Terça, 31 de março de 2015
Do Observatório da Imprensa
Por Rolf Kuntz* em 31/03/2015 na
edição 844
O fantasma da recessão em 2014 foi exorcizado e sumiu,
graças à mudança de cálculo do IBGE. A economia brasileira cresceu 0,1% no ano
passado, segundo o novo critério, ajustado ao padrão internacional. Foi quase
nada, mas o resultado ficou acima de zero. Nem assim a imprensa ficou
sossegada. “PIB cresce 0,1%, e país adia recessão para 2015”, segundo a
manchete do Globo no sábado (28/3). A mesma profecia apareceu em outros
grandes jornais. O Brasil escapou do número negativo no ano passado, mas os
números conhecidos até agora já indicam um primeiro trimestre no vermelho.
Houve pouca variação no material publicado por esses
jornais, no dia seguinte à divulgação das contas nacionais de 2014. A média
anual de crescimento econômico nos últimos quatro anos, 2,1%, foi a mais baixa
desde o governo Collor. Além disso, o produto por habitante foi 0,7% menor que
em 2013. Além de enfrentar a estagnação econômica, o brasileiro médio ficou
mais pobre.
Todos deram esses detalhes. Houve também comparações com o
desempenho de outros países do Grupo dos 20 (G-20), formado pelas maiores
economias do mundo. Mas ninguém se lembrou de incluir na edição de sábado (28)
a comparação, especialmente significativa, com outras economias sul-americanas.
Entre 2011 e 2014, Bolívia, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru
cresceram a taxas anuais médias superiores a 4%. Os mais dinâmicos desse grupo
cresceram mais de 5% ao ano. Se o desempenho do Brasil, como disseram tantas
vezes a presidente Dilma Rousseff e seus ministros, foi determinado pelas
condições internacionais, como explicar os números desses países, também
exportadores de commodities?
Crescimento prejudicado
Todos os jornais mencionaram também a queda do investimento
no ano passado. O consumo, segundo assinalaram, foi insuficiente para compensar
aquela queda. Muito bem, a redução do investimento contribuiu para puxar para
baixo a economia. Mas pouco ou nada se explorou a consequência de maior
alcance: investimento menor significa menor potencial de crescimento nos
períodos seguintes.
Em 2013, segundo o IBGE, o governo e o setor privado
investiram o equivalente a 20,5% do PIB em máquinas, equipamentos e
construções, incluídas neste grupo as obras de infraestrutura. Em 2014 essa
taxa caiu para 19,7%. Nos dois anos, como vem ocorrendo há muito tempo, o total
investido ficou bem abaixo do padrão observado nas economias latino-americanas
mais dinâmicas – 25% ou mais.
Há anos, além disso, o governo vem reafirmando a intenção de
levar essa proporção a 24% do PIB. Especialistas citados pelo Estado de S.
Paulo preveem uma nova queda neste ano. Se isso se confirmar, o potencial
de crescimento será mais uma vez afetado. Os jornais deram pouca ou nenhuma
atenção a esse detalhe.
Autorizado ou obrigado?
Não há como negar. Pode ser muito chata a leitura de leis,
projetos, medidas provisórias e decretos. Mas editores e repórteres deveriam,
de vez em quando, aceitar essa chateação. Isso evitaria a publicação de
matérias erradas ou muito incompletas. Mais que isso, reduziria o risco de
transmitir, sem saber, recados de interesse de políticos. Faltou leitura, mais
uma vez, quando os jornais noticiaram na quarta-feira (25/3) as pressões para o
governo da União renegociar as dívidas de Estados e municípios com o Tesouro.
A maioria dos grandes jornais apresentou o assunto como se a
Câmara dos Deputados e o PMDB houvessem acuado a presidente, forçando-a iniciar
a revisão dos acordos. Segundo uma das manchetes, a Câmara havia derrotado a
presidente e aprovado a redução dos débitos. Mas havia uma diferença razoável
entre o noticiário e os fatos. Os deputados haviam realmente aprovado um prazo
de 30 dias para a regulamentação de uma lei aprovada em novembro do ano
passado. Um dos jornais mencionou essa lei, na primeira página, como se esta
obrigasse a União a reduzir as dívidas. Também esse detalhe estava errado.
Fato: a lei aprovada em novembro simplesmente autorizou o
governo a renegociar os débitos de Estados e municípios assumidos a partir do
fim dos anos 1990, quando o Tesouro se tornou responsável pelos papagaios
emitidos por administrações estaduais e municipais. O verbo “autorizar” foi
usado várias vezes no texto. Não é preciso recorrer a dicionários para
descobrir a enorme distância entre ser autorizado e ser obrigado a fazer ou a
deixar de fazer alguma coisa.
O governo federal provavelmente renegociaria as dívidas, até
para aliviar a situação de alguns aliados importantes, como os prefeitos de São
Paulo e do Rio. Mas teria de contornar outro probleminha político. A mudança
dos encargos financeiros poderia ter efeito retroativo até a data de assinatura
dos acordos. Em alguns casos, isso praticamente eliminaria a dívida. Do ponto
de vista dos interesses e possibilidades do Tesouro Nacional, o razoável seria
mudar o cálculo dos encargos a partir da renegociação. A propósito, o possível
efeito retroativo da revisão das dívidas também foi omitido na maior parte das
matérias.
O esperneio de prefeitos, governadores e congressistas foi
motivado, antes de mais nada, pelo atraso da regulamentação da lei – um detalhe
facilmente compreensível, quando o governo está voltado para uma prioridade
muito diferente, a arrumação das contas públicas. De toda forma, é preciso
lembrar, a regulamentação seria de uma lei meramente autorizativa. Os políticos
tenderiam, naturalmente, a esquecer esse detalhe. Foi o caso do prefeito do
Rio, Eduardo Paes, quando recorreu à Justiça Federal pedindo a aplicação
imediata da lei e conseguindo uma liminar. Mas editores e repórteres um
tantinho mais atentos deveriam lembrá-lo.
A exceção, nessa cobertura, foi o material do Valor.
“Juristas acreditam”, informou a reportagem, “que a União poderá derrubar a
liminar do Rio porque a lei apenas autoriza, mas não obriga a mudar os termos
dos contratos.” Além disso, há o “entendimento jurídico de que uma lei não pode
interferir em um contrato firmado entre duas partes”.
Dizer como será o final do jogo é outro problema. No fim da
semana um grupo de juízes federais, no Rio, manteve a liminar concedida ao
prefeito Eduardo Paes. Eles conheciam, supostamente, o texto da lei – ou pelo
menos foram lembrados da diferença entre autorizar e obrigar pela Advocacia
Geral da União. A pauta, a partir daí, ficaria mais pesada. Além de acompanhar
a sequência do caso, os jornais teriam de contar como os juízes fundamentaram
sua decisão. Nem sempre os jornais cuidam disso e decisões judiciais
importantes, nem sempre autoexplicativas, permanecem misteriosas para os
leitores.
***
*Rolf Kuntz é
jornalista
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br