Sábado, 31 de março de 2018
Pesquisadores derrubam tese de que foi Zona Sul que elegeu Marielle
Do Jornal do Brasil
ALEXANDRE MACHADO
Não bastou matarem Marielle Franco. Mesmo após ser executada a tiros na noite daquela quarta-feira, dia 14, a vereadora do PSOL do Rio de Janeiro continua sendo alvo de ataques. Se do primeiro atentado, até agora, mais de duas semanas após o ocorrido, a polícia não apresentou sequer suspeitos, ao menos sabe-se de onde estão partindo os outros: da internet. A irmã de Marielle, Anielle Silva, e a viúva da vereadora, Mônica Tereza Benício, estão travando — e vencendo — algumas batalhas na Justiça para retirar do ar as fake news das redes sociais, que tentam desconstruir a imagem política de Marielle.
Um dos ataques diz respeito à própria votação que fez dela a quinta vereadora mais votada do Rio em 2016. Alegam que não teria sido eleita com os votos da favela que ela defendia. Marielle Franco sempre fez questão de registrar que era “cria da favela”, nascida no Complexo da Maré. De fato, os números absolutos da eleição apontam que a maioria de seus eleitores estava fora da Maré: 32% do total dos 46.502 votos recebidos por ela vieram da Zona Sul, segundo o Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE-RJ). Mas cientistas políticos e pesquisadores ouvidos pelo JORNAL DO BRASIL rebatem a tese. “A contradição até existe, mas a verdade é que ela teve uma eleição pulverizada pela cidade. A Zona Sul ajudou a elegê-la, mas não apenas essa região”, afirma o cientista político Ricardo Ismael, que foi professor e orientador da vereadora do PSOL na PUC-RJ.
Números absolutos da eleição apontam que maioria de eleitores estava fora da Maré: 32% dos 46.502 votos vieram da Zona Sul
Josir Gomes, do grupo de pesquisadores Perfil-i, que mapeou a votação recebida por Marielle, segue a mesma linha de raciocínio de Ismael: “Ela recebeu votos em todas as regiões e em 100% das seções eleitorais da cidade com mais de 1.000 eleitores. E é bom lembrar que na Zona Sul também tem favela”, o que demonstra, segundo ele, a capilaridade da candidatura de Marielle. Ainda que descartasse todos os eleitores da Zona Sul, Marielle teria sido eleita com 31.430 votos, em nono lugar.
Gomes destaca outro ponto importante na análise: a geografia eleitoral do Rio mistura “asfalto e favela pelas zonas eleitorais”. Ele cita como exemplo a própria Maré, onde, segundo o TRE-RJ, há 8.984 eleitores, dos quais apenas 50 deram seu voto a Marielle. “Mas as seções eleitorais da Maré são novas, e a maioria dos moradores de lá vota em seções mais antigas, como em Ramos e Bonsucesso”, explica: “Fizemos, então, nova consulta às bases de dados, agora considerando seções da região da Leopoldina, que reúne os bairros de Ramos, Bonsucesso e Maré. Assim, chegamos à conclusão de que Marielle teve mais de 3 mil votos por lá”.
Por essas contas do grupo de pesquisadores do Perfil-i, o que se percebe é que a vereadora recebeu um percentual de votos muito semelhante, ao se considerar os números de eleitores de cada região: na Zona Sul, obteve 2,6% de seus votos totais; na região da Leopoldina, 2%.
Visibilidade para além da favela
O sociólogo e cientista político Paulo Baía é outro que não considera haver contradição nos votos recebidos em 2016 pela vereadora do PSOL: “Marielle fez tudo certinho: estudou, fez graduação, mestrado, utilizou a educação para melhorar de vida, assessorou por 10 anos um político, obteve voo próprio eleitoral, atendia vítimas policiais e não-policiais, tinha discurso moderado. Fez tudo certo”, avalia.
Segundo Baía, que é professor do Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais da UFRJ, o fato de Marielle ter nascido na Maré e isso não coincidir com o mapa de votação mais expressivo na região significa apenas que a atuação dela tinha visibilidade para além dos limites da favela:
“Era uma militante social e uma política de pauta específica. O tipo de voto que recebeu foi um voto de opinião. Mas a pauta de atuação dela nunca perdeu o vínculo com a comunidade, era a sua temática central, tanto na graduação na PUC ou no mestrado na UFF, onde desenvolveu trabalhos que tinham ligação com a comunidade”, afirma.
O cientista político lembra, ainda, que nas favelas o sistema de clientela ainda sustenta votos de vereadores. “Mas Marielle não era candidata de reduto eleitoral, era pautada por sua atuação social e como assessora parlamentar”, diz Baía.
Ricardo Ismael ressalta outra característica de campanhas em favelas que Marielle enfrentaria: as dificuldades impostas por grupos ligados ao tráfico de drogas e milícias, que só permitem a circulação de candidatos apoiados por eles, praticamente impondo aos moradores a votação nesses nomes:
“Onde há presença forte de facções criminosas, a liberdade das associações de moradores, por exemplo, para apoiar e divulgar um nome durante a eleição, acaba muito prejudicada. E três facções dividem o território da Maré”, afirma o professor: “Mesmo para um morador, é complicado vencer essa barreira. Muitas vezes, paga-se até com a vida por enfrentar esses grupos”.
Ele também leva em consideração a interferência religiosa no perfil de votação. “Marielle representava a luta por direitos que são muito combatidos, por exemplo, por igrejas evangélicas, como a causa LGBT e o debate sobre aborto. Isso certamente trouxe dificuldades para uma melhor evolução e aceitação da candidatura dela na favela. Na Zona Sul, esses temas são mais aceitos”, afirma.
O professor da PUC-RJ enumera, ainda, o fato de ser comum que os eleitores decidam seus votos na última hora. “E houve uma grande onda, no fim do primeiro turno, a partir do boca a boca de celebridades, intelectuais e formadores de opinião da Zona Sul, onde Marielle acabou realizando muitas reuniões. Viram nela representatividade e passaram a apoiá-la”, diz Ismael, acrescentando: “O PSOL tem dificuldade de entrar em comunidades, mas Marielle, que enfrentava sua primeira eleição, colou no Marcelo Freixo, com quem já havia trabalhado como assessora. Ela o levou até a Maré, mas também se beneficiou claramente do perfil de votos que normalmente vão para ele. Há uma correlação clara entre a votação dela e a do Freixo”, avalia.
Felipe Borba, cientista político e professor da Universidade Federal do Estado do Rio (Unirio), também aponta a ligação de Marielle com o partido como indicador para explicar o perfil de votos que ela recebeu. “Os votos da vereadora vieram em maior peso de locais onde o PSOL é mais forte, especificamente onde o deputado estadual Marcelo Freixo concentra grande parte de seu eleitorado”, afirmou.