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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Crise da saúde no Rio: “Qual é o valor da vida para o prefeito?”

Domingo, 24 de dezembro de 2018
Trabalhadores em protesto contra cortes de verbas e equipes da Atenção Primária, anunciadas pelo prefeito do Rio de Janeiro. Foto: Abrasco

“[Governo Crivella] Diz que se compromete com a manutenção da rede e evitar diminuição de cobertura, mas propõe redução de 184 equipes”, aponta relatório do Conselho


Do Saúde Popular, Por Hara Flaeschen, da Abrasco
A crise na saúde do município do Rio de Janeiro arrasta-se em um confuso e demorado trâmite político. Diante deste cenário complexo, a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) promoveu uma discussão, semana passada (18/12). Hermano Castro, diretor da ENSP, mediou a mesa que teve como debatedores Eduardo Melo, representando a Abrasco; Madalena Ayres e Alessandra Honorato, do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro; Paulo Pinheiro (PSOL), vereador titular da Comissão de Saúde da Câmara Municipal do Rio de Janeiro; Valeska  Nunes, Médica de Família da Equipe de Rua de Manguinhos; Mariana Nogueira, professora e pesquisadora da Escola Politênica Joaquim Venâncio e Marcos Menezes, Vice-Presidente da Fiocruz. Representando a Secretaria Municipal de Saúde,  Leonardo El Warrack.

Amputação na saúde

“O pé da saúde que não cabe no sapato da Secretaria da Fazenda do governo Crivella” disparou Pinheiro. Segundo o parlamentar, esta foi a expressão usada pelo secretário-geral da Casa Civil, Paulo Messina, “primeiro ministro” de Crivella – como ele se refere ao secretário – para explicar os cortes no setor. Com esta decisão de cortar recursos na APS, assistimos à amputação do pé da saúde, prejudicando a vida de milhões de cidadãos”.

Pinheiro foi responsável pela articulação do processo judicial, que obrigou a divulgação da Reorganização dos Serviços de Atenção Primária à Saúde: “Nunca foram apresentados os documentos que justifiquem os cortes. Foi necessária uma ação popular”, ressaltou o vereador. Só a partir desta ação o Conselho Municipal de Saúde pôde acessar as justificativas apresentadas pelo Executivo.

Contradições fortes e critérios frágeis

Apesar da falta de transparência da Prefeitura, o Conselho Municipal de Saúde (CMS) está atento e forte. Pelo órgão do controle social, a médica Valeska Antunes apresentou um relatório do Grupo de Trabalho criado pelo CMS  – com a colaboração de entidades como Abrasco, Cebes e Fiocruz: “Foi  pouco tempo para analisar o projeto da prefeitura. Há uma contradição entre as premissas e os objetivos. Diz que se compromete com a manutenção da rede e evita diminuição de cobertura, mas propõe redução de 184 equipes. É contraditório”.
Um dos questionamentos levantados é a escolha dos critérios para a eliminação das equipes. A prefeitura determinou cinco itens eliminatórios: Índice de Desenvolvimento Social (IDS), cobertura de pelo menos 3 mil usuários cadastrados por equipe;  produção ambulatorial (consultas) abaixo de 75% nos últimos dois anos; contato com os usuários – pelo menos 40% de retorno da população já atendida- e programas de ensino estratégicos,  Residência Médica ou de Enfermagem.
O Grupo de Trabalho questiona  a avaliação: “Pelo menos 26 das 184 equipes cortadas não correspondem a nenhum dos critérios, exceto o fato de não terem Residência Médica. São equipes de baixo IDS, alta frequentação, produção dentro do esperado e não conseguimos compreender porque essas equipes foram eleitas”, aponta Valeska.  No relatório, exemplificaram alguns casos – como a Equipe Leonor Chrisman Mulle, da Clínica de Família Padre João. Localizada em Realengo, bairro de baixo IDS, tem 3064 usuários cadastrados e produção de frequentação de 81%.
Outra questão é a reformulação das equipes. A prefeitura apresenta uma nova tipologia que reforça o modelo pré-Estratégia de Saúde da Família: a chamada Equipe Tipo 4, modelo que atenderá a maioria dos usuários, é considerada “desastrosa” pelo grupo. A previsão é que cada equipe — formada por um médico não obrigatoriamente especializado em Saúde Família e Comunidade, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e sem obrigatoriedade de Agentes Comunitários de Saúde – atenda até 16 mil pessoas. “Não correspondem ao modelo de APS de qualidade que comprovam altos resultados”, aponta o relatório.
“Com base nisso tudo, propomos recomendações, que foram acatadas pelo CMS. Solicitamos que a gestão apresente de fato o orçamento necessário para cumprir o Plano Municipal de saúde, como foi de fato pensado, para que a gente possa atuar na negociação com outras esferas de governo. Isto é a concretização de algo que é tendência nacional: desfinanciamento do SUS em prol da dita política de boa prática orçamentária, fazer economia”, conclui Valeska.

Vício de origem: procura-se justificativa para o injustificável

Eduardo Melo, da Rede APS da Abrasco, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (ISC/UFF) e pesquisador da ENSP, também questionou a suposta ociosidade de equipes apresentada como critério de eliminação: “Essas fontes que indicam poucas consultas são confiáveis? Se sim, por que há ociosidade? O que pode ser feito diante da ociosidade naquele lugar ali ou remanejando equipe de profissionais, unidades? A ociosidade requer gestão, não corte imediato de equipes. Quem estava gerenciando que não enfrentou essas questões?”.
O abrasquiano também destacou que Atenção Primária não é só consultas: “São super importantes, mas não esgotam de maneira nenhuma aquilo que é central para APS. Não existe política no Brasil com o grau de capilaridade da saúde, e essa capilaridade se expressa pela ESF. Significa que os Agentes Comunitários de Saúde, sobretudo, absorvem conjuntos de demandas e problemas que entram na agenda das equipes e que não são de simples resolução, exige um suporte muito forte para que trabalhem estas questões com visão ampliada de saúde.”
Melo reforçou que há um vício de origem. “O corte não parte da avaliação da situação para daí pensar em como interferir na situação. Passa de uma decisão que precisa cortar na saúde e na Atenção Primária, e se precisa produzir argumentos para justificar esse processo. A saúde é um direito, fala da vida. Falamos muito de valor agregado, mas qual é o valor da vida para o prefeito?”.

“Ideologia” Lean, toyotismo e pessoas como fatores

O representante da Secretaria Municipal de Saúde – Leonardo El Warrack – preocupou-se principalmente com a explicação da fórmula utilizada pela equipe gestora para organizar os cortes. Usando repetidamente termos como “melhorias de processo”, “oportunidade de melhoria”e “modular processos” o Subsecretário de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde usou grande parte de seu tempo para explicar o método Lean – uma filosofia de gestão inspirada no Toyotismo que tem como premissa a produção de mercadorias por demanda.
Na fala de Warrack ficou claro que, do toyotismo, o método Lean herda a ideia de eliminar as atividades desnecessárias, preservar e aumentar aquelas que criam valor para o cliente. Para Eduardo Melo, a “ideologia”, como ele apelida, é repleta de implicações: “Este discurso de oportunidades, melhoria, colaboradores, reduzir trabalhadores a fatores humanos – exerce um fascínio sobre quem está na gestão lidando com muitas contingências. Entretanto, neste cenário de subfinanciamento, o uso pode ser caracterizado com uma certa perversidade. A saúde, diferentemente de bancos ou empresas que produzem carros, tem como trabalho humano o ponto central. Depende de relações”.
“Como representante da Abrasco, além de tudo que falei aqui, a ideologia gerencial  colocada é um apagamento de todo acúmulo que a Saúde Coletiva – a parte de política, planejamento e gestão  em saúde – produziu nas últimas décadas. Claro que a área tem limites, mas tem muito acúmulo de teorias, perspectivas e planejamento estratégico de saúde, um conjunto de ofertas que seriam muito úteis num momento como este, de discussão sobre a sustentabilidade do SUS. Tenho certeza que na Secretaria Municipal de Saúde do Rio existem muitos técnicos de carreira com muita formação, com história na saúde pública, e o que eles tem de acumulação é pra muito além de isso aqui”, completou Melo.

Ministério Público: “Falta verdade”

Madalena Junqueira Ayres e Alessandra Honorato Neves,  promotoras da 2ª e 4ª Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva da Saúde da Capital, respectivamente, dividiram as considerações do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre o caso: “Nós concordamos e louvamos o trabalho do CMS. Não concordamos com  a redução de serviço de saúde – por constituição, por questões legais e também por questões humanas. Atrás dos 11 volumes que concentram o processo, entre pareceres técnicos, ação popular e versão do município, há a vida dos seres humanos [usuários do SUS]. Não dá para concordar com com o corte”, enfatizou Alessandra.
A operadora do Direito, também aponta que os critérios técnicos adotados pelo município são falhos e que não há monitoramento efetivo sobre a Atenção Primária para justificar a reorganização: “A apresentação está bem feita, bonita, mas faltando verdade. Não temos acesso aos dados. Quando o município abrir os dados, aí sim podemos concordar ou discordar com mais clareza. Houve essa encomenda do corte – o sapato vai ter que caber neste pé – sem que nesses 10 anos de APS tenhamos indicadores fortes o suficiente. Não conhecemos verdadeiramente a população e nem os movimentos – não é só fazer consultas e numerar visita domiciliar. É  pra muito além disso”.
Madalena concordou e pontuou que a finalidade da Promotoria é fiscalizar a implementação de políticas públicas, garantir o direito humano e fundamental à saúde pública: “Vinculado a estes princípios está a preservação e fortalecimento do SUS, sistema criado pela Constituição.  Os Conselhos de Saúde são o controle social, precisam ter poder efetivo de atuação. O CMS se posicionou política e tecnicamente, e a nossa posição é reforçar a materialização do controle social do SUS segundo a Constituição”.
Além disso, a promotora disse que esperava mais da apresentação da SMS: “Uma sugestão é, da próxima vez, trazer atores com poder de decisão para o debate. O financiamento se resolve na esfera política. O município precisa ser chamado para discutir prioridades. Não está claro: por que destinou mais para a casa civil, e não para a saúde?”, questionou.

E os trabalhadores?

Para Mariana, da ESPJV, é fundamental olhar este momento de demissão em massa de trabalhadores e de corte de gastos como uma escolha política. Ela também reforçou o  SUS como uma conquista histórica da classe trabalhadora: “O direito universal à saúde tende a ser naturalizado como algo garantido na Constituição.Mas é, sobretudo, conquista de organização popular, da academia, de partidos, entidades,  sindicatos e movimentos sociais”.
Durante o debate, ao final das exposições, Márcia Teixeira, da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco e pesquisadora da ENSP, discorreu sobre a perspectiva dos trabalhadores demitidos: “Fizeram estudo no impacto de quem são essas pessoas que estarão fora do SUS? Quem vai receber a notícia que está desempregado? Muitos ACS são chefes de família. Fizeram balanços pra entender quem são essas pessoas, sua cor, suas possibilidades?”.
A mesma questão também foi colocada por Eduardo: “Considerando a saída dos cubanos do Mais Médicos, os profissionais cariocas terão possibilidade de realocação dentro do município. As outras categorias  tendem a sofrer muito mais, os ACS e os técnicos. Precisamos estar atentos também a isto, já que o tema de trabalho multiprofissional é muito caro para nosso modo de ver a Atenção Primária no Brasil”. Terminou sua fala com o mote do movimento nestes últimos dias: Nenhum Direito de Saúde a Menos.