Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Trump e a escalada do desprezo pela dignidade da pessoa humana

Por
Aldemario Araujo Castro*

Brasília, 4 de fevereiro de 2017

O senhor Donald Trump, atual Presidente dos Estados Unidos da América, pontua muito bem em praticamente todos os quesitos caracterizadores do pior da espécie humana, tudo fortemente agravado pela condição de deter uma quantidade significativa de poder político em escala global.

Ao longo de sua vida, e especialmente nas recentes eleições presidenciais americanas, o senhor Trump sustentou (e sustenta) um discurso de medo, ódio, intolerância e discriminação em relação a inúmeros setores e segmentos sociais. Desrespeitou (e desrespeita) as mulheres, os negros, os latinos, os imigrantes e os refugiados. Atacou (e ataca) jornalistas e opositores. Utilizou (e utiliza), com abundância, palavras e expressões agressivas e de baixo nível. Preferiu (e prefere) o ataque pessoal ao bom e instigante debate de ideias (aliás, não parece dotado de um mínimo de estofo intelectual e equilíbrio emocional para sustentar um embate nesse plano).


Nos últimos dias, depois de insistir com a tresloucada proposição de construção de um muro de separação dos territórios americano e mexicano (a ser pago pelo México), adotou medida de proibição do ingresso nos Estados Unidos da América de pessoas com nacionalidade de alguns países de maioria muçulmana (Irã, Iraque, Síria, Iêmen, Sudão, Líbia e Somália). “Mais de 17 mil pessoas desses locais estavam matriculadas em universidades dos EUA em 2016 e podem ser afetadas, segundo o Departamento de Estado e o Instituto de Educação Internacional, uma organização sem fins lucrativos. Mais de 12 mil deles são iranianos” (http://g1.globo.com/educacao/noticia/universidades-temem-que-decreto-de-trump-contra-imigrantes-afete-estudantes-e-pesquisadores.ghtml).

Obviamente, os EUA, assim como qualquer país, por intermédio de seu governo, pode impedir o ingresso de certos estrangeiros em seu território. Essa medida deve considerar a situação específica do cidadão com pretensão de adentrar no país. O histórico concreto de ações deletérias ou indícios sérios de periculosidade social são elementos hábeis para as restrições nessa seara.

Entretanto, as proibições impostas por Trump são profundamente censuráveis porque encarnam uma escalada preocupante de desprezo pela dignidade da pessoa humana. Não custa lembrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948. Diz o preâmbulo da manifestação: “ … o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

Essa importantíssima declaração afirma peremptoriamente o seguinte: “Artigo II – 1 – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Portanto, a medida do senhor Trump viola frontalmente a consolidação reveladora das mais importantes conquistas civilizatórias da humanidade. Simplesmente, não é digna e juridicamente válida a proibição de ingresso de alguém em qualquer país tão somente por conta da “origem nacional”. Segundo várias notícias jornalísticas, as afrontas, também à Constituição dos EUA, já protagonizam intensas discussões no Judiciário norte-americano. “Um juiz federal de Seattle bloqueou temporariamente em todo o país o decreto do presidente americano, Donald Trump, que impedia a entrada de refugiados e cidadãos de sete países muçulmanos nos Estados Unidos. (…) Batalhes jurídicas análogas ocorrem em todo o país” (http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,liminar-suspende-veto-a-refugiados-e-imigrantes-muculmanos,70001652728).

As medidas do senhor Trump também buscam, de forma intencional ou não, uma espécie de demonização do islamismo. Essa postura alimentará ódios e posturas agressivas num rumo completamente diverso da suposta proteção dos EUA e seus cidadãos. Trata-se de um equívoco monumental rotular uma religião, ou seus adeptos de forma indistinta, como promotora de terrorismo, violências de várias ordens e, em suma, de posturas destrutivas e desagregadoras. São inúmeros os exemplos históricos de ações violentas isoladas, de pessoas e grupos com inspiração religiosa (islâmica, cristã, etc), a partir de visões obtusas e pontuais das respectivas mensagens espirituais. Ocorre que esses episódios não descaracterizam um viés profundamente positivo das religiões de uma forma geral, e da imensa maioria de seus adeptos, na construção de uma humanidade mais solidária e fraterna. No interessante livro UNIDADE – OS PRINCÍPIOS COMUNS A TODAS AS RELIGIÕES, Jeffrey Moses destaca: “Ao longo dos séculos, os livros sagrados de todas as religiões proclamaram que a humanidade é uma grande família. Essa é uma verdade simples dita de maneira clara. Na verdade, quase todos os princípios associados ao pensamento religioso são compartilhados por todas as religiões. (…) Essas semelhanças entre as religiões evidenciam, com a sabedoria contida nelas, uma profunda 'Unidade' do espírito humano. Quando colocamos lado a lado as crenças fundamentais comuns a todas as religiões, descobrimos que nossas diferenças são superficiais e nossas semelhanças profundas. (…) Estabelecem uma base sólida, não só para o convívio pacífico das nações, mas para que as pessoas estruturem suas vidas de modo a alcançar o sucesso, a felicidade e a realização espiritual que as fazem completas”.

É preciso, ainda, registrar que a rejeição ao neoliberalismo, às políticas de arrocho fiscal seletivo, à globalização profundamente assimétrica e aos processos tradicionais de democracia representativa, marcas bem salientes do capitalismo financeiro, praticamente inaugurado na década de 80 do século XX, não encontrará solução consequente na postura raivosa do senhor Trump. O rumo a ser trilhado, particularmente em escala global, envolve generosas mudanças estruturais de caráter popular nos campos da economia e da política. Seguramente, elas não passam pela desregulamentação do insaciável mercado financeiro (como pretende o senhor Trump), um dos fatores mais relevantes para a crise econômica de 2008.

Convém lembrar mais uma passagem da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Justamente, a exortação de que todos “... devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. É certo que o convívio humano em sociedade produz uma quantidade considerável de desavenças de todas as ordens. Mais certo ainda, num mundo de cidadãos globais, é que não precisamos aumentar as doses dos sentimentos mais negativos com decisões governamentais e políticas públicas, notadamente adotadas pela maior potência econômico-militar do planeta.

*Aldemario Araujo Castro é advogado, procurador da Fazenda Nacional, professor da Universidade Católica de Brasília - UCB, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília - UCB