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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A ditadura acabou no Brasil. Menos para Mauricio Norambuena: ele ainda recebe tratamento de preso político

Segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Do blogue Náufrago da Utopia

Ele vem sendo mantido em isolamento há 14 anos 
Reproduzo abaixo, na íntegra, a entrevista concedida por Laura Hernández Norambuena ao jornalista Andrés Figueroa Cornejo, denunciando as gritantes ilegalidades e terríveis abusos cometidos no Brasil contra o irmão Mauricio, cuja pena há muito deveria estar sendo cumprida em sua pátria, o Chile. 

Concordo inteiramente com a afirmação de que, hoje, sua condição em nosso país é de um extemporâneo preso político, merecedor da solidariedade de todos cidadãos avessos ao autoritarismo, bem como a de todos os defensores dos direitos humanos. 

A tradução foi efetuada pela equipe do site Adital, à qual agradeço. E os interessados em mais informações sobre o caso poderão obtê-las aqui.

FAMÍLIA DE PRESO CHILENO NO 
BRASIL LUTA POR SUA EXTRADIÇÃO 
Até fitar os olhos do carcereiro dá ensejo a punição!
Quase no limite que divide as cidades de Valparaíso e Viña del Mar, na V Região do Chile, há uma casa vertical e verde, suspensa no topo de um monte mordido pelo Oceano Pacífico. Ali, entrevistei a doutora em medicina Laura, uma das irmãs de Mauricio Hernández Norambuena, conhecido também como Comandante Ramiro, ex dirigente da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR). 

Essa força comportou um dos principais destacamentos que combateu política e militarmente a tirania pinochetista e que, de acordo com diversos analistas, precipitou o pacto interburguês que terminou com o regime cívico-militar de 1973 a 1990, e abriu o período de administrações civis vigente até hoje no país andino. Ambos os sistemas políticos correspondem a formas distintas e funcionais moldadas pela mesma ditadura do capital, em sua atual fase.

Mauricio Hernández é prisioneiro na Penitenciária Federal de Porto Velho, em Rondônia, Brasil, próxima à fronteira com a Bolívia, acusado de ser parte do sequestro do empresário Washington Olivetto. A ação teve motivações políticas de caráter internacionalista e de emancipação social.

É verão no meio da tarde, no Chile, e pela janela o mar provoca lágrimas nos olhos.

Laura, como defines as condições nas quais mantêm cativo Mauricio no Brasil?
Encerrado em isolamento. No Brasil, é o único caso que existe com a duração de 14 anos em semelhantes condições. O sistema de isolamento extremo, no Brasil, é inconstitucional nesse país. De fato, é condenado por todos os organismos de Direitos Humanos existentes. O caso de Mauricio é denunciado por nossa família na Corte Interamericana de Direitos Humanos, e esta entende que é uma condição desumana se for prolongada.

Em que consiste o ‘encerramento em isolamento’?
Mauricio permanece 23 horas do dia sozinho em sua cela, o que atenta contra a essência social dos seres humanos e contra um direito também essencial: é proibido de interagir com seus pares. Conta apenas com uma hora para sair ao sol, ou seja, a um pátio do tamanho de meia quadra de futebol baby. Unicamente, é autorizado o contato com familiares diretos (os quatro irmãos/ãs que restamos). Sua prisão em isolamento brutal provocou, por exemplo, que do terremoto que sacudiu mortalmente grande parte do Chile, em 2010, tenha se inteirado três meses depois de ocorrido.
Há campanhas no Chile para que ele cumpra sua pena lá

E o que diz a Justiça brasileira?
Que ‘as coisas não são assim’, que ‘são as regras do jogo’. Isto é, as autoridades do país tratam de justificar o injustificável. Como família, nos reunimos com psiquiatras de lá, que nos asseguraram que as condições de isolamento de Mauricio são desumanas, sem justificativa alguma, e agridem a integridade psicológica e física de qualquer pessoa.

Mauricio é o único prisioneiro político no Brasil ou existem outras pessoas com essa qualificação?
No Brasil, Mauricio não é considerado um prisioneiro político, legalmente. No entanto, a primeira condenação que receberam os companheiros de Mauricio, juntamente com o próprio Mauricio, em 2002, foi de 15 anos porque diversos agrupamentos políticos latino-americanos fundamentaram as motivações políticas do sequestro do empresário Washington Olivetto (vide aqui), o que foi considerado na primeira decisão. 

Os recursos que resultaram do sequestro eram parte de um planejamento político de caráter internacionalista, uma tradição fundacional de todos os movimentos sérios e comprometidos com a emancipação social da humanidade. Mas, na segunda etapa do julgamento, a promotoria brasileira apelou e a condenação foi duplicada para 30 anos porque foi desestimada a razão política da sua ação, contrariando a deliberação anterior.

De todos os modos, para as e os chilenos, inclusive, independentemente da sua simpatia ou não pelas posições políticas históricas assumidas por Mauricio, ele, sim, tem uma vida militante que avaliza sua conduta eminentemente política. Foi membro da Juventude Comunista e, depois, um dirigente da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), uma força política e militar fundamental na resistência contra a ditadura encabeçada por Pinochet e imposta pela oligarquia chilena e o imperialismo norte-americano. 
Sua extradição nos livraria desta inútil exposição negativa 

Mauricio não foi nunca parte de um grupo de narcotraficantes, de delinquentes comuns ou de ladrões de colarinho branco; não foi nunca lobista entre os interesses das grandes firmas e dos parlamentares de ocasião; não foi nunca integrante da rede criminosa de colusões antissociais, que, atualmente, são a nata do Chile; não foi dono da AFP, banqueiro, nem privatizador de tudo o que existe no país. Foi um lutador antifascista, como tantos membros da resistência na Europa, que enfrentaram o nazismo e o fascismo durante a 2ª Guerra Mundial e em cujos países são reconhecidos como heróis.

O que pedem às autoridades chilenas como família Hernández Norambuena?
Que o governo gere as condições para que o nosso irmão deixe de sofrer um encarceramento desumano. E, no Brasil, solicitamos às organizações e às pessoas que perseguem o melhoramento da condição humana que exijam o respeito dos direitos de Mauricio.

Laura, você e seus irmãos/ãs levam anos visitando Mauricio. Você é doutora em Medicina. Como poderias avaliar o seu estado?
Tentando ser o mais objetiva possível, em geral, bem. Mauricio é professor de Educação Física e se impôs um regime próprio de exercícios diários em sua cela para manter-se em forma, o que impacta positivamente em seu estado de ânimo. Naturalmente, vive em meio a uma permanente ansiedade devido ao isolamento.

Pela distância espacial que existe entre cada uma das visitas que lhe fazemos (na maioria dos presídios nos que tem permanecido e, em particular, no último, a Penitenciária Federal de Porto Velho, em Rondônia, Brasil, próxima à fronteira com a Bolívia), a tramitação burocrática e as dificuldades para chegar até lá tornam mais complexa a possibilidade de vê-lo com a frequência que desejamos. 

Agora bem, ocorrem situações que multiplicam a iniquidade do seu cativeiro. Em uma ocasião, seu carcereiro o acusou de tê-lo olhado nos olhos (!), questão estritamente proibida no presídio. O prisioneiro, quando interage com o carcereiro deve olhar para o chão. Na disputa entre o guarda e Mauricio a respeito de se foi assim ou não, como é óbvio nesse tipo de relação de poder, primou a versão do carcereiro e meu irmão foi castigado com 10 dias de encerramento absoluto em um espaço especialmente desumano. Na seguinte visita, depois dessa punição, Mauricio se encontrava com o ânimo decomposto. 

Consome algum tipo de medicamento psicotrópico?
Mauricio, nem antes nem durante o seu encarceramento necessita de fármacos dessa classe. De fato, ele nunca os aceitou. Mauricio me comenta, isto sim, que os problemas que sofrem os presos, oriundos das condições de uma prisão de segurança máxima, o médico do recinto resolve com diazepam. A respeito, meu irmão me disse que não está disposto a tomar pílulas que bloqueiem seus sentidos nem sua equilibrada apreciação da realidade. Por algumas dificuldades, devido a lesões desportivas da juventude (Mauricio esteve prestes a tornar-se um jogador profissional de futebol), há dois meses, nós solicitamos poder levar um médico especialista da nossa confiança. Contudo, na penitenciária nos disseram que ‘não era necessário’ porque o presídio já conta com um médico.

Para muitas e muitos, não existe ato de liberdade mais radical do que despojar-se dos interesses individualistas e do egoísmo, e lutar pela liberdade e a igualdade do seu povo e de outros povos do mundo. Cabe este princípio no caso de Mauricio?
Perfeitamente. Alguns ex-companheiros e amigos do meu irmão têm nos confirmado o nível de convencimento e a capacidade de convencer de Mauricio em relação a que não existe outro caminho diferente ao da luta contra o capitalismo, para superar a sua natureza desumana. Esta maneira de transcender em outros que solidarizam com a sua presente situação, como família, nos fortalece diariamente. 

O que nos parece em especial potente é o episódio quando meu irmão e os demais que participaram resolveram integrar a equipe de pessoas que realizou o atentado contra Augusto Pinochet, em 1986. Rodrigo Pellegrin (fundador da FPMR e assassinado em 1988) aparece assinalando, em um documentário recente, que ‘não há alegria maior do que dar a vida pelo seu povo’. Pela vida que levou Raúl Pellegrin, eu entendo ‘povo’ como a humanidade oprimida.

Por que acredita que os sucessivos governos civis não conseguem que Mauricio seja extraditado do Brasil?
A esta altura, como família, temos distintas hipóteses. Uma delas é que nenhuma das administrações governamentais que passaram tem em seus parâmetros defender um revolucionário, um internacionalista, um lutador social, cuja história apenas já contradiz seus interesses. Por outro lado, está a fortaleza de Mauricio de propor, com franqueza, a realidade do que aconteceu e do que está acontecendo, assumindo, autocriticamente, tudo aquilo que lhe corresponda, claro. Sobretudo, quando tantas e tantos políticos dizem estarem exercendo seus cargos pelo serviço público, amor ao próximo e outros valores, que não têm nenhuma relação com a sua conduta, como todo o Chile sabe. 

Não há nada que una o meu irmão a nenhum dos governos tivemos depois da ditadura. Claro que alguns membros dos governos saúdam a nossa causa para trazer a Mauricio de volta e dizem que consideram injustas as condições do seu presídio, mas até agora essas declarações não tiveram nenhum efeito concreto. Eu creio que veem Mauricio como uma ameaça política. E não estou referindo-me à luta armada, nem nada deste tipo. Falo da ascendência que ele poderia ter no Chile a respeito das distintas lutas que, atualmente, estão ocorrendo (nos âmbitos da saúde, da água, do mar, das mineradoras, da educação, do povo mapuche; da juventude, das mulheres e dos trabalhadores empobrecidos, etc.). São hipóteses, por certamente.

Finalmente, entre as tantas preocupações das autoridades, nossa causa não deve estar nem em sua lista. Porque, para que Mauricio consiga purgar sua pena aqui e não no Brasil, o governo deve realizar diversas gestões que requerem vontade política, e essa vontade permanece ausente.