Quinta, 6 de novembro de 2025
- Brasil e China: o abismo entre dois modelos de desenvolvimento
- Por Roberto Amaral*
O atraso, seja político, seja econômico, sempre foi a ideologia da classe dominante aqui instalada pelas naus portuguesas, dependente da irmandade siamesa entre latifúndio e escravismo. O primarismo fez-se valer como necessidade da política de posse da terra, alternativa à colonização para a qual Portugal carecia de meios. Assim, com as nuances impostas pelo processo histórico, o atraso estrutural chega ao capitalismo e à República nos meados do século XX, impondo ao novo regime, no contrapelo da modernidade prometida, o modelo colonial da plantation, voltado para a exportação.
A República herda os males do Império.
Os primeiros ideólogos do primarismo, implícita nele a dependência e a alienação de um projeto de nação e de país, destacaram-se ainda antes da Independência, e um de seus ícones certamente é o Visconde de Cairu, defensor da abertura comercial e de nossa integração atlântica — necessariamente dependente — como fornecedores de produtos primários (Princípios de economia política, 1804). Teófilo Otoni, meio século adiante, insistiria na prioridade brasileira da agricultura de exportação (Discursos parlamentares, 1850). Um pouco mais tarde (1870–1888), às vésperas da despedida da monarquia, o Partido Conservador, chefiando o último gabinete de Pedro II, proclama nosso destino como “um país agrícola por natureza” e “a lavoura como o esteio da nacionalidade”.
Essa ideologia domina o país, ainda hoje, nada obstante a República, nada obstante o movimento de 1930, nada obstante os esforços industrialistas, a crise do café e as iniciativas do getulismo no “Estado Novo”.
Nos anos 1940, nos estertores da Segunda Guerra Mundial, o mantra conservador e antidesenvolvimentista ainda faz escola. Seu mais importante formulador será o engenheiro-economista Eugênio Gudin, liberal ortodoxo. Sua tribuna são a universidade, a grande imprensa, o Estado (foi ministro da Fazenda no governo Café Filho, 1954–1955) e, talvez principalmente, a Fundação Getúlio Vargas, onde funda o Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) e a Revista de Economia, castelo forte do pensamento conservador e monetarista que mais tarde dará sustentação à política econômica da ditadura. Escreveu Princípios de economia monetária (1943), e sua vasta colaboração em O Globo está reunida em O pensamento de Eugênio Gudin, editado pela FGV. O patriarca do pensamento econômico conservador retoma a tese da “vocação agrícola do país”, combate o planejamento — acusado por ele como instrumento de “desequilíbrios inflacionários” — e investe contra qualquer política de proteção ao similar nacional e toda sorte de estímulo ou incentivo à produção industrial. Nos anos 1940 enfrentou polêmicas com Roberto Simonsen, líder industrial paulista e defensor, desde os idos de 1930, do planejamento industrial.
A industrialização como raiz do desenvolvimento toma corpo político nos governos Vargas e JK e, no plano teórico, nas formulações de Ignácio Rangel (superação da estrutura agrário-exportadora) e Celso Furtado, o mais fecundo dos analistas da formação econômica do país no século passado, com importante passagem pela administração pública. Foi superintendente da Sudene nos governos JK (1956–1961) e Jânio (1961), e ministro do Planejamento no período João Goulart (1961–1964), quando teve seus direitos políticos cassados pelo regime militar.
Nos anos 1950, em contraste com os países que se desenvolviam, o Brasil era ainda uma economia essencialmente agrário-exportadora, marcada por forte dependência das vendas de café, algodão e cacau; a industrialização incipiente se concentrava nas regiões Sudeste e Sul. A indústria de transformação representava pouco mais de 20% do PIB, mas era voltada sobretudo à substituição de importações de bens de consumo leves — têxteis, alimentos processados, calçados etc. —, com reduzida presença de setores de bens de capital e tecnologia. Algo como 50% da população viviam no campo, e o analfabetismo lavrava. O sistema produtivo permanecia dependente de importações de insumos industriais, de máquinas e de tecnologia, além de sensível às flutuações externas de preço das commodities e às seguidas crises cambiais.
Na abertura da década, no outro lado do mundo, um país devastado — com renda per capita inferior à de quase toda a América Latina, industrialização em seus primeiros vagidos, baixa produtividade agrícola, 80% de sua população pobre ou paupérrima morando no campo, taxa de analfabetismo que ultrapassava os 80% — cobrou a atenção do planeta ao anunciar uma revolução fora dos padrões ocidentais. Era o Estado maoísta, um processo de reconstrução nacional sob economia planificada, priorizando a reforma agrária e a criação de uma indústria pesada estatal.
Nos anos 1950 e 1960, essa China ainda reproduzia a matriz do modelo soviético de desenvolvimento, com ênfase em siderurgia, geração de energia e produção de máquinas de baixo nível tecnológico, mas lançava as bases de uma industrialização autocentrada e de um sistema de ciência e educação estatal, que, décadas depois, permitiriam a transição para o capitalismo de Estado reformado de Deng Xiaoping e o salto tecnológico das reformas a partir de 1978, vencida a “Revolução Cultural”.
Mas era uma China posta a pique. Exaurida, vinha da Segunda Guerra Mundial, da invasão japonesa (1937–1945), do devastador colonialismo britânico (século XIX e início do XX) e de sua “Guerra do Ópio” (1839–1842 e 1856–1860); e, ao fim, vinha ainda de uma guerra civil que, em cerca de 22 anos (1927–1949), matara aproximadamente 2% de sua população — algo entre 1,5 e 2 milhões de pessoas.
Aqui, abaixo do equador, estávamos afastados das garras do colonialismo europeu; não contávamos com ameaças à nossa integridade territorial, chegávamos da Segunda Guerra como vitoriosos e amealhávamos divisas. Importávamos matéria plástica, petróleo barato, consumíamos Coca-Cola, revistas em quadrinhos, mascávamos chicletes e namorávamos o cinema estadunidense.
Na década anterior, patrocináramos um movimento inter-oligárquico, conhecido como “Revolução de 1930”, que abrira caminho para a modernização do Estado. Em 1945, abandonáramos uma ditadura modernizante para ingressar em uma democracia representativa e, em 1950, elegíamos um governo trabalhista que ousava falar na emergência da classe trabalhadora.
Nada sugeria a persistência de nosso atraso — o atraso que recusávamos reconhecer. Parecíamos nos contentar com nosso papel subalterno e com nossas limitadas expectativas de futuro.
Enquanto o Brasil se desindustrializava e permanecia sitiado pelo padrão primário-exportador (70% de nossas exportações, ainda hoje, são commodities, enquanto 80% das importações estão na conta de manufaturados), a China, entre 1975 e 2023, saltava de um subdesenvolvimento mais profundo e complexo do que o nosso para se tornar a maior plataforma manufatureira do planeta: 90% de suas exportações hoje são industriais.
Permanecemos, neste 2025, na periferia atrasada do capitalismo, no Sul global, cuidando de nossas exportações de commodities e da importação de tecnologia e bens manufaturados. Observe-se, porém, que o gigante asiático não obrou milagres. A história desconhece acasos, e a economia rejeita prodígios.
Senão, vejamos:
Nos anos 1970, tanto o Brasil quanto a China investiam algo como 2% de seus respectivos PIBs em pesquisa e desenvolvimento; a paridade dos números, porém, não revela a distinção dos projetos políticos. Aqui começam as diferenças de fundo que também vão determinar futuros essencialmente diversos.
A partir de 1999, a China multiplica seus investimentos para, em 2024, destinar 2,6% de seu PIB (663 a Ciência, Tecnologia e Inovação, enquanto nós nos conformamos com apenas 1,2% de nosso PIB, cifra inferior à alcançada no já longínquo 2003. Ademais, a partir de 1990, nos déramos à irresponsabilidade política de descontinuar a estratégia de coordenação Estado–indústria–conhecimento, gerando óbvias consequências negativas na desindustrialização e na crescente dependência tecnológica, que coarta nosso desenvolvimento.
Em 1978, já sob a liderança de Deng Xiaoping, a ( levara a cabo o chamado “ciclo de reforma e abertura”, revendo sua estratégia de desenvolvimento. O Estado coordena o complexo educação–pesquisa científica–política industrial como um único projeto nacional de desenvolvimento, com definição clara de políticas prioritárias e investimentos persistentes na formação de matemáticos e engenheiros — no mesmo período em que o Brasil, no rastro das crises econômicas do final da década de 1970 e início dos anos 1980, ingressa num ciclo de descontinuidade dos projetos estratégicos e de redução da capacidade do Estado de coordenar investimentos e manter políticas estruturantes.
O Estado, aqui, tem reduzida sua capacidade de coordenar investimentos em ciência e tecnologia, desfaz-se de uma política industrial de longo prazo e compromete a formação de cadeias produtivas complexas. Como efeito cumulativo, agrava-se a dependência tecnológica externa, sobretudo na importação de equipamentos e processos industriais.
Em 2024, a diferença entre os dois modelos — e a distância entre os dois níveis de desenvolvimento — encontra-se consolidada. A China investe cerca de 2,5% do PIB (1,93 trilhões de US dólares) em pesquisa e desenvolvimento, formando uma economia com crescente autonomia tecnológica e protagonismo global em áreas como energia renovável, eletrônica, telecomunicações, semicondutores, inteligência artificial e produção farmacêutica avançada. O Brasil investe aproximadamente 1,2% de seu PIB (663 bilhões de US dólares) em P&D, grande parte concentrada em universidades públicas, com mínima participação do setor privado na geração de inovação.
As multinacionais investem em suas matrizes, e a indústria nacional opta por pagar royalties.
Em síntese, enquanto a China consolidou a ciência e a tecnologia como eixo de seu desenvolvimento econômico, social e político, no Brasil persistem a instabilidade orçamentária e a dominância do mantra de um ajuste fiscal, que não encontra explicação fora do império do neoliberalismo e de nossa dependência política e ideológica do grande capital.
O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) é a principal fonte brasileira de fomento à ciência e tecnologia, e dele dependem tanto a pesquisa universitária quanto os investimentos privados em inovação. Seus recursos orçamentários, em obediência ao mantra do ajuste fiscal, sofreram, em 2025, um corte de 29%, o que corresponde a algo como R$ 31,3 bilhões.
A explicação de nosso atraso, principalmente em face do desenvolvimento acelerado da China, não se deve, pois, à disparidade dos números, mas à sua causa: a disparidade dos projetos, de sua continuidade e descontinuidade e, principalmente, da extrema diversidade das estratégias.
Tudo tem seu preço, e as consequências, como ensinava o conselheiro Acácio, vêm depois.
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Ainda o mantra — Lê-se no Valor de 06/11/25: “BC mantém juros em 15%, mas vê melhora da inflação e moderação da atividade”. Ou seja, não apenas o chamado “mercado”, mas a própria autoridade monetária, que deveria servir ao conjunto do país, diz ser positiva, em país com as características do nosso, a retração econômica — pois só o que importa é o controle da inflação, como doutrinava Eugênio Gudin. Como prosperar?
Enquanto isso... — O Comitê Central do Partido Comunista da China encerrou no final de outubro último sua plenária, definindo as diretrizes do 15º Plano Quinquenal (2026–2030), instrumento de planejamento centralizado que orienta o desenvolvimento econômico, social e tecnológico do país. O novo plano prioriza a transição de um crescimento acelerado para um crescimento de qualidade, com foco em inovação científica, autossuficiência tecnológica e sustentabilidade ambiental. Prevê avanços em IA, semicondutores, energia limpa e robótica, além de metas de neutralidade de carbono até 2030. Inclui ainda políticas de aumento da renda, ampliação do bem-estar social e fortalecimento da governança pública e da coesão cultural. Trata-se, segundo seus formuladores, “de um passo estratégico para consolidar o projeto de uma China socialista moderna, próspera e ambientalmente equilibrada até 2035”. O silêncio sobre o tema por parte das empresas de comunicação sediadas no Brasil é ensurdecedor.
Marx na Big Apple — Merece festejos a eleição de Zohran Mamdani, muçulmano e autodeclarado socialista, para a prefeitura de Nova York, berço do autocrata Donald Trump. O novo prefeito tem toda sorte de desafios pela frente, a começar pelo de combater as desigualdades sociais em um sistema que não cessa de reproduzi-las. Terá, também, de enfrentar o conservadorismo do establishment democrata. Tudo faz crer que buscará governar para toda a cidade, e não apenas para a gentrificada ilha de Manhattan; e espera-se que possa conter as investidas criminosas das milícias anti-imigrantes arregimentadas pelo presidente. Se conseguir, não terá sido pouco.
Genocídio em silêncio — Com o “cessar-fogo” canhestro, a Palestina, esquecida pelo mundo, saiu do noticiário, mas o massacre continua — e não apenas em Gaza. Segundo a agência de notícias Wafa, forças da ocupação na Cisjordânia alvejaram, na última quarta-feira (05/11), o adolescente Murad Fawzi Abu e, impedindo a chegada de socorro, o deixaram sangrar até a morte. Com o crime, chegam a 56 os palestinos assassinados (os feridos passam de 200) por ataques israelenses no campo de refugiados de Jenin desde o início do ano, quando o enclave sionista pôs em marcha a operação “Muro de ferro”.
Delinquência no Guanabara — Ao rol de crimes que inflam a ficha corrida do ainda governador do RJ, Cláudio Castro (PL), que está sendo julgado no TRE do estado por abuso de poder político e econômico, vem somar-se o de conspiração contra a soberania nacional, que cometeu ao pedir intervenção dos EUA contra uma das facções criminosas em ação no Brasil. Na democracia, bandido bom é bandido entregue à Justiça — e este deve ser seu destino.
Efeméride — Herbert José de Souza, o nosso Betinho, que ainda está conosco, completaria 90 anos no último 03/11. O Brasil festeja.
- *Com a colaboração de Pedro Amaral.