Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 31 de maio de 2020

A ganância do capital monopolista internacional e o comprometimento da democracia

Domingo, 31 de maio de 2020

Por
Salin Siddartha

O objetivo do capital monopolista internacional é lucrar o máximo possível, deixando de lado as questões éticas. Preocupa-se financeiramente apenas com os grandes acionistas, que, por sua vez, pressionam-no para apresentar resultados, já que, empresarialmente, os interesses dos investidores estão acima dos demais interesses. Provém daí a reação em cadeia que resulta na   exploração dos povos da sociedade contemporânea.
As empresas mais sofisticadas querem fabricar produtos refinados em quantidade cada vez maior, pagando menos pela relação trabalhador/hora de trabalho; elas não existem para servir o bem público, e sabem que, quase sempre, contam com o beneplácito das supremas cortes dos países capitalistas, que aceitam os seus recursos e apelações. Enquanto isso, o povo só tem a oferecer sua mão de obra barata. Em diversas nações subdesenvolvidas, o salário chega a ser 0,3% do preço no varejo da mercadoria que os operários fabricam. Essa oportunidade leva as transnacionais e as multinacionais a não atuar em um país em que julguem ser os salários “altos demais”.
Na busca pela riqueza, elas criam a destruição do ser humano. Há um descaso pela segurança alheia: nos últimos dez anos, o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%, nos Estados Unidos, um estudo do Instituto Nacional do Câncer (NCI, na sigla em inglês) afirma que “toda a população dos EUA é exposta diariamente a numerosos produtos químicos agrícolas, muitos destes suspeitos de conterem propriedades cancerígenas ou atuarem como disruptores endócrinos”, ademais, as pessoas ingerem antibióticos ao consumirem carne, levando-as a correr riscos que comprometem o sistema imunológico – as grandes empresas violam normas sobre alimentos e remédios. Fábricas despejam dejetos nos rios, lagos e mares, são displicentes em relação a vazamentos de petróleo e substâncias químicas perigosas, assim como relapsas em relação a outros graves acidentes comprometedores do sistema ecológico e da vida dos moradores, tal como já ocorreu, no Brasil, com a empresa Vale. Elas são incapazes de seguir as normas sociais de conduta, principalmente se a chance de ser descobertas e a multa que poderão vir a ter de pagar forem menores que o custo de seguir a lei (até nisso, elas se submetem à lógica empresarial da relação custo/benefício). Especialmente no caso da empresa típica extrativista, que se revela desperdiçadora e abusiva em suas atividades, ela retorna para a natureza as substâncias altamente poluentes de que faz uso na sua atividade exploratória, trazendo prejuízo à biosfera e deixando um legado de veneno e ruína no ambiente para as futuras gerações.
Apesar de nem todo produto poder ser fabricado de forma sustentável, o sistema em nada se importa quanto a isso, haja vista os grandes acionistas quererem cada vez mais dinheiro das empresas onde investem seu capital (é, de certa forma, natural – afinal, quem, a bem da verdade, adquire ações de uma empesa preocupado em saber o quanto ela se dedicará a praticar atitudes que visem ao bem comum dos seres humanos?). Tanto assim que, sempre que ocorre um grande atentado ou uma grande catástrofe, o primeiro pensamento que vem à mente do executivo da empresa financista especuladora é: “Quanto o ouro subiu?” Incendeiem-se poços, e o preço do petróleo subirá; enfim, na devastação, há excelentes oportunidades de ganhos.
Cabe ao Estado regular o funcionamento do capital monopolista internacional, a fim de equilibrar a relação de forças, evitando a desproporcionalidade dos efeitos deletérios sobre a proteção dos seres humanos, entretanto, se não for para socorrer os bancos e o próprio capital monopolista, o sistema não quer nem pensar em ações do Estado. Nas últimas cinco décadas, tiraram-se muitas coisas da tutela pública e as passaram para a propriedade privada, é por essa razão que as instituições públicas são administradas com prejuízo, sem dúvida, proposital. Há, inclusive, intelectuais orgânicos do sistema defensores de que, um dia, tudo seja privatizado. É que o sistema aspira a que tudo seja propriedade privada.
Na gana de seduzir os povos para um consumismo cada vez maior, conseguem manipular os consumidores para o desejo de adquirir seus produtos, gerando uma sociedade cujas camadas médias baixas e as categorias pobres e desempregadas ficam psicologicamente doentes, depressivas e agressivas ante a impossibilidade de vontades insatisfeitas, sem conseguir canalizar politicamente a insatisfação que têm devido à manipulação ideológica bem sucedida que as classes dominantes efetuam sobre as classes dominadas. Então, dão vasão à catarse religiosa ou ofensiva ao semelhante, há um a um acréscimo do número de assaltantes e pessoas corrompíveis, aumentando o número de presidiários e hospitalizados em manicômios, que se encontram alijados do convívio social.
Quanto mais informação o grande capital souber sobre o consumidor, mais criativa será a estratégia de comunicação utilizada. As empresas de marketing empregam especialistas e psicólogos de que precisam para desenvolver seus produtos. Nessa avidez pela maximização dos lucros, compromete-se qualquer ética a título de divulgar bens de consumo da forma mais criativa possível para despertar os desejos que não serão realizados pela maioria da população. Nesse afã, fornecem uma lista de “virtudes” e um papel social para preencher o estilo de vida das pessoas de um país.
Como a meta da multinacional é aumentar o faturamento e a participação no mercado, transforma os cidadãos em consumidores inconscientes de produtos que não desejam, para tanto, desenvolve vontades e falsas necessidades, impõe a filosofia da futilidade e volta a atenção das pessoas para aspectos vãos da vida, como o consumo de modismos, de grifes. Forja o ideal de ter indivíduos cujo senso de valor seja a quantidade de desejos que conseguem satisfazer. Para tanto, grandes setores da economia, relações públicas e propaganda se destinam a encaixar pessoas no padrão almejado.
A sofisticação no modo de produção exploratório chegou a tal ponto que as multinacionais caminham no rumo de, aos poucos, deixarem de produzir bens, para produzir significado de grife, de marca, e as relações interpessoais são todas comercialmente arbitradas por um marketing disfarçado, que acontece a todo momento à nossa volta, fora do “merchandising” tradicional.
Nem o patenteamento da vida e de seus aspectos mais básicos e fundamentais escapa a essa estratégia de domínio. As multinacionais, com o passar do tempo, serão proprietárias da estrutura da vida patenteada, visto que os organismos vivos produzidos em laboratórios podem ser patenteados como propriedade privada. Então, a pesquisa científica moderna abandona a busca pela verdade e a substitui pela busca do que for lucrativo, transformando os genes que desenham o mapa da raça humana em verdadeiros tesouros a ser explorados. Algumas multinacionais patenteiam os genomas de todos os seres vivos do planeta, o que faz a vida também passar a ser uma mercadoria, algo disponibilizado para ser vendido, e o mercado é o juiz de tudo.
A fim de encobrir esse procedimento maquiavélico, a censura não-oficial é empregada como ferramenta de contenção de denúncias que possam abalar a falsa credibilidade legitimada pelo sistema. Dessa forma, as informações são filtradas por uma mídia associada a seus patrocinadores. Como diz o velho ditado: “quem paga a banda escolhe a música que ela toca”. Desse mesmo modo, quem paga às emissoras de rádio e TV, assim como à imprensa em geral, diz o que é notícia, e aquilo que dizem passa a ser a verdade. Para eles, não existe princípio que esteja acima do dinheiro.
A estruturação dessa censura oficiosa assume aspectos tirânicos. Aliás, as multinacionais toleram as tiranias e apoiam-se nas estruturas militarizadas dos regimes autoritários e neofascistas, que, por sua vez, as livram dos esquerdistas mais “perigosos”, eliminando-lhes os problemas e aumentando, portanto, as oportunidades de investimentos. De fato, a busca de rendimentos financeiros das grandes empresas se sobrepõe a qualquer princípio moral, até mesmo negociam com inimigos do sistema, mesmo que sejam tiranos, regimes políticos deploráveis e, inclusive, terroristas.
Na prática do capital monopolista internacional, para dominar governos não é mais preciso golpe de Estado nos moldes tradicionais, porque, como as multinacionais tornaram-se globais, os governos perderam o controle sobre elas e se tornaram impotentes. Então, o sistema a que se subordina a nova ordem mundial atual tem o poder de substituir a política e os políticos, porém, como não é função das grandes empresas decidir o que é socialmente responsável (afinal, não é o que os mega-acionistas pedem a elas), essa decisão é dada aos governos e aos mecanismos dessa ordem internacional. São as organizações multilaterais (ONU, OEA, União Europeia, ALCA, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, FMI, Mercosul, OTAN etc.) as encarregadas dessa tarefa, funcionando como a nova governança mundial, e os governos de todos os países – quer dizer: há uma só governança, contudo muitos governos submetidos a cumprir esse papel. Não é possível existir democracia com tantas multinacionais tendo tanta riqueza e poder. Isso leva a que elas não prestem contas ao processo democrático.
No entanto não existe uma só indústria que seja sustentável. Esse é o porquê de o capital mais avançado pensar em partir para outra “revolução industrial”, que lhes permita atingir a sustentabilidade. Para atingir tal meta, é que as indústrias passaram a trabalhar, atualmente, com reciclagem, e, recentemente, o capital monopolista internacional passou a investir em favor do meio ambiente como mais uma forma de obter rendimento máximo. É o capitalismo mexendo-se para manter-se de pé. Não foi à toa que a ONU adotou o lema “It’s Time To Renew” – “É Tempo de Renovar”.
Espertos, esses representantes do sistema capitalista na nova governança mundial.
Cruzeiro-DF, 30 de maio de 2020
SALIN SIDDARTHA
========
Este artigo foi publicado originalmente nesta data (31/5) no site Por Brasília.