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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Não basta barrar a recriação da CPMF para fazer a necessária justiça tributária no Brasil

Segunda, 29 de fevereiro de 2016
Por Aldemario Araujo Castro*
A OAB Nacional, no próximo dia 2 de março, sediará uma reunião multilateral destinada ao estabelecimento das bases da manifestação da sociedade civil brasileira contrária ao aumento da carga tributária pela via da recriação da CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira).


A iniciativa merece aplausos e uma reflexão mais profunda.

Com efeito, a chamada carga tributária bruta, relação entre a arrecadação tributária e o PIB (Produto Interno Bruto), permite identificar, em linhas gerais, quanto da riqueza produzida na sociedade brasileira financia a existência do Estado (nos três níveis da Federação) e de suas múltiplas e variadas despesas públicas. Nessa perspectiva, segundo dados da Receita Federal do Brasil para o ano de 2014 (http://www.receita.fazenda.gov.br), a carga tributária bruta alcançou 33,47% do PIB. Portanto, é possível afirmar que o Brasil (suas instituições estatais e seus gastos), numa ótica tributária, custa cerca de 1/3 (um terço) da riqueza produzida anualmente por sua sociedade.


Subsiste uma questão de extrema relevância na informação apresentada no parágrafo anterior. A carga tributária bruta é uma média e, como tal, esconde a profunda injustiça fiscal presente no sistema tributário brasileiro atual. A rigor, os vários agentes econômicos e setores atuantes na economia brasileira experimentam efetivamente cargas tributárias extremamente díspares. Observam-se, inclusive, a presença de importantes benefícios (ou privilégios) tributários socialmente inaceitáveis que aproximam de zero a carga tributária de certos segmentos socioeconômicos.

São dois os principais defeitos da tributação no Brasil na atual quadra histórica: a) a complexidade excessiva do Sistema Tributário e b) a injustiça da estrutura tributária existente, notadamente em função de definições presentes na legislação infraconstitucional.

A complexidade excessiva decorre dos seguintes fatores principais: a) quantidade de diplomas jurídico-tributários em vigor (alguns milhões!!!); b) frequentes mudanças nessa extensa legislação, notadamente com uma perversa alternância de critérios adotados; c) instituição irracional de obrigações acessórias; d) proliferação de exigências tributárias com regramentos diferenciados e e) opções normativas que brigam com a realidade social e com a capacidade da Administração Tributária de lidar razoavelmente com tais definições.

O outro (e mais importante) defeito da tributação no Brasil, na atualidade, consiste na profunda injustiça observada na estruturação do sistema. Nessa linha, a extensa e multifacetada legislação tributária infraconstitucional em vigor no Brasil viabiliza ou promove: a) uma fortíssima pressão sobre o consumo (e o trabalho, por extensão), aliviando outras bases econômicas (como a propriedade e a renda) e b) inúmeros e perversos benefícios (ou privilégios) fiscais socialmente inaceitáveis.

Segundo dados da Receita Federal do Brasil (http://www.receita.fazenda.gov.br) e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) (http://www.ocde.org), a tributação da base de incidência consumo no Brasil alcança a casa dos 50% da arrecadação total contra: a) 16,2% nos EUA; b) 18,8% no Japão; c) 27,4% na Alemanha; d) 32,6% no Reino Unido; e) 26,6% na França; f) 27,4% na Itália e g) 29,4% na Espanha. Constata-se, ademais, que os segmentos mais onerados pela tributação no Brasil são o consumidor e o trabalhador. Em outras palavras, da sociedade como um todo, as classes médias e populares e os trabalhadores arcam com a maior parte do ônus fiscal. Ademais, a excessiva tributação sobre o consumo implica em significativa oneração do produto, redução da demanda, restrição à produção, redução da oferta de empregos e prejuízo ao crescimento econômico. Conforme vários estudos, a tributação incidente sobre os salários (renda decorrente do trabalho) também atinge patamares alarmantes. Incluindo consumo e renda (impostos e contribuições previdenciárias), a pressão fiscal chega a quase 49% da remuneração justamente daqueles localizados nas mais baixas faixas de renda familiar.

Identificam-se, ainda, uma série de benefícios ou favores fiscais dirigidos justamente para aqueles agentes ou segmentos econômicos com maior capacidade de contribuir para o financiamento dos gastos públicos. Eis, sem pretensão de esgotar o tema, alguns desses expedientes escusos: a) os juros sobre o capital próprio; b) a isenção na distribuição de lucros e dividendos; c) a isenção na remessa de lucros para o exterior; d) a tributação exclusiva na fonte sobre os ganhos e rendimentos de capital; e) a isenção do imposto de renda para investidores estrangeiros no âmbito do mercado financeiro; f) os níveis muito baixos de tributação sobre doações, heranças e propriedade rural; g) a ausência de tributação sobre a propriedade de embarcações e aeronaves (o Brasil possui a segunda maior frota de aviões executivos e o maior conjunto de helicópteros urbanos do mundo) e h) a insuficiente progressividade do imposto de renda.

Concluem-se essas rápidas considerações sobre tema tão amplo e espinhoso acentuando que a questão tributária é uma das mais relevantes no longo e difícil processo de realização dos objetivos fundamentais da sociedade brasileira (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos – art. 3o. da Constituição). Com efeito, o sistema tributário deve ser um dos instrumentos utilizados para a aproximação contínua daqueles fins magnos, justamente retirando parte da riqueza daqueles que podem mais e reduzindo o peso tributário dos que podem menos (o bom e velho princípio da capacidade contributiva). 

Simplesmente impedir a recriação isolada da CPMF, sem nenhuma mudança significativa na perversa estrutura tributária, é um movimento elogiável, mas superficial e claramente insuficiente.

*Aldemario Araujo Castro é advogado, procurador da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de Brasília - UCB e Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília - UCB