Terça, 14 de janeiro de 2014
Revista Fórum
O
“rolezinho” demonstra o paradoxo da elite brasileira, que por um lado
quer crescimento econômico, mas por outro quer manter os de pele marrom
confinados na senzala.
Junto com alguns outros shoppings da capital, o Shopping JK Iguatemi, um dos templos do consumo de luxo em São Paulo, conseguiu uma liminar na
Justiça impedindo o “rolezaum” que havia sido marcado pelas redes
sociais para acontecer no local neste sábado. As portas automáticas que
dão acesso ao estabelecimento foram desligadas e passaram a ser
blindadas por policiais. Houve, ainda, a presença de um oficial de
justiça na porta do estabelecimento. Caso o organizador do evento
aparecesse e fosse reconhecido, seria conduzido a um distrito policial
para esclarecimentos, segundo declarou à Veja SP o oficial de justiça. A
situação estapafúrdia foi amplamente divulgada pela imprensa.
Em outro shopping, bem
mais popular e localizado no extremo leste da cidade, a PM chegou a usar
bombas e balas de borracha. Na prática, o Estado tem usado a força para
impedir o sagrado direito de jovens pobres e da periferia de ir e vir.
Os chamados “rolezinhos” estão sendo agendados por jovens e adolescentes
destes bairros mais distantes por meio das redes sociais, e têm
despertado o medo de comerciantes e frequentadores habituais dos
shopping centers. Os primeiros rolezinhos aconteceram em shoppings da
periferia, e a presença de seguranças e policiais também ocorreu. A ação
deste final de semana seria mais marcante, pois fora escolhido um dos
shoppings frequentados pela elite paulistana, localizado no caríssimo
bairro do Itaim, um dos que mais concentra investimentos públicos e
privados em toda a cidade. Vale lembrar que shoppings centeres ocuparam
as páginas policiais dos jornais recentemente por suposto envolvimento
em esquemas de propina para ter seus projetos aprovados.
As portas automáticas que dão acesso ao estabelecimento foram desligadas e passaram a ser blindadas por policiais (Reprodução)
A expedição de uma
liminar, embora compreensível sob o ponto de vista daqueles que temiam a
chegada de centenas ou milhares de frequentadores, digamos,
“diferenciados”, escancara o que todos neste país sabemos mas muito
poucas vezes falamos: apesar dos avanços institucionais e legais que o
Brasil conheceu desde a redemocratização, alguns brasileiros são mais
cidadãos do que outros. Alguns espaços são mais exclusivos do que
outros. E o consumo, ainda que cantado em prosa e verso como motor da
sociedade e supra-sumo da felicidade e da realização pessoal, não é,
evidentemente, para todos. É estranhíssimo ver empresários buscando a
ajuda do Estado, ainda que seja para obter uma simples liminar com o
objetivo de impedir a diversificação de sua própria carteira de
clientes. Afinal de contas, a elite brasileira é capitalista ou não?
Essa garotada que hoje
tenta frequentar os shoppings nasceu na década de 1990, quando o
discurso neoliberal já era hegemônico em nosso país. Cresceram ouvindo
dia e noite que política é ruim e que o sucesso é uma conquista
individual. Comprados o tênis de marca, o relógio da moda, o celular de
última geração, o rolezinho no shopping é o top da ostentação dos que
vem de baixo, da base da pirâmide social. E ai encontram o que? As
portas fechadas. A porta na cara da molecada de pele marrom é o outro
lado da moeda de um país onde uma boa parte da elite parece ser
capitalista somente até a página 2. E que no dia a dia, há séculos,
busca se apropriar, de todas as formas possíveis, do Estado, a fim de
dirigir suas prioridades. Dos vultosos subsídios a setores empresariais
ao eterno chororô contra os impostos, do poderoso rentismo que vive da
rolagem da dívida pública aos editais amigos de obras e serviços
públicos, da sonegação fiscal à domesticação de partidos e candidatos
através do financiamento de campanhas eleitorais.
Fernando Henrique
Cardoso talvez estivesse certo nos seus livros e artigos sobre a
dependência brasileira: nunca tivemos, em nosso país, amplos setores de
elite que trouxessem consigo um projeto de nação, destinado a integrar
nos direitos, na cidadania ou sequer no consumo os milhões de
despossuídos. Quando muito nossa elites têm um projeto de classe, ou nem
isso. Ao longo de séculos boa parte delas contentaram-se em intermediar
negócios com os países mais ricos e levar sua parte, e a polícia que se
vire para segurar a massa mulata e preta das periferias paupérrimas.
Sempre foi assim.
Ao lado dessa ignorância
preguiçosa de nossas elites, temos a ignorância adestrada de nossos
pobres. Quando se vê um garoto carregando um fuzil no meio de uma
favela, de uma coisa pode-se ter certeza: ele não quer fazer a revolução
e pôr o sistema abaixo. Pelo contrário, a violência é a forma pela qual
pretende acessar e usufruir dos bens materiais que outros jovens
conseguem obter por meios legais ou aceitáveis. A garotada pobre que se
manda em grupos para os shoppings tem o mesmo desejo. Querem consumir os
símbolos de status que de uns tempos pra cá imaginam ser acessíveis a
eles também. Ignoram, no entanto, que ao invés dos shoppings muito
melhor seria se tivessem acesso a teatros, cinemas, bibliotecas, centros
esportivos e de lazer, tão ou mais inacessíveis a eles que estes ocos
templos de consumo.
O “rolezinho” demonstra o
paradoxo da elite brasileira, que por um lado quer crescimento
econômico, mas por outro quer manter os de pele marrom confinados na
senzala. A muralha que o “rolezinho” escancarou é formada por uma
Justiça muitas vezes conivente com a desigualdade social, fato que se
expressa em alguns casos como foi em Pinheirinho e agora nos
“rolezinhos”.
*Texto
de Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Curso de
Graduação em Gestão de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação
em Integração da América Latina da USP; e Rafael
Alcadipani é PhD em Management Sciences pela Manchester Business School
(Inglaterra) e Prof. Adjunto da Escola de Administração de Empresas de
São Paulo da FGV.