolvimento, além de participarem do Novo Banco de Desenvolvimento e de um Arranjo Contingente de Reservas.

Servindo aos interesses estadunidenses, dos quais o governo bolsonarista se declara defensor incondicional, Bolsonaro preocupa-se com a possibilidade da ampliação do BRICS para um possível BRICS Plus, já proposta pela China para nele ingressar também países como México, Paquistão e Sri Lanka. A entrada da Argentina no BRICS pode torná-la menos dependente dos Estados Unidos e do FMI; entretanto, e devido aos interesses norte-americanos, apesar de o Brasil tomar parte no BRICS, Bolsonaro sempre tentou esvaziar o conteúdo político do bloco, dele desdenhando. Ainda assim, quando enxerga a possibilidade de a Argentina, principal competidora econômica do Brasil na América do Sul, adentrar no BRICS, Bolsonaro teme pela perda do protagonismo brasileiro no continente e com o reforço que o BRICS receberá desse novo membro.

Foi isso que surpreendeu Bolsonaro e o fez decidir-se a ir até Putin, mesmo em uma ocasião extraordinária como esta, haja vista a emergência com que ele e o império estadunidense encaram essa tal necessidade de diálogo (o resto é historinha para boi dormir).

Essa é a realidade que se oculta por trás da falsa aparência de um desafio ao país ianque e à União Europeia, tão propagada pela imprensa comprometida com o capital monopolista internacional.

Guará-DF, 14 de fevereiro de 2022

SALIN SIDDARTHA