Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Chegou um e-mail da WikiLeaks

Terça, 28 de fevereiro de 2012
por Santiago O'Donnell
Chega-nos um e-mail da Wikileaks. Diz para me comunicar pelo canal habitual. Não podemos dizer qual é esse canal, porque poucos dias depois de receber o e-mail o nosso jornal assinou um acordo que, dentre outras coisas, estipula: "Os jornalistas, empregados, consultores e a infraestrutura de SPP (a editora que publica as wiki-fugas) estão sujeitos à actividade de inteligência estatal e privada e a bloqueios financeiros de carácter político. A fim de proteger a sua capacidade para continuar a publicar efectivamente, vários métodos, pessoas e endereços devem permanecer confidenciais. A menos que se especifique o contrário, estas incluem, mas não se limitam a: identificar pormenores de empregados da SPP, sistemas ou métodos de segurança, localizações, planos estratégicos, informação de ameaças contra a SPP, a quantidade de empregados que tem a SPP, quantidade de empregados da SPP em diferentes áreas, nomes de utilizadores, contra-senhas, transporte, acertos financeiros incluindo acertos financeiros para transportes".

Não fazemos ideia de muitas destas coisas; de algumas sim, mas como assinamos o compromisso não podemos contar muito. Digamos, para conseguir algum mistério, sem mentir, que nos pomos em contacto por uma via encriptada. Dizem que estão a considerar a possibilidade de incluir o nosso jornal numa "sociedade de investigação", é preciso dizer assim segundo o acordo que assinámos. Uma "sociedade de investigação" com outros diários do mundo para divulgar mais de cinco milhões de e-mails da agência de inteligência global Stratfor.


O QUE É O STRATFOR


Averiguámos um pouco.
Stratfor significa Strategic Forecasting Inc. (Previsão Estratégica Inc.) e foi fundada em 1996 pelo texano George Friedman, que actualmente é o presidente executivo. Friedman é politólogo, filho de refugiados húngaros sobreviventes do Holocausto. Antes de fundar sua empresa de espionagem foi professor no Colégio de Guerra do Exército dos EUA e da Universidade Nacional de Defesa desse país. A lista de clientes da Stratfor é secreta, mas há notícias de que incluiria a empresa Apple, a Força Aérea dos EUA e o Departamento de Polícia de Miami. Também há notícias de que numerosas empresas da Fortune 500 são patrocinadoras das suas conferências e seminários e conferências. (Dias depois os e-mails distribuídos por Wikileaks revelaram que o Ministério da Defesa do Brasil também contratou os serviços da agência de Friedman). A empresa de inteligência/espionagem oferece dois produtos básicos: um pacote feito sob medida para cada cliente sobre certos temas que lhe interessem, ou um pacote 'top' com informações sobre todo o mundo. Além disso, há peritos acessíveis 24 horas por dia, de 2ª a 6ª-feira para responder perguntas e diferentes oportunidades para saber de coisas.

Em fins do ano passado a Stratfor sofreu uma incursão de hackers, muito publicitada e vergonhosa. Ou seja, alguém copiou os ficheiros dos seus computadores.


Um representante do colectivo Anonymous, de hackers, ridicularizou-os dizendo que não podia acreditar que uma agência de inteligência não houvesse encriptado os nomes de utilizador e os endereços electrónicos dos seus clientes.


O contacto adianta que, numa busca preliminar, aparecem 10 mil e-mails da Stratfor referentes à Argentina; e uma lista de publicações de diferentes partes do mundo que participam do projecto. Quanto ao resto, bem, temos liberdade para escrever o que quisermos; enviam-nos um texto sobre o bloqueio económico que estão sofrendo e pedem-nos para que o publiquemos; o material fica embargado até hoje; e outros pormenores que não vêm ao caso. Assinámos.


O que encontramos nos e-mails é como funciona uma agência de inteligência/espionagem que opera na Argentina. O que procura. Como procura. Onde bisbilhota. Que grau de interesse demonstram os clientes. Quais os temas que interessam e quais não interessam


Quando alguém lê os e-mails no local sobre o qual se escreve, a informação parece óbvia e conhecida, quando não tendenciosa e incompleta. Mas para os empresários e espiões que recebem os mesmos e-mails nos diferentes cantos do mundo, esse cocktail de bisbilhotices, rumores, recortes de jornais e opiniões ousadas que são os relatórios de inteligência, tanto da Stratfor como em praticamente todas as agências de espionagem privadas e estatais do mundo, o que se valoriza é o grau de fiabilidade dos autores de cada informação. Os clientes da Stratfor confiam muito nos seus relatórios porque os pagam caríssimo. Tem piada que as multinacionais e as agências de diferentes governos poderosos tomem decisões importantes com base nestes relatórios que aparentemente são tão ocos.


Para além das revelações que outros media envolvidos nessa "colaboração investigadora" possam desenterrar de lugares muito mais significativos para o complexo militar-industrial, como o Iraque e o Afeganistão, e dos grandes centros de conflito para as finanças internacionais, como Atenas ou Pequim, o certo é que os e-mails mostram que os clientes de Stratfor não olham a Argentina com demasiado interesse. A tal ponto que a maioria das opiniões e averiguações que aparecem nos textos partem da iniciativa dos próprios investigadores e não de pedidos de clientes, algo que ocorre com muito mais frequência, por exemplo, no Brasil.


Quanto aos temas argentinos que chamaram a atenção da Stratfor, há um que coincide com a agenda jornalística e é o das Malvinas. Outro que atrai o interesse da agência, mas passa bastante inadvertido na Argentina, é o impacto da crescente relação comercial e a incipiente relação política e militar com a China, tema que interessa e muito à empresa Stratfor, não só a nível bilateral como também em relação a toda a região da América Latina.


No que se refere ao ponto de vista sobre os governos argentinos e de toda a região, a Stratfor replica o modelo do Pentágono de analisar tudo através do prisma do anti-chavismo, medindo quanto cada governo parece com o modelo bolivariano. Numa dessas análises, o correspondente local da Stratfor conclui que o kirchnerismo seria uma variante bem-sucedida de chavismo.


O jogo que a Wikileaks propõe é assim: eles nos vigiam e contam o que fizemos em segredo, para que os poderosos decidam o que fazer connosco. Agora, nós vamos vigiar o que eles diziam de nós em segredo. É jogo perigoso, que abala a fronteira do que alguns ainda chamam de jornalismo.


Na semana passada, numa confusa nota editorial, Bill Keller, director executivo do
New York Times, argumentou que a irrupção da WikiLeaks havia tido impacto nulo no mundo jornalístico e que o seu fundador, Julian Assange, estava acabado. Contudo, Keller reconheceu que ultimamente passa o tempo a viajar pelo mundo para falar do tema, para esclarecer a todos que nada mudou com a WikiLeaks. É um jogo perigoso. Sem se aperceber, o director do diário suposto mais importante do mundo passou a emitir opiniões em série de um fenómeno que para ele não existe.
[*] Do diário argentino Pagina12, sodonnell@pagina12.com.ar



  • Ver também: Os ficheiros da Stratfor: 'The Global Intelligence'

    O original encontra-se em http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-188441-2012-02-27.html

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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