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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 26 de março de 2018

Veganos do Sertão: cidades baianas retiram proteína animal da merenda escolar

Segunda, 26 de março de 2018
Do Correio da Bahia
Programa que abrange 30 mil estudantes usará alimentos da agricultura familiar
Crianças da Escola Municipal Otávio Costa, que fica em povoado de Serrinha, já provam os alimentos da nova dieta (Foto: Divulgação)
Um programa inédito no Brasil, lançado esta semana em Serrinha promete cortar em dois anos 100% dos alimentos de origem animal da merenda escolar de quatro cidades do Sertão baiano. Batizado de Escola Sustentável, o programa abrange 30 mil estudantes de 137 unidades escolares, da educação infantil ao programa Educação de Jovens e Adultos (EJA), em Serrinha, Barrocas, Biritinga e Teofilândia.
O programa busca a melhoria na qualidade da alimentação escolar, através da oferta de merenda “preventiva de doenças, livre de ingredientes de origem animal e eficiente do ponto de vista econômico e ambiental”.
Prevê também medidas como a implantação de hortas escolares, educação humanitária, reformas das cozinhas e ações para capacitação de 450 merendeiras das cidades envolvidas – o treinamento em Serrinha ocorreu durante esta semana e já foi realizado em Barrocas.
Na última segunda-feira (19), os gestores das cidades envolvidas assinaram com o Ministério Público (MP-BA) um termo de ajustamento de conduta (TAC) para a implantação do projeto piloto do programa.
Neste sábado (24), foi realizada uma reunião pública para apresentação do Escola Sustentável em Teofilândia, além de palestra sobre educação humanitária para a comunidade e agentes públicos da educação, saúde e meio ambiente locais. 
Durante o dia, também houve uma exposição de agricultura familiar com produtos já adaptados à proposta alimentar do Escola Sustentável, sem uso de ingredientes de origem animal, além de artesanato e adoção de plantas por crianças das creches locais. Veja fotos.
Capacitação realizada pela HSI para fornecedores da agricultura familiar e economia solidária
Capacitação realizada pela HSI para fornecedores da agricultura familiar e economia solidária (Foto: Divulgação)
Capacitação das merendeiras de Biritinga, uma das cidades que adotaram programa
Capacitação das merendeiras de Biritinga, uma das cidades que adotaram programa (Foto: Divulgação)
Merendeiras provam refeição do novo cardárpio, com tutoria do chef André Vieland
Merendeiras provam refeição do novo cardárpio, com tutoria do chef André Vieland (Foto: Divulgação)
Crianças de creches de Teofilândia aprenderam sobre cuidados com meio ambiente e adotaram plantas
Crianças de creches de Teofilândia aprenderam sobre cuidados com meio ambiente e adotaram plantas (Foto: Divulgação)
Reunião pública para apresentação do Escola Sustentável em Teofilândia
Reunião pública para apresentação do Escola Sustentável em Teofilândia (Foto: Divulgação)
Reunião pública para apresentação do Escola Sustentável em Teofilândia
Reunião pública para apresentação do Escola Sustentável em Teofilândia (Foto: Divulgação)
Capacitação realizada pela HSI para fornecedores da agricultura familiar e economia solidária
Capacitação realizada pela HSI para fornecedores da agricultura familiar e economia solidária (Foto: Divulgação)
Capacitação das merendeiras de Biritinga, uma das cidades que adotaram programa
Capacitação das merendeiras de Biritinga, uma das cidades que adotaram programa (Foto: Divulgação)
Até o final de 2019, a cada semestre serão cortados 25% dos alimentos com proteína animal nas quatro cidades; a merenda então passará a contar com mais produtos da agricultura familiar (frutas, legumes e verduras) e outros de origem vegetal.
Lista do corte
Entre os alimentos usados comumente na merenda escolar dessas cidades, os que vão ser cortados logo de início são as carnes de gado (servidas como charque junto com feijão ou moídas), de carneiro, aves, peixes, ovos, leite de vaca e manteiga. Em substituição a eles, entram a carne de soja, o leite de arroz, a pasta de amendoim (no lugar da manteiga), legumes, verduras, raízes, frutas, grãos e pão integral. Nesta primeira fase, as escolas servirão produtos de origem vegetal em ao menos um dos dias da semana.

A duração de dois anos do programa é a fase de experimentação, e sua implantação definitiva dependerá dos resultados de exames feitos nos estudantes. Eles serão submetidos a exames periódicos de hemograma, ferritina, vitamina B12, colesterol total, triglicerídeos, glicemia e mapeamento do estado nutricional antropométrico, que analisa as medidas de peso, estatura e composição corpórea.
Foto: Divulgação/Prefeitura de Serrinha
Inspiração
A ideia de se implantar o Escola Sustentável se inspirou no programa Segunda Sem Carne, que surgiu em 2003 nos EUA e hoje está em mais de 40 países, dentre eles Brasil (desde 2009), em 100 cidades de São Paulo. 
A diferença para o programa baiano é que o Segunda Sem Carne não prevê o corte de 100% dos alimentos de origem animal do cardápio. Mas nem por isso o Segunda Sem Carne tem sido ineficiente: apenas em 2017, duas mil toneladas de carne deixaram de ser servidas aos alunos paulistas, segundo a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).
Na Bahia, a iniciativa, que tem a cooperação técnica da Humane Society International (HSI), ONG global que atua na defesa dos direitos dos animais, nasceu de uma conversa informal entre a promotora Letícia Baird, de Serrinha, e prefeitos do Sertão.
“Conversávamos sobre castração de animais de rua e outras ações para o meio ambiente, quando surgiu essa ideia da promotora e fomos aprofundando o assunto, até assinar os TACs”, comentou o prefeito Adriano Lima (MDB), de Serrinha, onde há mais de 14 mil estudantes.
Apesar de já constatar que teve de gastar mais com merenda escolar este ano, em relação a 2017, devido à compra de mais produtos da agricultura familiar, Lima diz que a preocupação maior é com os resultados do programa.
“Não sei ao certo em quanto aumentou, mas, inicialmente, estamos pensando mais em fazer com que os alunos tenham uma alimentação mais saudável. E esse aumento do custo se deu pela quantidade que foi maior e pelos próprios produtos da agricultura familiar, mais caros de serem produzidos”, declarou.
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Pais que não concordarem com dieta podem enviar outra merenda na mochila
A promotora Letícia Baird, atuante na área do Meio Ambiente e dos direitos dos animais, informou que os pais de alunos que não se sentirem à vontade para dar aos seus filhos a alimentação proposta pelo programa Escola Sustentável, terão a liberdade de dar a eles a merenda escolar levada de casa.
“Não se trata de imposição alimentar, de alimentação restritiva. Estamos tratando de recurso público, que tem de ser gasto com eficiência. Uma das cláusulas do TAC prevê que se o pai discordar da alimentação oferecida pelo Município ele pode enviar para o filho a merenda na bolsa. Isso está expresso”, destacou.
Letícia explica que uma das bases em que o programa está amparado é a própria Constituição Federal, no que se refere à eficiência no uso dos recursos públicos. “A alimentação atualmente não traduz essa eficiência. As despesas mais pesadas na merenda escolar são mais com carne e leite em pó”, critica.
“O custo financeiro e ambiental com esses alimentos não é compatível com a lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que diz que o cardápio tem de se pautar na sustentabilidade e diversificação agrícola da região”, continua a promotora, lembrando que há diversos estudos que mostram que “carne processada é causadora de diversas enfermidades”.
Promotora Letícia Baird cita benefícios  para a saúde e meio ambiente (Foto: Divulgação)
“O custo ambiental da produção de carne é muito maior que o da produção de grãos. A produção de 120 gramas de carne bovina gera 9 kg de emissão de gases do efeito estufa, consome 2.400 litros de água e ocupação de 9 metros quadrados de área. A produção desses 120 gramas de carne é o equivalente a 500 quilos de grãos. Então, com 3 quilos de grãos se alimenta muito mais pessoas”, conclui Letícia Baird.
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Alunos estão obesos e desnutridos, diz nutricionista
Durante a fase de estudos para implantação do programa Escola Sustentável, foi realizado um levantamento junto às secretarias de Saúde das cidades envolvidas e foi constatado que os alunos estavam com obesidade e problemas de subnutrição. Os dados, por serem sigilosos, não foram divulgados.
“Analisei os dados. Eles são preliminares e internos. Vão se tornar um projeto de pesquisa para o ensino superior e apontam que as crianças ou estão com baixo peso ou excesso de peso, o que não deixa de ser um problema nutricional. Essa é uma realidade no Brasil: a cada criança desnutrida há três obesas”, declarou a nutricionista e pesquisadora Camilla Almeida Menezes, mestre em Alimentos, Nutrição e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Uma das voluntárias no projeto, ela explica que não há motivo para receios na troca da proteína animal pela vegetal e critica o uso de alimentos processados, que possuem altos índices de sódio.
“O valor da proteína é muito superestimado pela sociedade. Para se ter uma ideia, a quantidade necessária de proteína para uma criança é de 0,8 a 1,2 grama por quilo. Ou seja, é muito fácil atingir isso com 70 a 80 gramas de grãos”, explicou.
A gerente de políticas de alimentares da HSI Brasil, Sandra Lopes, informou que a ONG atuará com profissionais no monitoramento dos resultados das pesquisas nutricionais e na análise dos resultados sobre gastos públicos com a merenda escolar.
“Daremos o apoio necessário para que o processo de compra seja racionalizado e faça com que as crianças possam se alimentar melhor, valorizando os produtos regionais e movimentando também a economia local”, declarou.
Dentre outras ações que as prefeituras terão de fazer, conforme  os termos de conduta, estão ações educativas diversas, como a “VegSertão”, uma feira científica sobre produtos regionais de origem vegetal, e a proibição da comercialização de produtos estranhos à alimentação escolar oferecida nas unidades.