Terça, 29 de julho de 2014
Por Sylvia Debossan Moretzsohn
em 29/07/2014 na edição 809
“Em vão me tento explicar, os muros são
surdos./ Sob a pele das palavras há cifras e códigos./ O sol consola os doentes
e não os renova./ As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem
ênfase.” (Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea”)
Em momentos de elevada tensão, o melhor que uma imprensa
responsável pode fazer é preservar a serenidade, única forma de cumprir com sua
promessa – ou sua “missão”, incansavelmente repetida em princípios editoriais –
de tentar esclarecer o que se passa. Dos três grandes jornais do país, a Folha de S.Paulo foi o único a adotar
essa postura ao mesmo tempo crítica e prudente no episódio das prisões
preventivas de manifestantes na véspera da final da Copa do Mundo, em 12/7.
Destacou, por exemplo, que o inquérito de duas mil páginas produzido pela
polícia levou apenas duas horas para virar processo. Também abriu espaço para
especialistas discutirem a decisão judicial.
Foi a mesma atitude assumida diante da prisão de dois
jovens em São Paulo acusados de participarem de depredações típicas dos Black
Blocs. “Manifestantes são denunciados antes de perícia em explosivos”, escreve
a Folha (27/7). Os dois estão
presos desde o mês passado.
Bombas de fragmentação?
O inquérito policial que sustentou a expedição de mandado
de prisão para 28 ativistas acusados de planejarem atentados no dia da decisão
da Copa estava sob segredo de justiça e durante alguns dias ficou inacessível
aos advogados de defesa, mas foi vazado para O
Globo. O acesso privilegiado poderia ter permitido uma análise
criteriosa do material. O jornal, entretanto, se dedicou a reproduzir o que
estava nos autos, chegando a mencionar, na primeira matéria (21/7), a
possibilidade de utilização de “bombas de fragmentação” pelos suspeitos.
Bombas de fragmentação. Não é pouca coisa.
Em 2001, quando os EUA atacaram o Afeganistão em
represália aos atentados de 11 de setembro, a Folha publicou uma
pequena animação para demonstrar como funcionam essas bombas.
Domesticamente, é possível fabricar artefatos que poderiam
ser chamados assim. Com grande poder destrutivo, embora sem termo de comparação
ao dessas bombas lançadas de avião. Se é disso que o inquérito trata, e se o
plano era de fato provocar explosões em determinados pontos previamente
estudados para espalhar o pânico – e não só isso, visto que a hipótese de
produzir feridos e mortos não seria reduzida –, seria algo a se destacar na
capa. Desde que se tivesse como fundamentar a informação, pois do contrário
seria uma irresponsabilidade.
A necessidade do contraditório
Os mandados de prisão foram considerados abusivos não
apenas por parlamentares de esquerda e representantes de ONGs, mas também por
juristas que sempre se destacaram na defesa das liberdades democráticas. Entre
outras fragilidades – como a acusação de formação de quadrilha, que serviu de
base para a decisão judicial e aparentemente carece de sustentação jurídica
mais sólida –, eles contestaram a determinação da detenção prévia pela
suposição de que aquelas pessoas poderiam cometer crimes.
Pelo menos para quem vê de fora, a suposição não é
infundada: o grupo vinha sendo investigado desde setembro do ano passado e a
exaltação incendiária da violência era evidente nas manifestações que, talvez
por isso mesmo, reuniam cada vez menos gente. Trechos das escutas telefônicas,
realizadas com autorização judicial e divulgadas pelos veículos das
Organizações Globo, indicam que algumas daquelas pessoas preparavam ações para,
no mínimo, tumultuar a festa de encerramento da Copa, ainda que fosse
necessário traduzir a linguagem pobremente cifrada dos diálogos.
Pintando o diabo
Mas exageros, como se sabe, são lamentável praxe em
inquéritos. Quantos bandidos pés de chinelo já não foram apontados como
perigosos e sanguinários monstros capazes de incendiar a cidade? Seria mesmo
crível que um grupo minúsculo de jovens estivesse organizando o embrião de uma
célula terrorista no país?
Não que estejamos imunes ao perigo, num caso como no
outro. Mas por isso mesmo uma imprensa séria precisaria reforçar seus cuidados
na hora de tratar de um caso assim. Exatamente porque precisa oferecer
informações confiáveis, ainda mais nessa algaravia amplificada pela internet. E
para evitar ironias descabidas, e mesmo irresponsáveis, por parte de quem tende
a fazer pouco desse tipo de denúncia, de tão escaldado que está.
A não ser, claro, que essa imprensa seja parte de um
processo voltado para intimidar quem, sobretudo se jovem, esteja pensando em ir
para a rua num momento normalmente agitado como o da campanha eleitoral que se
aproxima.
O timing para o contraditório
Na segunda-feira (28/7), O Globo finalmente abriu espaço ao contraditório,
destacando no site um editorial em que argumenta a favor da legalidade das
prisões ao lado de um artigo do advogado Marcelo Cerqueira, que denuncia
resquícios de inspiração fascista na generalidade da tipificação de “crime de
quadrilha” em nosso Código Penal e afirma que as “provas” – assim, entre aspas
– contra os acusados foram “sabidamente ‘fabricadas’ pela polícia”.
Se foram fabricadas ou não, ou até que ponto, é algo a se
apurar. Por isso mesmo é preciso levantar a dúvida.
A base do artigo é um texto que o advogado havia divulgado
no dia 15/7 em seu mural no Facebook. A um jornal que acompanha regularmente as
mídias sociais dificilmente escaparia essa manifestação. Mas talvez não
houvesse interesse em fomentar qualquer dúvida naquela hora.
A praça sitiada
E estávamos no calor da hora. No dia seguinte à prisão de
três ativistas – entre os quais a jovem que, em parte pelo trabalho da própria
mídia, foi alçada a essa condição híbrida de líder e musa do radicalismo – a
polícia desencadeou uma descomunal operação de cerco à Praça Saens Peña, na
Tijuca, para conter os que pretendiam seguir até as imediações do Maracanã para
protestar na final da Copa. Quatro jornalistas e vários manifestantes foram
agredidos por policiais.
O repórter Jorge Antonio Barros, da coluna de Ancelmo
Gois, passava – ou tentava passar – pelo local e não teve dúvidas em
classificar o cerco como “estado de sítio” (ver
aqui): nem moradores eram autorizados a retornar a suas casas. Citava
também a desproporção entre o efetivo policial – cerca de 2 mil homens – e o
grupo de 600 manifestantes.
A reportagem do jornal, não é preciso dizer, foi bem
diferente desse relato, a começar pela menção a “dezenas” de policiais.
Cherchez la femme
Desde então, não se passou um só dia em que O Globo não tivesse publicado notícias
a respeito das prisões, junto com notas e editoriais que aplaudiam a ação da
Polícia e da Justiça. Quando começou a divulgar trechos do inquérito, não
levantou qualquer suspeita quanto a certas conclusões.
A história das bombas de fragmentação é apenas a que causa
mais surpresa. Outras são risíveis: alguém, num telefonema grampeado, diz que a
manifestação vai “bombar” e isso significa que vão explodir bombas. Um garoto
diz que vai matar um policial e isso não é visto como força de expressão.
Mais recentemente, ficamos sabendo, pela Folha (28/7), que alguém citou Bakunin
numa conversa e logo o falecido teórico do anarquismo se tornou mais um
potencial suspeito. Como autor intelectual do crime? Até faria algum sentido.
No Rio, o contraponto foi feito pelo jornal O Dia. Junto com a Folha, foi quem mostrou que as
denúncias eram baseadas em depoimentos de duas pessoas, uma traída, outra
rejeitada num namoro. Tudo fica ainda mais frágil e um tanto patético, embora
não nos devesse surpreender: afinal, na mesma semana um deputado federal do
Rio, que concorre à reeleição e fazia parte da equipe do atual prefeito, era
denunciado por corrupção por sua ex-mulher.
O que seria do jornalismo investigativo se não fossem as
frustrações amorosas?
Esclarecendo?
No domingo (27/7), o Fantástico
apresentou reportagem aplaudida como “esclarecedora” por muitos jornalistas em
seus comentários nas redes sociais. Informa que são oito, e não apenas duas, as
principais testemunhas. Reproduz diálogos e algumas discussões entre os
acusados, que comprovam a articulação de algum plano pirotécnico, cuja
magnitude, entretanto, não é possível dimensionar. No mais, apresenta
depoimentos de pessoas que não se identificam.
Pode ser que estejam falando a verdade. Pode ser que não.
É assim que se esclarece alguma coisa?
Em momentos de elevada tensão, a prudência é um valor
especialmente precioso. Rejeitar as reações raivosas contra a grande imprensa,
o discurso automático e genérico da “criminalização dos movimentos sociais” que
a tudo absolve e se dissemina tão velozmente na rede, exige um jornalismo que
rejeite o maniqueísmo e seja capaz de realizar o que promete. Do contrário,
ficamos perdidos numa batalha discursiva que apenas alimenta a histeria de
parte a parte.
A quem isso há de interessar, é a eterna pergunta.
***
Sylvia Debossan
Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora
de Repórter no volante. O papel dos
motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas,
2013) e Pensando contra os fatos.
Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora
Revan, 2007)