Rui Barbosa
O reino da mentira*
Mentira toda ela.
Mentira de tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu, onde,
segundo o padre Vieira (que não chegou a conhecer o senhor Urbano
Santos), o próprio sol mentia ao Maranhão, e direis que hoje mente ao Brasil
inteiro. Mentira nos protestos. Mentira nas promessas. Mentira nos programas.
Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentira nas
convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos
homens, nos atos e nas coisas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto,
na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos.
Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados à
nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações.
Mentira nas mensagens. Mentira nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira
nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentira nas candidaturas. Mentira nas
garantias. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. A mentira
geral. O monopólio da mentira. Uma impregnação tal das consciências pela
mentira, que se acaba por se não discernir a mentira da verdade, que os
contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vezes
não sabem se estão, ou não estão mentindo. Um ambiente, em suma, de mentiraria,
que, depois de iludido ou desesperado os contemporâneos, corre o risco de
lograr ou desesperar os vindouros, a posteridade, a história, no exame de uma
época, em que à força de se intrujarem uns aos outros, os políticos, afinal, se
encontram burlados pelas suas próprias burlas, e colhidos nas malhas da sua
própria intrujice, como é precisamente agora o caso.
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*Conferência
proferida na Associação Comercial do Rio de Janeiro, em 8 de março de 1919, por
ocasião da campanha presidencial em que teve como antagonista o senador
Epitácio Pessoa. Rui venceu em todas as grandes capitais e cidades do Brasil
(Campanha presidencial, Bahia, 1921, p. 77-78).
*Fonte: Antologia — Rui Barbosa.
Editora Saraiva
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Comentário do Gama Livre: Nada mudou na política daquele tempo para cá. Continuamos vivendo no reino da mentira.