Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 26 de maio de 2019

Geisel e o Golpe da Banca — Parte 2 de 3

Domingo, 26 de maio de 2019
Por
Pedro Augusto Pinho

Neste segundo artigo da série, Pedro Pinho relaciona ações promovidas pelo governo de Ernesto Geisel com ênfase na política externa e cultural, bem como no desenvolvimento econômico e tecnológico. Ao questionar sobre a realidade de nossa democracia, o autor aponta questões para que possamos refletir o quanto as causas identitárias (fechadas em si) favorecem o jogo neoliberal, bem como a singularidade com a qual o espectro dito mais progressista de nossa sociedade simplifica os governos militares. 



Geisel e o Golpe da Banca | Parte 2 de 3


Por Pedro Pinho*, para o Duplo Expresso:

Governo Geisel

Ernesto Beckmann Geisel (03/08/1907 a 12/09/1996) presidiu o Brasil entre os dias 15 de março de 1974 e de 1979.

Em breve sumário, procurarei demonstrar sua condição nacionalista (tendo efetivamente o Brasil acima de tudo) que caracterizou seu mandato. Não estarei com isso defendendo – e tenho convicção que o luterano Geisel também não apoiou – a covardia da tortura e os infamantes assassinatos ocorridos no período de sua gestão. A interferência no II Exército (São Paulo) é um exemplo desta oposição do Presidente.

Há a ótica única, sobretudo pela esquerda identitária que tem apoiado no Brasil e no exterior o jogo do neoliberalismo, de ver em todos governos militares a negação democrática e o viés fascista.

Pergunto: Temos democracia no Brasil? Temos democracia nas colônias financeiras (ainda que nações com representação na Organização das Nações Unidas – ONU –, e com substituição periódica de dirigentes)? Terão maior participação nos destinos nacionais os habitantes desses países do que aqueles que vivem nas “ditaduras” russa, chinesa ou venezuelana? O que diferencia um cidadão turco de um haitiano?

Dividirei o Governo Geisel nas ações da política exterior com a política cultural, e da política tecnológica industrial. Tratarei das legislações formadoras da cidadania e farei comentários sobre a organização do Estado. Não pretendo ser exaustivo em quaisquer dessas áreas.

[Clique na imagem abaixo para melhor visualizá-la]
Ernesto Geisel – 15/mar/1974 por © O Estadão

Política Externa e Cultural
A política externa mostra um aspecto da soberania. Sua independência não é uma agressão a outros Estados Nacionais, mas, ao contrário, um caminho para a multipolaridade, um convívio internacional pacífico.

A política exterior foi conduzida, por todo mandato Geisel, pelo Embaixador Antonio Francisco Azeredo da Silveira. Este promoveu verdadeira mudança no Itamarati. O Brasil saiu do alinhamento automático aos EUA para a análise de seus interesses guiando cada posicionamento nas questões internacionais.

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo de abril de 1974, que derrubou o salazarismo, da Revolução dos Cravos em Portugal. Também foi o primeiro a reconhecer o MPLA Partido do Trabalho como representante do Estado Angolano. O Brasil reatou relações com a República Popular da China e ampliou sua representação na África e na Ásia.

Celebrou o Acordo Nuclear com a Alemanha e denunciou o Tratado Militar, em 1977, com os EUA. Buscou a defesa da gestão brasileira da nossa Amazônia, respondendo às agressões de entidades estrangeiras de “defesa da ecologia”, firmando com a Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, em 1978, o Tratado de Cooperação da Amazônia.DE1

Em sua tese de doutorado, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “A política externa (in)dependente em três tempos: autonomia e crises nos governos Quadros/Goulart, Geisel e Lula/Rousseff”, em 2018, Leonardo Pace Alves escreve sobre o período Geisel:

O Brasil não só se percebia como uma “potência emergente”, mas também parecia ser tratado dessa forma por alguns países. A assinatura de memorandos de entendimento com as  potências  industrializadas (França, Inglaterra,  Alemanha  Ocidental,  Japão  e EUA)  tinha  o efeito  de  corroborar  essa leitura.  Esses  mecanismos  de  consulta bilaterais  visavam,  entre outras coisas, à facilitação da gestão das divergências tópicas, as quais o governo Geisel tinha consciência  de  que  tenderiam  a  crescer  como  resultado  da  própria  ascensão  do  país.  O acercamento  a  esses  países também  objetivava  reduzir  a  dependência  do  Brasil  vis-à-vis  os EUA,  diversificando-a.
(…) ao  proporcionar  a  abertura  de  novos  mercados  por  meio  da  universalização dos  contatos  internacionais,  a  diplomacia  concorria  para  alavancar  o  desenvolvimento  da economia  brasileira,  cuja  transformação  estrutural  se  tornou a  principal  meta  do  II  PND  a partir  de  1975.

Em 1976, o Brasil participou da Conferência Internacional de Apoio aos Povos do Zimbábue (antiga Rodésia) e da Namíbia, realizada em Moçambique, e da Conferência Mundial de Ação contra o Apartheid, realizada na Nigéria.

Em relação aos aspectos culturais, muitas vezes esquecidos na definição do Estado Nacional, iniciarei com uma referência a Getúlio Vargas.

Não foi apenas a presença de Heitor Villa-Lobos e seu imenso projeto de canto orfeônico nas escolas públicas, nem a presença de Carlos Drummond de Andrade, no Gabinete Gustavo Capanema,[DE2] ou, ainda, a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), mas o suplemento dominical “Pensamento da América”, que circulou em A Manhã, jornal oficial do Estado Novo, de agosto de 1941 a fevereiro de 1948, que mostra a projeção cultural do Estado Brasileiro em seus vizinhos americanos, incluindo os EUA, divulgando um “espírito pan-americano”.

Esta ação de Vargas está retratada em América Aracnídea, de Ana Luiza Beraba (Civilização Brasileira, RJ, 2008) e mostra a compreensão e a dimensão, dadas pelo nosso primeiro estadista, da amplitude na compreensão da soberania.

Geisel voltou para dentro do país a dimensão cultural criando a Fundação Nacional de Artes – Funarte – em 1975. O acervo das manifestações folclóricas brasileiras, que é de extraordinário valor nas mais diversas dimensões, deve-se à equipe congregada na Funarte e foi, em sua quase totalidade, construído nos Governos Geisel e Figueiredo.

A Funarte esteve presente em todo território nacional, em pesquisas, em espetáculos, na formação de bandas musicais, desenvolvendo uma, até então inédita, ação do Estado para registro e difusão da cultura brasileira.

A permanente oposição das mídias comerciais a um projeto deste porte evitou a mobilização popular pela manutenção e crescimento das ações da Funarte. Não ficarei surpreendido se o Governo Bolsonaro extinguir a Funarte, distribuindo por entidades descentralizadas (e até privadas), seu acervo de importância imensurável para a nacionalidade brasileira.

É pertinente tratar, neste universo cultural, da ação das mídias.

Em 1941, Henry Luce, proprietário do complexo de comunicações que tinha, entre outros, as revistas Time, Life e Fortune, instado por David Rockefeller, convocou os estadunidenses a “aceitar de todo o coração nosso dever e oportunidade, como a nação mais poderosa do mundo, o pleno impacto de nossa influência para objetivos que consideremos convenientes e por meios que julguemos apropriados” (Herbert I. Schiller, O Império Norte-americano das Comunicações, Vozes, Petrópolis, 1976).

Este deep state dos EUA sabia que a luta do imperialismo não se restringia a aspectos econômicos, mercantis e financeiros. Como será um slogan posteriormente muito divulgado, qualquer dominação precisa “conquistar corações e mentes”.  É parte do que denomino pedagogia colonial.

A censura prévia vinha desde (Humberto de Alencar) Castello Branco. Na verdade, sempre existiu a censura na comunicação de massa, desde quando ela se assumiu como atividade comercial, suplantando ou afogando qualquer viés cultural. Em 1968, informa Nelson Werneck Sodré (Síntese de História da Cultura Brasileira, Bertrand Brasil, RJ, 1999), o Congresso Mundial das Sociedades de Autores e Compositores, em Viena, apelara aos 34 países ali representados que oferecessem adequada proteção contra a “destruidora força do rádio e da televisão”.
Por algum tempo houve certa ambiguidade, mais em edições de livros e músicas do que na imprensa, em todas suas formas, onde espaços e tempos são calculados em valores monetários.

Lembro meu primeiro dia de “foca”, em 1964, nos Diários Associados, à rua 7 de abril, em São Paulo, quando o chefe de reportagem me ensinou: “seja objetivo, evite adjetivo, responda apenas o “que”, “quem”, “onde”, “quando” e, se for o caso, “porque”. O espaço é que paga nosso salário”. Esta última afirmação, no caso dos Associados, tinha mais do que uma interpretação (!).

A imprensa, principalmente a escrita, nos anos 1970, administrava uma tensão objetivando sua economia empresarial. Foi o período de crescimento do Sistema Globo, eliminando seus concorrentes. Apenas na área da televisão recordemos a saída da TV Excelsior (1970), TV Rio (1977), TV Tupi (1980) e as sucessivas mudanças de controle da TV Record.

Desenvolvimento Econômico e Tecnológico
Na verdade, bastaria “Desenvolvimento”, como subtítulo. Mas de tal forma, nestes tempos da semântica da banca, restringiu-se o conceito de desenvolvimento, algumas vezes, por incrível que pareça, pelo indicador inexpressivo da pontuação das Bolsas de Valores Mobiliários, que julguei melhor acrescentar (consciente de estar também limitando) econômico e tecnológico.

De acordo com os dados estatísticos do IBGE e do Banco Central do Brasil, o crescimento médio anual do Produto Interno Bruto (PIB) nacional foi, para o Governo Geisel, 6,37%. Embora a Carta IEDI – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial – de 18/04/2019, assinale que “já nos anos 1970, o setor manufatureiro começa a perder participação no PIB”, mesmo esta perda não sendo homogênea, nem em intensidade nem nos campos de ação.

As mais importantes iniciativas de Geisel se deram nas áreas das tecnologias de ponta para o século XX, que avançariam no século XXI: informática, nuclear e novas energias, onde se destaca o pró-álcool. A tecnologia aeroespacial deveu-se ao Triunvirato Militar que mediou os períodos Costa e Silva e Médici. Faltou, no entanto, a biotecnologia.

Vou ater-me apenas à informática. É um caso exemplar de manutenção do nosso estado colonial. Se nenhuma outra razão existisse para confirmar o golpe, o futuro da informática daria o mais forte motivo.

Em dezembro de 2017, o presidente Donald Trump apresentou a Estratégia Nacional de Segurança para os Estados Unidos da América (EUA), de onde transcrevo em tradução livre:

A resposta da América aos desafios e oportunidades da era cibernética determinará nossa prosperidade e segurança futuras. Durante a maior parte da nossa história, os Estados Unidos conseguiram proteger a terra natal controlando seus domínios terrestre, aéreo, espacial e marítimo. Hoje, o ciberespaço oferece aos atores estatais e não-estatais a capacidade de fazer campanhas contra os interesses políticos, econômicos e de segurança dos Estados Unidos sem nunca passar fisicamente pelas fronteiras. Os ataques cibernéticos oferecem aos oponentes oportunidades de baixo custo para danificar ou interromper seriamente pontos críticos da infraestrutura, prejudicar nossas empresas, enfraquecer nossas redes federais e atacar os dispositivos que os americanos usam todos os dias para se comunicar e realizar negócios. A vulnerabilidade da infraestrutura dos EUA a ataques cibernéticos, físicos e eletromagnéticos, significa que os adversários podem interromper o comando e controle militares, as operações bancárias e financeiras, a rede elétrica e os meios de comunicação.

A República Popular da China criou, em setembro de 1987, a empresa Huawei, que domina hoje, em 2019, a indústria mundial de equipamentos de informática e de telecomunicação.

Em artigo publicado na revista História, Ciência e Saúde – Manguinhos, em 2013, Ivan da Costa Marques, professor na UFRJ e ex-presidente da Computadores Brasileiros – Cobra, afirma:

No começo de 1980″, nos informa  “o Brasil foi um dos poucos países em que empresas sob controle local conseguiram suprir uma parte significativa do mercado interno de minicomputadores com marcas e tecnologias próprias. Equipes de engenheiros e técnicos brasileiros haviam absorvido a tecnologia de produtos originalmente licenciados e efetivamente conceberam e projetaram sistemas completos (hardware e software) de minicomputadores e diversos outros artefatos de computação, colocados no mercado por empresas brasileiras com sucesso econômico e técnico.

Deste mesmo artigo de Costa Marques, que teve ativa participação em diversos eventos na área da informática, transcrevo pela exatidão e por conhecer a seriedade e correção do autor:

Na primeira metade da década de 1970, professores, alunos de pós-graduação e pesquisadores projetaram diversos produtos de informática. Nesta mesma época, alguns birôs estatais de processamento de dados investiram em laboratórios de produtos. Nos laboratórios de organizações militares, artefatos de informática recebiam atenção especial.
Havia uma grande diversidade de interesses e abordagens, mas praticamente todas as intervenções, fossem elas nos congressos ou nos periódicos, compartilhavam a ideia de que dominar a tecnologia dos computadores era uma questão estratégica para um país como o Brasil.

Em 15 de julho de 1976 é publicada, no Diário Oficial, a Resolução 1, da Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico de Dados (CAPRE). Ali fora anunciada a política nacional de informática para os minicomputadores. Havia então o perfeito entrosamento entre o secretário-executivo da CAPRE – Ricardo Sauer, gestor da reserva de mercado na informática –, e o presidente do BNDE – Marcos Vianna, gestor do programa de substituição de importações.

Posição oposta, favorável às empresas estrangeiras, principalmente à IBM, era defendida por José Dion de Melo Teles, do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e, no governo Figueiredo, presidente do SERPRO.

Ponto de inflexão na nossa história da informática foi a Comissão Cotrim, criada em dezembro de 1978, com elementos do Serviço Nacional de Informações (SNI), então conduzido pelo general Figueiredo, do CNPq e do Ministério das Relações Exteriores, de onde saiu o embaixador Paulo Cotrim, coordenador da Comissão.

No XXVIII Simpósio Nacional de História, realizado em Florianópolis, em julho de 2015, Marcelo Vianna apresenta o trabalho “Segurança Nacional e Autonomia Tecnológica – o avanço do Serviço Nacional de Informações sobre o campo da Informática brasileira (1978-1980)”, onde se lê:

O  processo  de  intervenção  realizado  pelo  Serviço  Nacional  de  Informações (SNI) no campo  da  Informática  brasileira  entre  os  anos  de  1978  e  1980  teve  como principal  efeito afastar  os  condutores  da  Política  Nacional  de Informática  (PNI) através  da  criação  de  um novo  órgão  gestor,  a  Secretaria  Especial  de  Informática  (SEI), pelo Decreto n.º 84.067, de 08.10.1979.

Tullo Vigevani (O Contencioso Brasil X Estados Unidos da Informática, Editora Alfa Omega-EDUSP, SP, 1995) esclarece:


A análise ex post facto permite iniciar um esboço de interpretação das razões do lento e progressivo debilitamento do bloco da Política Nacional de Informática. A intervenção dos militares dos órgãos de segurança deu-se com a implícita retirada dos órgãos econômicos e de planejamento.

Do artigo citado de Costa Marques:
Sem constrangimento, os coronéis do SNI interrogaram de forma intimidante um grande número de profissionais de informática e grampearam seus telefones. E, logo, instalou-se entre estes um tal clima de medo que aos mais irônicos inspirou até brincadeiras de autêntico humor negro.

Voltando a Vigevani, ele se refere ao pessoal burocrático, substituindo técnicos, favoráveis à “internacionalização da economia”.

Já no governo Figueiredo, o Ministro das Comunicações, coronel Haroldo Corrêa de Mattos, que se colocara a favor das pretensões brasileiras no contencioso com os EUA, “controlar o capital é condição necessária, mas não é suficiente” (Estado de S. Paulo, 11/02/1979) passa a criticar a lei para informática, abrigando os grupos brasileiros que se articulavam com interesses econômicos e políticos estadunidenses (entrevista ao Jornal do Brasil, 01/09/1984).

A linha geral adotada pelo presidente Figueiredo foi a da crítica ao protecionismo, à reserva de mercado, à substituição das importações.

Fica evidente a radical mudança na gestão brasileira da informática, do Governo Geisel para o Figueiredo. Justamente na tecnologia que provocou a mais profunda alteração que a sociedade conheceu nos últimos cinquenta anos e diferencia nações soberanas de nações colônias. Em muito demonstra a situação dependente que se encontra o Brasil hoje.

Propaganda no Jornal do Brasil de 12 de julho de 1984 comemorando os dez anos da empresa nacional da área da Informática


* Pedro Augusto Pinho é avô, administrador aposentado.
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DE1 – Organização do Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA  |  ata e avaliação do Seminário Internacional “O Futuro do Tratado de Cooperação da Amazônia” , em Manaus (BRA), 13 a 15 de agosto de 2002, do acervo do Instituto Socioambintal – ISA.

DE2 – Criado em 1930, o Ministério da Educação e Saúde Pública, foi ocupado inicialmente por Francisco Campos até julho de 1934, quando assume Gustavo Capanema, que permanecerá no cargo até 1945, apadrinhado por Alceu Amoroso Lima, liderança intelectual representativa do pensamento católico. Como ministro, cerca-se de modernistas e intelectuais como Carlos Drummond de Andrade (chefe de gabinete), Mário de Andrade (autor do anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e Rodrigo Melo Franco de Andrade (responsável pela implantação do SPHAN e seu diretor por trinta anos). Já no Estado Novo de Vargas,  encaminha ao Congresso o Plano Nacional de Educação em 1937 e inicia as reformas de ensino, de níveis (primário e secundário) e modalidades (ensino técnico profissional: industrial, comercial, normal e agrícola), em 1942.

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