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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 22 de maio de 2020

MP 966 quer livrar da cadeia os operadores do golpe de trilhões?

Sexta, 22 de maio de 2020
Da Auditoria Cidadã da Dívida

Maria Lucia Fattorelli*
O Congresso Nacional aprovou recentemente a PEC 10, promulgada como Emenda Constitucional 106/2020, a qual incluiu um GOLPE FINANCEIRO DE TRILHÕES (i) contra as finanças públicas do país.
– Em plena pandemia do coronavírus, entre as medidas destinadas a facilitar pagamentos e contratações, a referida PEC 10 incluiu grave autorização para que o Banco Central opere no mercado secundário (de balcão), atuando como um mero agente independente, em condições extremamente temerárias:
– sem limite de valor, podendo a operação atingir trilhões de reais, como informou o presidente do Banco Central aos senadores (ii), e em estudo publicado pela IVIX Value Creation (iii) ;
– sem apresentação do estudo de impacto financeiro e orçamentário;
– sem regulação alguma, como ocorre na Bolsa de Valores;
– sem supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou qualquer órgão;
– sem os devidos cuidados relacionados à natureza dos papéis privados a serem adquiridos pelo BC, podendo incluir papéis acumulados na “carteira podre” de bancos há 15 anos, como já noticiado pela IVIX Value Creation;
– sem identificar o nome dos beneficiários da operação, que são mantidos em sigilo (iv);
– sem obedecer aos procedimentos mínimos recomendados pela Anbima (v) para negociações com títulos privados;
– sem a apresentação de uma justificação ou motivação minimamente plausível;
– sem limite na geração de gasto orçamentário ou aumento brutal do endividamento público brasileiro, que recairão sobre toda a sociedade.

A autorização aprovada pelo Congresso é tão estapafúrdia, que certamente gera enorme insegurança para aqueles funcionários do Banco Central que terão que executar os procedimentos administrativos necessários à concretização das operações que poderão alcançar vários trilhões de reais e que, caso haja uma investigação, poderão ir parar na cadeia.
Isso ficou evidente durante a tramitação da PEC 10 no Congresso, quando também tramitava a MP 930, cujo Art. 3º colocava diretores e alguns servidores do Banco Central acima da Lei de Improbidade Administrativa, ou seja, ficariam imunes a investigações relacionadas à sua atuação, a não ser em caso comprovado de dolo ou fraude, o que dificilmente se consegue comprovar no caso das sigilosas operações financeiras!
A intenção da MP 930 era dar total tranquilidade para que os operadores do Banco Central agissem de forma autônoma e independente (embora o projeto (vi) de “Independência do Banco Central” ainda não tenha sido aprovado), em especial diante da autorização para que o Banco Central opere de forma altamente temerária às finanças públicas, podendo comprometer vários trilhões de reais!
A justificativa para colocar a diretoria do Banco Central e alguns servidores acima da Lei foi comentada pela autoridade monetária em notícia publicada pelo jornal Valor Econômico (vii), a qual explicitava que a:
“A instituição aponta que a maior proteção legal proposta evita distorções e garante atuação autônoma e técnica do órgão.” (…) “intervenções diversas nos mercados aberto e de câmbio e adoção imediata de outras ações a cargo da autoridade monetária, impondo-se garantir a necessária autonomia operacional à atuação dos integrantes da diretoria colegiada e dos membros das carreiras do Banco Central do Brasil”.
O fato de permitir que o Banco Central atue de forma autônoma em relação aos interesses do país, e com seus membros acima da Lei de Improbidade Administrativa, justamente quando a então PEC 10 (convertida em EC 106) permitia a atuação do Banco Central em mercado de balcão, podendo comprar trilhões de papéis podres acumulados nos bancos há 15 anos, evidenciou a ligação entre os temas e despertou indignação de vários senadores.
Se as intervenções realizadas no mercado financeiro e de câmbio pelos agentes do Banco Central fossem realizadas dentro dos limites das leis, e visando os interesses da economia do país, não haveria justificativa para que os referidos operadores ficassem inatingíveis à lei de improbidade administrativa! Em outras palavras: se a operação de trilhões inserida na PEC 10 fosse algo regular, qual a necessidade de imunidade para diretores e alguns funcionários do Banco Central?
Essa dúvida levou o governo a revogar o Art. 3º da MP 930 (viii) , caso contrário a operação de trilhões inserida na PEC 10 enfrentaria dificuldades para a sua aprovação no Senado.
Assim, a revogação daquela imunidade explícita aos agentes do Banco Central que constava da MP 930 buscou amenizar as reações contrárias à PEC 10 no Senado e aliviar a suspeita de acobertamento de irregularidades flagrantes decorrentes da natureza peculiar das operações no mercado de balcão que estavam sendo autorizadas na referida PEC.
O objetivo foi alcançado, pois a PEC 10 foi aprovada e promulgada a EC 106, embora o dispositivo que autoriza a atuação do Banco Central no mercado de balcão esteja sendo objeto de questionamento, junto ao STF, por meio da ADI 6417 proposta pelo Partido Cidadania.
Nesse contexto, ressurge a imunidade civil e administrativa para os agentes públicos em geral, com a recente MP 966, objeto de pelo menos duas ações diretas de inconstitucionalidade apresentadas ao STF, segundo matéria da revista Consultor Jurídico (ix).
Para o partido Rede Sustentabilidade, a MP 966 “é verdadeiro salvo-conduto para o cometimento de crimes”Para o partido Cidadania, É patente a inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020 em sua totalidade, tendo em vista que todo o diploma legal em questão parte da premissa da restrição da responsabilidade civil e administrativa aos casos de dolo ou de erro grosseiro, fato que é agravado pela previsão de o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”
A proposta legislativa de colocar agentes públicos acima da Lei de Improbidade Administrativa, justamente quando se acabou de autorizar a compra, pelo Banco Central, de papéis podres em poder de bancos, com evidentes danos imensuráveis ao erário público, é a própria confissão da ilegalidade dessas operações (entre outras) que desviam grandes volumes de recursos públicos sem justificativa, sacrificando o orçamento público para garantir lucros cada vez maiores aos bancos, às custas da pobreza e miséria, que aumentam de forma galopante no Brasil!
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i Golpe de trilhões em plena pandemia, disponível em https://auditoriacidada.org.br/conteudo/golpe-de-trilhoes-em-plena-pandemia/
iv A prestação de contas mencionada na PEC 10 limita-se à apresentação de um pacote de números, sem identificar os beneficiários e o detalhamento dos ativos financeiros negociados.
v Parecer de Orientação 11/2008
viii A revogação do Art. 2o da MP 930 se deu pela edição de outra Medida Provisória: MP 951

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*Maria Lucia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida.