Sábado, 31 de janeiro de 2015
Escrito por Gabriel Brito, da
Redação
O ano
econômico brasileiro começou recheado de medidas de contenção de investimentos
na área social e trabalhista, plenamente ao gosto do mercado e dos ministros
escolhidos para contentá-lo. Como resposta, os sindicatos prometem não aceitar
os cortes com a mesma solenidade de outros momentos, o que se explica por um
cenário de crise econômica que ameaça seriamente a renda e o emprego de suas
bases. Para discutir tal cenário, o Correio da Cidadania entrevistou a
economista Rosa Maria Marques.
“É preciso
lembrar o já sabido: é o investimento que permite a manutenção de um
crescimento contínuo na sociedade capitalista. Ocorre que o investimento está
baixo em todo o mundo, com exceção da China. E isso não só porque a economia capitalista
enfrenta uma crise profunda e longa, mas por conta da mundialização e a
desregulamentação dos mercados, no qual se destaca o financeiro. Assim, à parte
as dificuldades que existem no Brasil e que foram aprofundadas com o câmbio
valorizado, soma-se esse ‘traço geral’”, explicou.
No entanto,
do momento em que o país se encontra rodeado de outras crises, como da água e
da energia, é necessário discutir o próprio modelo de desenvolvimento e seu
eventual esgotamento. Além disso, Rosa Marques, também professora da PUC-SP,
destaca a posição de submissão do governo brasileiro ao mercado, o que
contribui para o agravamento do quadro. “No Brasil, sempre foi importante o
papel do investimento público. Ocorre que este é limitado pelo poder dos
credores da dívida, pela via da realização dos superávits primários”, lembrou.
Quanto às
medidas específicas sobre os direitos trabalhistas, a economista relativiza
algumas delas, umas por não terem tanto peso, outras porque, na realidade, já
eram alvo de debates técnicos desde outros tempos. Apenas lamenta que não se
tenha passado pelo crivo do Codefat (Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo
ao Trabalhador), onde tradicionalmente se tratam tais questões de maneira mais
equilibrada.
De toda
forma, a entrevista prevê tempos difíceis para os trabalhadores, inclusive para
além das medidas mais publicizadas. “O que realmente é digno de nota é que um
dos argumentos utilizados foi o déficit da Previdência, mas nada foi dito sobre
a desoneração de 56 setores da economia e sobre a Seguridade Social continuar
superavitária. O governo Dilma acabou de aprovar a entrada do capital
estrangeiro na saúde. Ao mesmo tempo, a PEC 358 está tratando os Royalties do
Petróleo destinados à saúde não como um acréscimo de recursos, mas como sendo
contabilizados no interior do valor já praticado. Enfim, não é só cortando
benefícios ou dificultando o acesso a eles que o governo está pensando em fazer
caixa”, destacou.
A
entrevista completa com Rosa Maria Marques pode ser lida a seguir.
Correio da
Cidadania: Em primeiro lugar, a estagnação da economia em 2014, as perspectivas
de um ano ainda mais arrochado em 2015, a crise energética e a crise hídrica
são demonstrações de que o modelo de “desenvolvimento” que vigorou durante a
era do lulismo está no limite ou até se esgotou?
Rosa Maria
Marques: Desde o início de 2014, dizíamos que o crescimento fundado na expansão
do mercado interno – via políticas de transferência de renda, crédito para os
setores de mais baixa renda, valorização do salário mínimo, entre outras
políticas – havia se esgotado. E, pior do que se esgotado, nada havia sido
feito para alterar a situação do câmbio “fora do lugar”, isto é, a valorização
do real, e impedir a destruição de parte importante da indústria.
As
políticas voltadas para a expansão da capacidade de compra dos setores de renda
mais baixa, bem como o ciclo expansivo das commodities e o desempenho da China,
criaram a falsa impressão de que era possível manter a economia crescendo,
mesmo que a taxas não muito expressivas, a despeito do que ocorria no resto do
mundo. O ano de 2014 mostrou quão falso isso era.
Evidentemente,
não estou dizendo que as políticas de transferência de renda, de valorização do
salário mínimo e de ampliação da capacidade de compra dos setores de menor
renda não deveriam ter sido feitas. O que estou dizendo é que a capacidade de
essas políticas resultarem na ampliação ou sustentação da demanda tem um
limite. Na sociedade capitalista, o que permite manter taxas contínuas de
crescimento é o investimento, algo sabido.
A questão
da crise energética e da crise hídrica não está diretamente relacionada ao
governo Dilma, a não ser por sua clara incompreensão do que se passa em termos
de mudança climática e por decisões tomadas que aprofundam os problemas nessa
área no Brasil. Embora se possa dizer que faltaram investimentos públicos, os
especialistas em meio ambiente há muito vêm dizendo que o desmatamento da
Amazônia – Antonio Nobre nos diz que são destruídas 2.000 árvores por minuto na
região -, que vem se somar ao que foi feito muito antes, tal como a destruição
da Mata Atlântica, já alterou o clima no Brasil.
O baixo
volume e duração do período de chuva e a ampliação da estação seca são produtos
dessa mudança. Mas os poderes públicos continuam a desconsiderar esse fato e,
inclusive, a incentivar ou permitir, por sua ausência regulatória, a ocupação
de áreas que deveriam ser preservadas e/ou recuperadas. Isso para os negócios
de todos os tipos ou mesmo para a ocupação imobiliária.
Correio da
Cidadania: Neste contexto, o que diria, especificamente, sobre o investimento
público e privado no Brasil nos últimos anos?
Rosa Maria
Marques: É preciso lembrar o já sabido: é o investimento que permite a
manutenção de um crescimento contínuo na sociedade capitalista. Ocorre que o
investimento está baixo em todo o mundo, com exceção da China, e não só aqui. E
isso não só porque a economia capitalista enfrenta uma crise profunda e longa,
mas porque houve, nas últimas décadas, com a mundialização e a
desregulamentação dos mercados, nos quais se destaca o financeiro, a ampliação
de maneira absurda das possibilidades de o capital ampliar-se sem ter de se
preocupar com investimentos no sentido restrito do termo.
E isso é
dado pelo mercado de títulos, ações e derivativos, que perfazem várias vezes o
PIB mundial. Vários economistas já chamaram atenção para o fato de que, desde o
início dos anos 1990, houve um descolamento entre o investimento e os lucros,
isto é, se antes eles evoluíam juntos, criou-se uma brecha, de modo que, cada
vez mais, parte dos lucros não é reinvestida, mas, sim, dirigida para o mercado
financeiro de capital especulativo ou fictício, com rentabilidade
extraordinária.
Assim, à
parte as dificuldades que existem no Brasil e que foram aprofundadas com o
câmbio valorizado, soma-se esse “traço geral” que caracteriza o capitalismo
contemporâneo, o que empurra ainda mais o nível do investimento para baixo.
Mas estamos
falando de investimento privado. E, no Brasil, sempre foi importante o papel do
investimento público. Ocorre que este é limitado pelo poder dos credores da
dívida, pela via da realização dos superávits primários – termo que hoje ficou
conhecido por grande parte da população brasileira, tal foi a avalanche de
comentários e notícias veiculadas na imprensa, televisiva ou não, sobre um
pretenso descontrole total dos gastos públicos...
Na
impossibilidade, real ou política (enquanto escolha de governo), de realização
de investimentos públicos significativos, e na ausência ou inibição do privado,
não há como a economia crescer.
Correio da
Cidadania: Como analisa as primeiras medidas econômicas adotadas pelo segundo
mandato de Dilma Rousseff, entre os momentos finais de 2014 e iniciais de 2015?
Rosa Maria
Marques: As medidas tomadas ao final de 2014 e que prosseguem neste início de
ano apenas mostram que o governo Dilma é totalmente refém do que se
convencionou chamar de mercado. Foi o mercado que introduziu como inexorável a
realização de superávits primários (mesmo que em nível inferior do que já foi
obtido no passado), impondo contingenciamentos no orçamento e buscando reduzir
gastos em todos os lados.
A opção por
reduzir ou conter os gastos públicos, que constituem um importante componente
da demanda interna do país, em um quadro de uma economia estagnada ou, como
querem alguns, caminhando para uma recessão, certamente irá deprimir ainda mais
a situação econômica.
Correio da
Cidadania: A partir do reforço dessa ótica conservadora, quais efeitos você
espera sobre seguro-desemprego, pensão por morte, abono e auxílio doença?
Rosa Maria
Marques: Não há, a princípio, problema em se alterarem as condições de acesso e
mesmo certos aspectos da concessão de benefícios. Isso é feito corriqueiramente
junto aos sistemas de proteção, sempre que for considerado necessário. Contudo,
no caso específico das medidas que foram encaminhadas, embora elas ainda
necessitem aprovação do Congresso Nacional, alguns problemas se colocam.
No que se
refere ao seguro-desemprego, a primeira coisa que chama atenção é que a medida
encaminhada não foi objeto de discussão do Codefat (Conselho Deliberativo do
Fundo de Amparo ao Trabalhador), onde participam, paritariamente, empresários,
trabalhadores e governo. Não há, contudo, nenhuma regulamentação que determine
que matéria desse teor fosse nele discutido, mas, dada a tradição democrática
desse conselho, e a importância da mesma sobre a vida do trabalhador, era de se
esperar que isso ocorresse. O mais grave é que, se for confirmada a piora da
situação econômica, o que implica aumento do desemprego, é possível que parte
dos desempregados não tenha como solicitar o seguro-desemprego, caso não
comprove vínculo empregatício junto ao mercado formal nos últimos 18 meses.
Enfim, é um mau momento para mudar as regras de acesso.
Quanto ao
abono, mesmo considerando que isso pode ser entendido como uma perda de
direito, não tinha muito fundamento, em termos de justiça no campo da proteção
social, a concessão de um salário mínimo para todos trabalhadores que ganhassem
até dois salários mínimos, independentemente do número de meses trabalhados no
ano. As novas regras exigem que se tenha trabalhado pelo menos seis meses, de
forma ininterrupta, no lugar de um, e o pagamento passa a ser proporcional ao
tempo trabalhado, tal como ocorre com o 13º. O que se pode discordar é sobre a
exigência de seis meses ininterruptos, bem como o fato de, mais uma vez, não
ter havido prévia discussão com as entidades e sindicatos que representam os
principais interessados. Agora, a bem da verdade, estas e outras propostas de
ajustes são discutidas pelos especialistas da área há muito tempo.
No que se
refere à pensão por morte, houve piora nas condições de acesso, pois foi
ampliado o tempo mínimo de contribuição (e de comprovação da união) para que o
cônjuge ou companheiro (a) tenha direito à pensão, bem como foi introduzida a
expectativa de vida do cônjuge sobrevivente e dos filhos na definição do tempo
de concessão. Em outras palavras, foi extinta a concessão perpétua para
qualquer idade: para as condições demográficas atuais, somente aqueles com 44
anos ou mais (com expectativa de sobrevida de 35 anos), têm direito à pensão
durante toda sua vida. O tempo para os demais cônjuges ou filhos é função de
suas expectativas de vida. Aspectos dessas alterações, principalmente quanto à
concessão perpétua, sempre foram objeto de muita crítica entre os
especialistas. Contudo, chama atenção que nada mudou quanto às regras dos
militares, somente afetando aqueles regidos pelo INSS e os funcionários
públicos.
A mudança
do auxílio-doença me parece ainda mais problemática, pois o trabalhador irá
receber de acordo com a média das últimas 12 contribuições, no lugar de 91% de
seu salário (limitado ao teto do INSS). Certamente isso irá significar uma
redução do nível do benefício, o que é particularmente preocupante em caso de
doença, quando despesas aumentam, ainda que o mesmo tenha cobertura pública ou
privada dos cuidados com a saúde.
Mas pouco
importa se parte dessas medidas encontra apoio em termos de justiça
previdenciária. O que realmente é digno de nota é que um dos argumentos
utilizados para seu encaminhamento foi o déficit da Previdência Social, e nada
foi dito sobre a desoneração permanente na contribuição sobre a folha de
salários, de 56 setores da economia, e que a Seguridade Social, a despeito de
tudo, continua superavitária. Vale lembrar que os recursos da Seguridade, entre
os quais estamos incluindo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), são
recursos dos trabalhadores, muito embora a Desvinculação de Receitas da União
(DRU) promova um “confisco” de 20%, exatamente com vista ao superávit primário.
Correio da
Cidadania: O que se pode, por sua vez, esperar dos ministros escolhidos por
Dilma na área econômica no longo prazo, considerando que os próprios
representantes do governo anunciam que os ajustes serão necessários por pelo
menos dois anos?
Rosa Maria
Marques: Não há longo prazo à vista. O que iremos assistir, e já estamos
assistindo, é ao recrudescimento das lutas em defesa do emprego, dos salários e
dos direitos sociais. Para alguns setores da esquerda, enquanto o governo,
mesmo fazendo inúmeras concessões ao capital financeiro, ao agronegócio e às
empresas em geral (vide as desonerações), continuasse a manter nível baixo de
desemprego, elevação do salário mínimo, ampliação do acesso à universidade,
políticas de transferência de renda, entre tantas outras ações que sem dúvida
beneficiaram parcelas importantes da população brasileira, tudo estaria bem.
Contudo,
quando aquilo que parecia ser uma concessão – para acalmar os mercados – passa
a ser o determinante dos rumos gerais do governo, parte de sua base de apoio se
desloca e se põe a lutar pela defesa daquilo que lhe é mais caro: emprego e
renda, sendo que nesta última se incluem os direitos sociais.
E para completar,
gostaria de tocar em um assunto da maior importância. O governo Dilma acabou de
aprovar a entrada do capital estrangeiro na saúde, o que era vetado pela lei
8.080, de 1990. Ao mesmo tempo, a PEC 358 está, entre outras coisas, tratando
os Royalties do Petróleo destinados à saúde não como um acréscimo de recursos
para a área, mas como sendo contabilizados no interior do valor já praticado.
Ainda nessa PEC, a proposta do Projeto de Iniciativa Popular, conhecida como
Saúde +10, subscrito por 2,2 milhões de brasileiros, foi totalmente
desconsiderada. Enfim, não é só cortando benefícios ou dificultando o acesso a
eles que o atual governo está pensando em fazer caixa.
Correio da
Cidadania: Que efeitos podem ser projetados sobre a sociedade brasileira e os
trabalhadores?
Rosa Maria
Marques: Serão tempos muito difíceis. A capitulação ao mercado, em matéria de
política econômica, com todos os desdobramentos que acarreta, terá
consequências negativas para os trabalhadores. Elas só não serão maiores se
estes continuarem (como já estão fazendo) a se mobilizar na defesa do emprego,
dos salários e dos direitos sociais, como disse anteriormente.
Gabriel
Brito é jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania
http://www.correiocidadania.com.br