Sábado, 29 de abril de 2017
Por
Aldemario Araujo Castro
"O Brasil precisa de reformas". A frase foi
proferida pelo senhor Michel Temer, triste ocupante do Palácio
do Planalto (https://goo.gl/CrMfCz).
“Reformas [no Brasil] são claramente necessárias”. Essa frase
foi proferida pela senhora Christine Lagarde, diretora-gerente
do FMI - Fundo Monetário Internacional (https://goo.gl/Lj3wka). O
homem das mesóclises sofríveis e a mulher das certezas incertas
estão com a razão?
Os contínuos escândalos de corrupção criam a falsa
impressão de que a honestidade (ela, e só ela) daria “jeito”
neste país. Felizmente, ou infelizmente, nossas profundas
mazelas, notadamente a construção e manutenção de uma das
sociedades mais desiguais, discriminatórias e violentas do
planeta, resultam da existência de instrumentos ou mecanismos
socioeconômicos que precisam de profundas transformações.
Essas transformações, se adotada a denominação de
“reformas” neste momento histórico, devem seguir em qual rumo ou
sentido? O caminho apontado pelo governo Temer-Meireles-Padilha,
mergulhado em corrupção e fisiologismo, é aquele a ser trilhado
e apoiado pela maioria da população brasileira?
A resposta pode ser encontrada, entre outros, na
Constituição de 1988. Esse documento, fundador do atual Estado
Democrático de Direito, fixa os seguintes objetivos fundamentais
para a República Federativa do Brasil: a) construir uma
sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o
desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e
d) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Para que os fins destacados sejam alcançados, o
constituinte definiu os traços mais relevantes dos instrumentos
fundamentais a serem utilizados. Assim, conformou o modelo de
Estado e sociedade a serem desenvolvidos no Brasil. Entre outros
pontos relevantes: a) indicou a educação e a saúde como direitos
de todos e deveres do Estado; b) desenhou um avançado sistema de
seguridade social, incluídas as proteções previdenciárias e
assistenciais e c) cuidou de estabelecer importantes mecanismos
de financiamento das políticas públicas nessas e outras áreas.
A ambiciosa rede de proteção social concebida e
organizada pelo constituinte, baseada na solidariedade social e
visando o bem-estar de todos, está centrada na titularidade e
efetiva fruição de uma série de direitos sociais, qualificados
constitucionalmente como fundamentais. Exatamente no dispositivo
que enuncia os direitos fundamentais dos trabalhadores, a
Constituição afirma categoricamente que outros direitos, além
dos listados, deverão ser adotados para “a melhoria de sua
condição social” (artigo sétimo).
Resta, portanto, fora de dúvida que vivemos numa
sociedade (e Estado) onde os direitos, notadamente sociais
fundamentais, devem ser assegurados e ampliados. A Constituição
não tolera o retrocesso social. O constituinte não admitiu a
degradação da condição social dos trabalhadores com limitações e
restrições de seus direitos.
O governo Temer-Meireles-Padilha, como claro
instrumento dos interesses mais mesquinhos do empresariado do
agronegócio, da indústria, do comércio e da área financeira,
adota rumo diametralmente oposto ao indicado pelo constituinte
de 1988. A busca frenética pela eliminação e restrição de
direitos sociais está presente: a) na proposta (aprovada) de
fixação de um teto draconiano de gastos primários (e ausência de
limites para as despesas financeiras); b) na nova legislação
sobre terceirização (e precarização) da força de trabalho; c) na
reforma trabalhista (parcialmente aprovada) que, entre outras
maldades, determina a prevalência do negociado sobre o legislado
(“para pior”) e d) na reforma previdenciária, que contempla um
festival de redução de direitos.
As verdadeiras reformas, aquelas de caráter
democrático e popular, devem buscar, como dito, a manutenção e
ampliação de direitos, em especial os sociais fundamentais. Para
tanto, as seguintes e perversas (em função das consequências
sociais produzidas) realidades nacionais reclamam “reformas”:
a) a sonegação tributária, estimada em R$ 500
bilhões anuais, precisa de atenção e ataque planejado e
organizado;
b) a Dívida Ativa da União e de suas autarquias,
mediante uma recuperação progressiva decorrente do adequado
aparelhamento dos órgãos públicos envolvidos, notadamente a
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Procuradoria-Geral
Federal. O estoque dessa dívida ultrapassa a cifra de R$ 1,5
trilhão;
c) os benefícios (ou exonerações) tributárias.
Segundo levantamento especializado, “as desonerações de tributos
concedida pelo governo da presidente Dilma desde 2011 somarão
cerca de R$ 458 bilhões em 2018”;
d) a Seguridade Social, por intermédio de uma ampla
e democrática auditoria que aponte as reais necessidades de
modificações (envolvendo o financiamento segundo os parâmetros
constitucionais, as desonerações tributárias, a sonegação, a
inadimplência em razão da crise econômica, as fraudes, os
privilégios, a pertinência de alterações nas idades mínimas e
outros aspectos relevantes);
e) a dívida pública, via auditoria conforme exige o
art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT) e implementação de uma administração transparente e com
controle social, inclusive com a supressão de mecanismos
indevidos que viabilizam o seu contínuo crescimento (como a
atualização monetária do montante e o seu financiamento por
intermédio do lançamento de novos títulos em flagrante violação
à “regra de ouro” inscrita no art. 167, inciso III, da
Constituição). Observe-se que a evolução da dívida pública
mobiliária federal interna não encontra nenhuma explicação nas
diferenças positivas e negativas do resultado primário
(desconsiderada a parte financeira) nos últimos vinte anos. O
patamar desse endividamento saiu de R$ 61,7 bilhões em 1994 para
R$ 2.753,4 bilhões em março de 2016. O problema da dívida
pública monumental e crescente não tem fundamento na vertente
fiscal da economia brasileira, como pretende o discurso oficial
e da grande imprensa;
f) a política monetária. Compreendendo uma
regulamentação ampla e social: f.1) da fixação da taxa de juros
SELIC; f.2) do nível e administração das reservas monetárias
internacionais (admitindo a venda do excesso, inclusive); f.3)
do tamanho da base monetária e f.4) das operações compromissadas
e todas as formas de “ajuste de liquidez”. Segundo dados do
Banco Central do Brasil, as operações compromissadas
representavam R$ 528,7 bilhões da dívida pública em dezembro de
2013, R$ 809,06 bilhões em dezembro de 2014, R$ 913,28 bilhões
em dezembro de 2015 e R$ 1.113,97 bilhão em agosto de 2016;
g) a política cambial. Envolvendo uma regulamentação
ampla e social: g.1) do câmbio; g.2) do fluxo de capitais e g.3)
das operações de swap cambial;
h) o sistema tributário, mediante a drástica redução
da tributação sobre o consumo e aumento das tributações sobre a
propriedade, capital e aplicações financeiras, inclusive com a
eliminação de privilégios fiscais;
i) a concentração de mídia, por intermédio de uma
profunda democratização econômica (sem interferência na
“redação” ou linha editorial) da propriedade das empresas de
comunicação;
j) a estrutura fundiária, na linha de sua radical
desconcentração;
k) a reorganização administrativa do Estado que
viabilize: k.1) a profissionalização do serviço público; k.2) a
quase extinção de cargos comissionados; k.3) o atingimento de
níveis satisfatórios de qualidade na prestação dos serviços
públicos; k.4) o controle social sobre o funcionamento e os
resultados da atuação administrativa; k.5) a fixação de padrões
remuneratórios compatíveis com a realidade socioeconômica; k.6)
o combate as diversas formas de privilégios espúrios e k.7) a
construção e fortalecimento de mecanismos efetivos e preventivos
de combate à corrupção;
l) a organização político-eleitoral em novas bases,
contemplando: l.1) a manutenção da impossibilidade de
financiamento de campanhas e partidos por empresas; l.2) a
adoção do financiamento público de campanhas em patamares
espartanos, incluídas nessas restrições o fundo partidário; l.3)
a definição clara, sem anistias, da criminalização do caixa 2 em
campanhas eleitorais; l.4) a eliminação das coligações nas
eleições proporcionais, inclusive mediante formas disfarçadas
(como na federação de partidos e assemelhados); l.5) a adoção de
fórmulas de revogação de mandatos por parte dos eleitores; l.6)
a democratização do cálculo do coeficiente eleitoral e a
distribuição dos restos nas eleições proporcionais; l.7) a
adoção do procedimento de voto proporcional primeiro no partido
e, depois, num dos candidatos do partido e l.8) a democratização
da distribuição de tempo na propaganda eleitoral e a
participação em debates.
Observe-se que quase todas as questões destacadas
não são veiculadas pela grande mídia. Todos os problemas
nacionais parecem concentrados e limitados aos aspectos
estritamente fiscais dos gastos com a previdência social e
remunerações de servidores públicos e aos escândalos de
corrupção. Opera-se, notadamente nas telas dos televisores, uma
engenhosa redução do mundo percebido pela quase totalidade da
população. Afinal, se quase todos sequer tomam conhecimento das
questões antes levantadas, as mazelas e suas soluções devem ser
buscadas no universo parcial, cuidadosamente recortado e
apresentado pelos grandes meios de comunicação.
O único caminho factível, mesmo lento e trabalhoso,
reside na intervenção popular (não confundir com a tresloucada
intervenção militar). Somente a mobilização e conscientização
populares, em torno de medidas efetivamente transformadoras,
mudará o Brasil. Trata-se de atuação que não pode, nem deve, ser
terceirizada (para representantes de qualquer tipo, líderes
“esclarecidos” ou “salvadores da Pátria’). A força motriz das
mudanças de fundo, sem prejuízo de combativos e comprometidos
representantes e lideranças políticas como seus instrumentos,
deve estar centrada na cidadania ativa, no protagonismo da
atuação de cada cidadão nos mais variados espaços sociais.
*Aldemario Araujo Castro
é Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de Brasília
Brasília, 29 de abril de 2017