Segunda,
30 de março de 2015
Fonte: Blog da Boitempo
Por Edemilson Paraná*
As crises, como soube demonstrar de modo
didático o velho Marx, têm a trágica dádiva de separar o real do ilusório,
trazendo à superfície o que estava encoberto sob a aparência de normalidade. Se
já não esteve suficientemente evidente ao longo de sua trajetória política, em
especial nos últimos 13 anos, o momento difícil pelo qual passa o país
atualmente, desnuda com especial clareza o papel de um importante ator na cena
política brasileira: Lula.
Poucas dúvidas restam quanto à sua disposição
para voltar ao centro da disputa eleitoral em 2018. E não se trata apenas de
vontade pessoal. Seu partido não tem outra opção. Emparedado pela conjuntura,
tendo de gestar à duras penas um pacto político-social que desmorona; apenas
assentado no incomparável carisma, influência e habilidade política de seu
líder histórico, o Partido dos Trabalhadores tem alguma chance de concorrer de
modo competitivo à Presidência. Pudera. Em volta do ex-presidente nada, nenhuma
alternativa real, pode de fato surgir e florescer no interior do PT. É a
própria monumentalidade de Lula – como gestor habilidoso de interesses
hegemônicos – que também impede a produção do novo em seu interior.
Eis a maldição do bonapartismo lulista: se é
verdade que o PT não pode ser concebido atualmente sem ele, é igualmente
verdadeiro que tudo em que o ex-presidente toca acaba por morrer cedo ou tarde.
Em seu nome – que ao longo dos anos deixou de ser meio para se tornar o próprio
fim da política petista, como metonímia da busca pela manutenção do poder à
qualquer custo, tombaram quadros históricos, e é sobretudo em seu entorno que
se articula a blindagem que ora assistimos no âmbito da Operação Lava Jato.
Aponta-se, dessa forma, uma amarga contradição: como sinônimo de sua salvação,
Lula é o maior agente da atual desgraça petista.
Nos últimos meses, sua condição de cerberus da
política brasileira desnudou-se com eloquência. De modo veloz, quase ansioso,
nas mil rotações por minuto que exigem a gestão de qualquer crise, Lula se fez
tricéfalo. Como generoso agente da banca, enquanto silenciava sobre a criminosa
evasão de divisas de ricaços brasileiros no HSBC suíço – muitos deles
financiadores de campanhas eleitorais, “enquadrou” seu partido para que
aceitasse, sem grita, as medidas de ajuste e austeridade levadas à cabo pelo
“Chicago boy” e ex-FMI Joaquim Levy. Não é demais lembrar que, nas últimas
eleições, entre os agitadores do “volta Lula” nos bastidores estiveram
proeminentes representantes de grandes instituições financeiras. Igualmente,
como interlocutor junto ao mais atrelado ao Estado dos setores da indústria
produtiva no Brasil, achegou-se das empreiteiras, em especial da Odebrecht, nos
jatinhos de quem, sabemos, o ex-presidente é presença cativa. Por fim, posou em
abraço com Guilherme Boulos do MTST na entrega de casas do programa Minha Casa
Minha Vida, subiu em palanques com sindicalistas em “defesa” da Petrobras e
convocou o MST – o “exército de João Pedro Stédile” – para a “guerra”.
Em nome de quem combate o cerberus Lula? De
que lado está? Dos bancos, do capital produtivo e das empreiteiras, ou dos
movimentos sociais? Talvez acredite, como antes, ser possível agradar a todos.
Há, no entanto, evidentes contradições de interesses entre tais setores, especialmente
agora. Em tempos de aperto, de recrudescimento dos antagonismos econômicos,
políticos e sociais, em quais saídas apostará realmente? Qual de suas cabeças
diz a verdade, por meio de qual delas mente e confunde?
Por mais curioso que pareça, a resposta não
pode ser outra: em todas e em nenhuma delas. É justamente essa aparente
“ambiguidade” que faz de Lula e do PT o que são: o encantamento fatal, como um
pêndulo, do mito em torno da eterna e irremediável “contradição”, da figura, do
partido e do governo para sempre “em disputa”, ainda que mantendo, ao fim e ao
cabo, e de modo indefinido, intocada a grave estrutura econômica e social do
país. É, pois, falando, ao mesmo tempo, para todos esses setores e para nenhum
deles que Lula habilmente mantém-se como o coringa da política brasileira, a
carta na manga a ser utilizada no momento necessário.
O plano, como metonímia da própria trajetória
dos governos petistas anteriores, está traçado: dois anos de duro ajuste
econômico e concessões à banca, dois anos de acenos ao setor produtivo e
movimentos sociais. Aumento de popularidade. Manutenção no poder. Tudo muda
para permanecer exatamente como antes. Mas os tempos são outros. Nenhuma
fórmula é eterna e o mar não está para peixe. Pouca coisa indica que tal aposta
será bem-sucedida novamente. Em tempos extremos, alguém terá de ceder. É também
por isso que a cabeça (ou as cabeças) de Lula é o prêmio mais desejado pela
oposição à direita, tão bem vocalizada nos microfones na mídia oligopolista.
Por mais previsível que a aposta pareça a se julgar pelo passado recente,
ninguém quer aceitar mais o risco de pagar para ver. A verdade é que, ainda que
isso as tenha favorecido de modo notável, as elites brasileiras, em especial a
financeira, cansaram-se de conversar com um bicho de três cabeças, querem uma
cabeça só: a sua própria cabeça.
Diante desse emparedamento, algo parece claro:
desejando-as genuinamente ou não, Lula e o PT já mostraram que estão dispostos
a sacrificar pouco ou quase nada pelas ditas “reformas estruturais”, tão
necessárias para o superar o círculo vicioso de dependência, vulnerabilidade e
subdesenvolvimento em que historicamente estamos aprisionados. A “Frente de
lutas pelas reformas estruturais”, salutar iniciativa que ora se desenha com a
participação de partidos de esquerda, sindicados e movimentos sociais corre,
portanto, sério risco de ser capturada, simbólica ou faticamente, como
trincheira de defesa de um governo desgastado ou como mais um palanque para
promessas eleitorais vazias, novamente traídas. É o que quer o lulismo.
Quanto aos rumos da esquerda de fato diante
dessa eterna espera por Godot, o outro lado do Atlântico tem fornecido algumas
boas dicas: “que se vayan todos”. Já cruzamos o limite do absurdo. A direita
neoliberal, e as velhas “esquerdas” que, no governo, aplicam de modo análogo
seu pacote de maldades devem ser tratadas igualmente e não como diferentes
faces de um “mal menor” nas bordas do atual arranjo de poder. Precisamos, com
diálogo verdadeiro e sem sectarismos, mostrar à sociedade brasileira que há
saídas reais, concretas e sólidas à esquerda da ordem para o atoleiro em que
estamos metidos, alternativas que coloquem as pessoas e as necessidades sociais
em seu centro, que façam os que tem muito retornar o que obtiverem da sociedade
em prol dos quem tem menos e que, ao contrário daqueles, sempre pagam a conta
dos “momentos difíceis” do país desde o seu início. Por mais que um suposto
senso de “responsabilidade histórica” tenha eventualmente nos colocado no mesmo
palanque de cerberus quaisquer, neste momento a política e a população
brasileira pedem distinções claras. Já passou da hora de sermos apenas uma voz,
forte e uníssona: a voz dissonante.
= = =
*Edemilson Paraná é jornalista, mestre
e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília.